Um retiro

Edu Alves
kayua
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7 min readMay 10, 2018
Acervo pessoal

Lembro de chegar na igreja, desde muito pequeno, perto da hora do almoço e assistir a missa do meio dia. Era o maior lugar do mundo para mim. Passávamos por portões bem grandes, presos num muro ainda todo de tijolo vermelho à vista. Depois de achar um lugar para estacionar, caminhávamos muito. Não sei se minhas pernas eram curtas, ou realmente estávamos longe do destino. Quanto mais perto, maior aquela construção ficava. Era a Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Minha avó fez uma promessa para a santa. Ela iria lá todo ano, até quando tivesse forças, agradecer. Não me lembro o que exatamente, mas era algo para o meu tio Nenê, apelido de um dos cinco filhos dela.

Ele mesmo não ia. Meu pai, filho caçula, acabou encarregado de ajudá-la a pagar tal promessa. Minha mãe e eu acompanhávamos essa ida para lá. Minha tia solteira também estava presente nessa procissão rumo à Aparecida. Apesar do roteiro ser o mesmo todo ano, sempre discutíamos onde passar primeiro — igreja nova ou velha, almoçar na cidade ou na estrada. A igreja velha fica no centro do município, bem no miolo comercial, misturada com as lojas que vendem de um tudo. Não é só santinho, não. Tem escapulário, mas tem caneta, boneca, rodo… tudo. Quando criança, eu mesmo, sempre que podia, escolhia o meu presente. Era sempre um carrinho, daqueles todo de plástico que toda feira de rua tem também.

Do que me lembro, a Missa na Basílica sempre foi muito cheia. Nos anos 90, quando eu ainda não tinha escolha de querer ir ou não, a igreja tinha chão de cimento batido, poucos adornos. Na verdade, não me lembro de nenhum como os que conheço hoje. Na época, os arcos todos feitos de tijolo vermelhinho me encantavam. Nunca tinha visto aquilo em outro lugar. As portas gigantes pareciam portais iguais do desenho do He-Man. Ficava sempre querendo empurrar uma delas, mas tinha medo de parecer fracote e não conseguir. Nunca tentei mesmo depois de ter ganhado alguns anos e quilos a mais.

A Dinda, como chamo minha avó paterna, entrava numa espécie de meditação quando chegava à igreja. Eu não entendia direito, só observava. De certa forma, o lugar pedia silêncio e eu respeitava. Só se ouvia o arrastar dos chinelos e sapatos, junto da poeira trazida na sola de cada visitante. Minha avó e sua filha se dirigiam o quanto mais perto conseguiam do padre. Lá na Basílica, o vigário sempre ficava no encontro dos quatro corredores. É como se tivessem unidos todos por uma Nave central.

Minha mãe ficava dividida. Meu pai não queria sentar, mas ela era quem sabia onde minha avó e sua filha estavam. Meu pai andava pelo corredores próximos. Eu ficava de mãos dadas com a minha mãe, perambulando entre avó e pai. Ela não soltava por nada, ainda mais quando via multidão. Meus dedinhos chegavam a doer, mas não adiantava reclamar, não. A Dinda dizia que eu tinha mãos de pianista, dedos finos e longos. Vai ver era por conta dos apertos que minha mãe dava nelas nessas ocasiões.

Ano após ano, ir até lá fazia sentido para mim. Era o momento de maior conexão com algo que eu não entendia direito o quê. Não era religião, por isso algo que me tocava diferente da forma que movia a matriarca da família até o Santuário. Talvez algo para a qual você pede algum esclarecimento quando os meninos não te dão paz na escola ou seus pais parecem entrar numa briga infinita. Pede força, entendimento. Acredita e reflete.

Já adolescente, podia escolher ir ou não nessa excursão. Ora ia, ora não. Aproveitava para curtir a família, renovar algo que não entendia direito. Outras vezes, usava o tempo para colocar a leitura em dia, ficar sozinho. Lá pelos 20 e poucos anos, sinto mais perto da necessidade de dar a essa fé alguma forma. Nascido em família cristã, fui ouvir outras formas de desenvolver a espiritualidade. A minha curiosidade natural em ouvir, me fazia sentar e acreditar que era aquilo. Eu sentia me tocar. Passado um tempo, a poeira baixava e percebia que estava encantado com uma linda história, ela me modificou de alguma forma, mas eu precisava seguir e talvez meu lugar ainda não fosse aquele.

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Cheguei em Mariana, em Minas Gerais, na tarde de uma sexta-feira. Era a da Paixão. A cidade estava silenciada. Passei pelas ruas, algumas delas fechadas. Demorei um pouco para entender, mas me ocorreu que ali aconteceria uma procissão, como a que vemos na TV ou relatada nos livros de história e religião. Viajei sem contar com essas festividades. Pousei em Mariana sem me dar conta de quão religioso é Minas Gerais. Como isso foi bom.

Logo fui perguntar que horas iria começar a cerimônia. A porta da Igreja de São Francisco de Assis já estava decorada. Três cruzes, uma no centro e mais a frente e duas menores, recuadas, eram o destaque. Todas elas carregavam um ‘corpo’. Muitas marcas que não sabia se eram do tempo que a peça existia ou feitas para aquela encenação, parecia gesso, mas também poderia parecer de verdade dependendo da sua crença. A escadaria também ganhou seu enfeite. Era um grande aramado de vegetação. Não tive a curiosidade de olhar se eram reais ou, assim como árvore de natal, se monta todo ano. As janelas da igreja ganharam um tecido roxo. Nele, pombas brancas presas.

