Um Mundo para chamar de meu

Edu Alves
kayua
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3 min readSep 22, 2019

Lembro da primeira vez que vi uma janela que parecia ter 3 vezes o tamanho do meu pai, a pessoa mais alta que conhecia até os meus 8 anos de idade. Ela ficava na escola, na minha sala de aula, e era formada por quadrados de ferro pintados de azul, preenchidos por um vidro transparente. Nem sempre limpa como a da casa da minha mãe, mas a maior pela qual eu já tinha tido a chance de ver o mundo.

E dali, com a sala vazia, enquanto escutava a professora dizer para a minha mãe “seu filho é um bom aluno, mas ele vive no ‘mundo da lua’”, imaginava uma cidade lá fora, cheia de desafios dos quais não cabem na cabeça de uma criança.

A expressão Mundo da Lua passou por mim diversas vezes. E acho que o ‘mundo’ que vivia nunca me deixou entender ou me abalar. Na época eu nem sabia, mas na minha cabeça tudo já se formava em 3D. A professora não entendia, mas por aquela janela eu já via o mundo colorido e ganhando diferentes formas nos meus pensamentos. E tinha que ser assim mesmo, elas só podiam existir ali, naquele quadrado de vidro, na minha caixola. E ninguém mais, nem minha mãe, podia vê-las, senti-las ou imaginar que existiam.

Fonte: Pexel

Aos 9 anos, meus pais se separaram. Mudamos de casa, de vida. A minha história tomou outro rumo. Ou o caminho que já era dela. Me vi sozinho, todas às tardes, depois da escola. Dona Rosa, minha mãe, tinha que dar conta de tudo por ali e minha irmã aproveitava a juventude que despontava aos 18 anos. Desse jeito, a minha casa se transformava e ali eu viajava pelo meu mundo. O lápis de cor formava o caminho que levava até uma grande fábrica. Os super heróis, na minha história, eram pessoas comuns, como pais e mães, grandes empresários.

Certa vez, mergulhado no sofá de casa, apenas com o som da TV ao longe, fui transportado para a adultice. Lá, eu era importante, as pessoas precisavam falar comigo para tomarem decisões. Eu tinha uma mesa grande, rodeado de canetas — ah, como eu amava canetas — e papéis. Passei uma porção de tempo ali, conversando e me sentindo importante. Outra vez, fui parar numa cidade do interior. Lá eu tive a minha primeira fábrica (de porcelanas). Eu morava com muitas pessoas numa casa muito grande, com quintal por todos os lados.. Mas um crime havia acontecido lá. E eu, como esperto que era, tinha o dever de descobrir. Voltei muitas vezes nessa história cada vez que me debruçava diante da janela ou no chão do meu quarto até conseguir descobrir quem foi.

Numa noite, após um amigo da minha irmã ir embora, vejo um livro. Ele esqueceu algo. Comecei a folhear aquela ficção, cada vez mais curioso com seu conteúdo. Naquele emaranhado de folhas presas por um fio ao centro morava uma história. Esta que não foi criada por mim — mas é muito boa — pensei. Era Agatha Christie em “Um convite para um homicídio”. Minha primeira grande descoberta literária.

Em pouco tempo, li. Reli. E fui buscar mais. Vi numa pequena biblioteca escolar inspiração para popular ainda mais meu ‘Mundo’, aquele “da Lua’. E ali fui fazendo mais histórias brotarem no terreno fértil da imaginação.

Anos depois, relembrando essas memórias, me dou conta de como elas formaram a pessoa que sou. O que me instiga, desperta, inspira. Vejo histórias nas pessoas porque naquele momento, vi que eram possíveis de serem expressadas. Na escrita, depois em outras formas. Além de imaginar, passei a ler histórias. Me tornei ouvinte ávido de cada uma que chega até mim. Ainda sigo registrando as minhas, elas trazem parte do que vi, senti e ouvi ao longo do tempo, de forma consciente e inconscientemente.

O menino Mundo da Lua segue comigo, vivendo protegido entre personagens, sensações, cores e traços que um dia criou.

Texto publicado originalmente no livro Narrativas de Vida, Museu da Pessoa, em 2017.

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Edu Alves
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