Supresas do Caminho

Edu Alves
kayua
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6 min readMay 10, 2018
Acervo pessoa — ,Viagem por terras mineiras

Aqui na cidade de pedra não tem cachoeira, não. Tem bica, mas nunca se sabe se foi obra do homem ou da natureza. Se alguém só a enjaulou ou fez um encanamento trazer água até ali.

Quando meninote, fui numa excursão da escola até a serra do mar, na “estrada velha”, como meus pais falavam. O desafio era descer por aqueles tortuosos caminhos… andando. Até aí, tudo bem. Depois da metade do trajeto, alguém conta que vamos ter que subir. Mas é claro, se descemos, como iríamos voltar para casa? Eu bem desconfiei disso, mas acabei por guardá-la dentro mim. O jeito era caminhar até ouvir o “meia-volta e para cima”.

Lá estava eu, feito andarilho, quando ouvi um barulho de chuveiro aberto, mas era mais forte que aquele lá de casa, sem parada e nem mãe gritando “desliga isso aí, menino”. Por volta dos 7, 8 anos, sempre fui muito de pensar e de menos agir. Então, quase fui atropelado pelos outros garotos que se jogaram na água da cachoeira que aparecia logo depois da curva. Enquanto eu me deliciava nos meus pensamentos, eles se refrescavam na água límpida daquela cascata. Eu não mergulhei e esse foi meu primeiro contato com a queda d’água.

Mais tarde, nas minhas andanças da vida, fui parar em Minas Gerais. Pelas voltas de Ouro Preto. Já havia estado lá em outro momento, muito diferente do que me encontrava agora. Na primeira vez, estava mais para o menino da excursão, apesar de já ter mais do dobro daquela idade. Estava por ali numa escapada de uma viagem de trabalho. Dessa última vez, fui em férias, acompanhado do meu namorado, o Luís.

De frente ao Museu da Inconfidência, encontramos um ponto de apoio ao turista. Sempre me pergunto o por quê desses pontos ainda existirem… Ainda bem que estava lá. Bom, chegamos num dia em que não havia quase nada funcionando na cidade. Dava para ver que quase todo mundo que cruzava conosco pelas ruas, estava de folga. Ou seja, usando aquele seu tempo para resolver as pendências da vida. Todo mundo, menos o guia do ponto turístico.

Ali descobrimos que existia uma cachoeira pela região. Não tão perto, nem tão longe. Assim diziam os Guias. O Luís sempre foi mais empolgado. Assim que falaram em cascata, ele se animou. Eu, beirando a ingenuidade, disse: vamos!

Pelo caminho, admiramos a cidade ficando só no retrovisor. No parabrisas, via a terra vermelha encorpar e fazer seu muro no vidro do carro. Por dentro, pensava se iria precisar lavar o carro para devolver ou a locadora estaria acostumada com a poeira que incorpora a paisagem. Pela janela, tentava registrar na memória todo aquele trajeto. Não pelo caminho, mas, sim, pelas curvas que formavam montanhas, pelos rios que as cortavam, pela vegetação que as cobria. Ao mesmo tempo que os elementos eram os mesmos, a forma se tornava inédita a cada passagem da estrada. O céu estava num tom de azul radiante, marcado somente pela presença do sol e pequenos, quase imperceptíveis, algodões-doces.

Do tom verde escuro, para o mais claro e mais claro, chegando, então, ao terra. O cinza do asfalto, também se tornou vermelho. Nesse ponto, apesar de querer me aventurar, me peguei pensando se deveria mesmo ultrapassar aquela marca. Será que algum homem já foi onde queremos chegar? me perguntei. Senti os olhos do Luis pousarem em mim, esperando algum comentário. Fiz cara de firme, que, para ele que me conhece tão bem, já havia percebido que só não queria mesmo era dar o braço a torcer e me arrepender de não ter ido até lá. Seguimos.

Nessa altura, avistamos uma casa, que parecia vazia. Mais adiante, duas mulheres sentadas numa pedra que devia estar alcançando o calor de uma frigideira. Pensei que, num outro ambiente, elas poderiam ser “mulheres-seta”, indicando um empreendimento que seria construído mais à frente. Sem trocar uma palavra entre elas, nos fitaram até que sumíssemos na paisagem..