Cheguei no fim da tarde e me acomodei na mureta que sustenta o mastro da Casa de Câmara e Cadeia. A construção fica de frente à igreja. Eu não fui o primeiro. Vários moradores já estavam por ali. Pensei em sentar num bar que tem ao lado, com uma varanda, mas fiquei com receio de pedir uma cerveja para assistir a procissão. Minha avó me reprovaria.

Enquanto esperava, prestava atenção nas pessoas chegando, se acomodando junto a mim. Logo menos, abri espaço para os senhores e senhoras que vinham caminhando. Todos muito bem arrumados, como o evento demandava para a cidade. Pensava como aqueles idosos andavam naquele sobe e desce sem um calçamento que desse a segurança que a idade pedia. Com o pouco tempo acompanhando a disposição deles, percebi que não tinham o asfalto da atualidade, mas o vigor de antigamente. Estavam melhor servidos dessa forma.

A cerimônia começou quando o sol já tinha se retirado de cena e deixou os holofotes instalados trazerem o ar celestial que o momento pedia. Luzes brancas, iluminavam cruzes e a fachada da igreja. O Sacerdote tomou seu lugar no púlpito. Esperava ver uma encenação como aquelas que acontece no Nordeste. Algo bem grandioso. Mas o que houve foi muito mais simples, mas não por isso menos tocante. Como um Narrador de histórias, o padre tomou a liderança e contou a paixão de cristo ao público. A medida que ia falando, os personagens da trama saiam da Igreja Nossa Senhora do Carmo, que fica do lado esquerdo da de São Francisco de Assis, e se juntavam diante do povo. Nenhuma encenação, apenas narração. E aquela população não tirava o olho dessa movimentação. Horas seguiram dessa forma.

Uma energia tomou conta daquele lugar, como se todos tivessem envolvidos pelo mesmo véu. Independente de crença, a fé era única. Seja num Deus, num homem, na história. Com o tempo, comecei a pousar meu olhar nas pessoas. Vi, perto de mim, dois senhores e comecei a imaginar há quantos anos eles assistiam aquele momento exatamente no mesmo lugar, mantendo a mesma disposição. Mais adiante, uma família inteira, da avó ao neto, em pé, olhando para aquele acontecimento.

Minha fé não estava mais depositada no intangível, mas na de cada um ali. E ela estava tão fortalecida por ser agraciada por ver tantas pessoas reunidas em busca de paz. Meu olhos transbordavam de felicidade e a emoção me invadiu naquele momento. Fui tomado por uma gratidão profunda de poder vivenciar aquilo. A minha espiritualidade estava sendo suprida pelo universo que me rodeava. Me lembrei de poder estar ao lado da minha avó quando menino, sentados no banco da Basílica de Nossa Senhora Aparecida, e ela rezava repetindo o nome de cada membro da família. A sensação era a mesma.

Me sinto preenchido de fé quando trabalho e escrevo com amor, quando percebo os outros, suas peculiaridades, suas fortalezas e posso me mostrar parceiro delas em suas fraquezas. Tenho aprendido a encontrar fé quando os meus medos explodem e se tornam evidentes. Tenho enxergado a divindade que é me dedicar aos desenvolvimento alheio e entender como aquilo me torna uma pessoa melhor. É ser mais afetuoso e pleno. É menos com mais e não mais com menos.

Pouco tempo depois, resolvi me adiantar e segui para a praça central. Apesar da espiritualidade preenchida, o estômago reclamava por algo. Saindo do restaurante, vi um palco montado e perguntei o que aconteceria. A Procissão terminaria ali. Diante dele, um espaço em aberto. Ao fundo, uma escadaria. Fui para lá me alojar.

Uma, duas, meia dúzia, centenas de pessoas foram chegando e se acomodando como podiam. Do palco, pessoas da igreja começaram a dar instruções e um coro começou a cantar bem baixinho, quase uma cantiga de ninar. Não demorou e os personagens da Paixão de Cristo e as cruzes começaram a chegar. Todos em silêncio. Só a voz do Padre se fazia presente num tom calmo e acolhedor, como canto da sereia para os marinheiros em alto-mar. Ali terminaria aquele ritual. Depois da água benta o povo entendeu que era a hora de ir para casa. Seguiram ainda envoltos na bruma da fé, em silêncio pelas ruas de Mariana.

Segui para o Hotel. As vias para o lado que fui estavam bem mais vazias. O povo já tinha se recolhido. Algumas casas seguiam com panos roxos na janela, em apoio à igreja. Estar numa cidade religiosa me parecia uma adversidade alguns momentos depois de ingressar em Mariana e me dar conta de que estava em meio a um feriado religioso. Ao ver o povo na rua, percebi que estava onde deveria estar recebendo exatamente o que precisava. Parei de rejeitar e resistir a experiência que me foi proporcionada. Tenho certeza que vivi de maneira única e particular aquela sexta-feira da paixão.

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Edu Alves
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