Cachorros que me mordam

Edu Alves
kayua
Published in
4 min readMay 10, 2018
Acervo pessoal — viagem por terras mineiras

Bem pretinho, no máximo, o dobro do tamanho de uma soleira de porta, aparentando uma pequena bigorna. Um sem-raça. Do seu lado, de pêlo ondulado como mar preste a quebrar, de cor não tão branquinha, um poodle, que, apesar disso, apresentava-se muito maior do que os que já conheci. Me ocorreu que sua mãe poderia ter tido um caso extraconjugal. Mais dois os acompanhavam. Formavam um quarteto. Nitidamente, criados e muito bem vividos nas ruas. Não em qualquer uma, mas, sim, nas de Tiradentes.

Na minha primeira noite pela cidade, caminho pela praça, rodeada por uma rua toda de pedras do século de sua descoberta. Romantizado que estou, é possível imaginar veredas iluminadas por pequenos postes que carregam em seu topo lamparinas à óleo. Só imaginar. Hoje elas já foram violentadas e levam dentro de si uma fiação recém-escondida após uma reforma. A praça, no centro, conecta às calçadas que abrigam, nas casas coloniais, restaurantes de todos os tipos: francês, italiano, português, fast-food, até aqueles que lembram novelas do Manuel Carlos, com piano e bossa nova.

Sem exceção, todos eles têm cachorros em suas portas. É pequeno, é alto, é com cara de rico, é com focinho de pobre. Nenhum deles, no entanto, tem cara de fome. E não passam por esse mal mesmo. Logo que você se senta à mesa, ali na calçada, aquela que você não sabe direito se já é rua também, vem um cão e se aconchega ao seu lado. Não late, não morde, apenas te olha. De onde vim, uma atitude como aquela, geraria tamanha repreensão por parte dos garçons que, ou o cliente não volta, ou o cachorro apenas sai e tenta outra oportunidade. Eles são assim (os cachorros). Será que Tiradentes é um pólo pet friendly? Bom, não me incomodou tê-los ali por perto. Não dessa vez…

Noutro dia, meu olhos encontraram com os daquele quarteto pela única passagem que existia num muro. Aquela era uma construção sem fim de pedras empenhadas irregularmente. Uma em cima da outra. As duas partes eram unidas apenas por um pequeno portão, aqueles de passar gente e não carros (se é que alguém precisa guardar carro na garagem naquela cidade), feito de madeira. Para o meu azar, ele estava aberto.

Me peguei pensando, em meio à tensão que meu corpo produzia, que falta de sorte dar de frente com uma casa em Tiradentes com tanto quintal, tanto muro… e tanto cachorro. Aqui parece que ninguém precisa de tanto espaço assim. Apesar da divagação, ela não foi suficiente para me levar para longe daqueles caninos. Assim, logo puderam sentir o odor incontrolável que o medo dispara. Num movimento, todos correram. No caso, eu na frente, eles logo atrás. Não sei ao certo se vieram na direção das minhas canelas morenas e não tão esguias como o resto do meu corpo ou só quiseram mostrar quem é o “local”.

Não sou de Tiradentes. Nem mineiro sou. Já fui melhor recebido por aquelas terras, por isso, o latir de todos eles não afetou o meu carinho pelo doce de leite. No entanto, fugir de dentes afiados (não os vi de perto para afirmar, mas se a imaginação contar…) não fazia parte dos planos.

Fui parar ali, numa ruela vazia, que poderia talvez nem existir, por um erro no mapa. Esses mapas que te entregam assim que chega no hotel, pousada, hostel… no geral, são sempre feitos pela prefeitura local. Cada administração busca destacar o ponto turístico que ele melhor recuperou, não é mesmo? Esse bendito pedaço de papel mostrava um chafariz proporcionalmente muito maior do que, mais tarde, descobri que era. Estava escrito: atração número 11, Chafariz São José. Pela foto, até parece maior do que pessoalmente era, acredite.

Segui por algumas daquelas ruas de pedra, na crença de que não fosse precisar do waze ou google Maps para localizar tal monumento. Me custou, pensei, acreditar que aquela construção que nem água tinha e que ignorei era o próprio. Não tive dúvidas e mantive o passo firme sob a aventura de caminhar pela cidade.

Ah, se houvesse um morador por ali, que não fosse os de quatro patas que avistei minutos depois, eu poderia estar desapontado, mas não assustado. Correr de cães não é fácil. Apesar do susto, não posso dizer que é esta a minha primeira experiência. Quando moleque, ainda sem ter tido sequer o desejo de sair do meu bairro, fui mordido por um vira-lata. Tentei correr dele antes que abocanhasse meu tornozelo esquerdo. Ele tinha cor de doce de amendoim, mas sem raça, tampouco dono. Não devia ser mineiro, penso eu. O resultado: tive que tomar uma vacina ardida. Acho que foram algumas doses. Aquilo também serviu para que eu fingisse mancar por alguns dias e cabular a aula de educação física.

Tudo isso foi um flashback na minha cabeça, enquanto eu corria — e me equilibrava — naquelas pedras irregulares. Foi só o tempo de me fazer acreditar que aquele era, sim, o ponto turístico que eu procurava. Aquelas 16 patas que moram naquela rua estreita me seguiram até onde eu deveria ter parado. Daquele ponto, retornaram caminhando. Talvez até rindo, se é que cachorro ri, dessas situações.

Sentei-me bem ali, na sarjeta daquele chafariz. E me coloquei a rir também. Poderia ter ficado só decepcionado, mas fui mais longe. Dou gargalhadas de mim mesmo e penso como foi bom ter essa aventura para contar.

Inspire-se >> Divirta-se nas missões mais duvidosas.

--

--

Edu Alves
kayua
Editor for

Terapeuta Atendimentos indiviuais e oficinas | Thetahealing | Terapia Multidimensional | Escrita Terapêutica | Arteterapia | Psicodrama