As pedras soltas, emaranhadas por uma terra seca, não facilitavam o trajeto. De tempos em tempos, uma surpresa. Um pouco d’água formava uma lama que poderia nos prender, em outro momento, os sons do arranhar do assoalho no chão. Não sabia se o automóvel era baixo demais (para estar ali), ou aquele pedregulho estava fazendo isso propositalmente para me fazer perguntar se havia algo ou alguém mais adiante.

E havia. Algo e alguém. Bom, talvez só algo. No idioma inglês, os animais continuam sendo tratados como “isso” (ou it). Nesse caso, só tinha “it” pela frente. Depois que a estrada voltou a ficar nos tons de verde, me senti entrando no “Jardim Secreto”, como no filme. De repente, bem rente ao carro, a vegetação foi se fechando e fechando, quando menos se esperava, saímos numa pequena vila. Bem lentamente, o carro transitou pela rua sem asfalto. Paramos para olhar. É uma única trilha que rodeia uma capela, nas laterais, casas. Alguns cachorros deitados na porta delas levantaram a cabeça para nos ver chegar e só. Nenhuma porta se abriu, ninguém saiu da igreja.

Meus pensamentos sobre o que eu estaria fazendo ali disputavam com o espírito aventureiro a minha atenção. Os olhos corriam o lugar querendo não perder só um detalhe daquilo tudo. Estacionamos para caminhar e entender se estávamos numa vila fantasma.

Próximos da igreja, somos recebidos por um cachorro preto, pequeno, vira-lata, penso eu. Muito agitado, olha para a gente e late. Na sequência, corre para o que parece uma passagem entre algumas casas. Eu não sou de dar confiança para animais, ainda mais quando me devolvem latidos, mas o Luís, que se derrete por eles, logo foi ver do que se tratava.

Nos perguntamos se ali era o caminho para a cachoeira que nos foi prometida lá no centro de Ouro Preto. Não poderia ser… Olhávamos para um descidão. Pedras muito mais encorpadas do que as que nos trouxe até aquele ponto. O carro certamente não chegaria até o fim daquele trajeto. O cachorro latia e corria na nossa frente. Ah, certamente não iria sair dali feliz se eu não entrasse naquele lugar. Mas será que aquele cachorro foi treinado para enganar turista enquanto alguém saqueia nosso carro? Bom, acho que ainda estava tomado pelas mazelas vividas em São Paulo. Seguimos pela passagem.

As pedras viraram um caminho, que depois viraram mais pedras, seguidas de barro, seguidas de terra seca batida. Pó. A vegetação surge num verde queimado de sol. O caminho se mantém, o cachorro aparece sempre quando paramos para pensar se devemos continuar andando. A essa altura, já verifiquei algumas vezes se havia sinal de celular. Em vão. Tampouco ajuda de qualquer aplicativo de geolocalização. Só o cachorro mesmo.

Numa bifurcação, Luis e eu quase entramos em pane. Até ali, andamos por volta de 20 minutos à pé. Eu não queria voltar, mas também não queria pegar o caminho errado. Cadê aquele cachorro? A essa altura, já tinha decidido que ele era o guia. Não tinha outra alternativa. Mas ele sumiu justo agora. Esperamos por alguns instantes e um latido surgiu no meio do mato. Ficamos aguardando e, de repente, ele surge do lado esquerdo. Parecia mesmo que queria é que a gente o visse. Senti também que aquele latido era uma bronca para apertarmos o passo. Afinal, já era meio da tarde e logo vai escurecer. Mais 10 minutos e pronto. Lá está ela, a cachoeira.

A água cai como um véu branco entre as pedras que, úmidas, mudam de cor. A cascata parece desenhar na paisagem seu caminho sinuoso e abrir passagem para o seu fluxo, o seu poder. Inunda um tanque de água fria e límpida. Na beira, o cachorro a olha. Ali entendi que ele trabalha para ela. É o guardião da sua beleza e faz questão de mostrá-la para os aventureiros que aceitam o desafio de confiar nele. Ficamos ali sozinhos. Molhei os pés, as mãos. A água gelada não nos convidou para entrar, só admirar.

O cachorro sumiu na paisagem e não nos acompanhou na volta. Não pude agradecê-lo pelo espetáculo. Me senti mais que um espectador, mas parte desde o momento que aceitei matar a curiosidade e enfrentar o medo e a incerteza e adentrar pelo desconhecido. A vista era recompensa.

Inspire-se >> Entre e satisfaça sua curiosidade.

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Edu Alves
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