Pode o anonimato fortalecer direitos?
Medo de perseguição e retaliação está entre os entraves ao exercício do direito de informação.
O texto da constituição de 1988 (artigo 5º, parágrafo IV) é contundente ao estipular que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Mas até onde a vedação irrestrita ao anonimato presente na Constituição pode estar impondo barreiras ao exercício do direito de liberdade de informação no Brasil?
Um cidadão somente pode se expressar livremente se puder obter informações fidedignas e suficientes sobre um tópico. Com isso, se o brasileiro sente sua privacidade ou integridade ameaçada nos processos de pedido de informação, a livre manifestação do pensamento é enfraquecida. Na América Latina, somente Brasil e Venezuela vedam constitucionalmente o anonimato.
É importante ressaltar que a rastreabilidade da identidade de um cidadão é fundamental na manutenção da justiça: se não há como identificar de quem infringiu uma lei, é impossível responsabilizar o violador. Esse debate é intenso na área de direito da internet, já que a rede mundial de computadores possibilita que muitos indivíduos atuem fora da lei escondidos por aliases, nicknames, IPs falsos e pela deep web.
Por outro lado, no campo do direito à informação, a ausência de garantia de anonimato pode deixar os cidadãos acuados, com medo, inibindo o exercício político e de cidadania. Exemplos desse sentimento de ameaça não faltam: diversos são os relatos de perseguição política baseada em pedidos de informação considerados ameaçadores para os governos. No Rio de Janeiro, moradores da baixada fluminense se recusaram a cooperar com ONGs locais na realização de pedidos de informação, com medo de retaliação; e até países que asseguram o anonimato, como a Índia, também sofrem com constantes ataques a ativistas do direito de informação.
No Executivo Federal, o Decreto 7.724/12 cumpre a vedação fazendo obrigatório o fornecimento de um número oficial de identificação — no caso o CPF — para que se possa realizar pedidos de informação. Entretanto, na prática, a lista de itens necessários para identificação varia bastante, incluindo práticas abusivas e desnecessariamente detalhadas.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro é outro órgão que exige, além do CPF, RG, data de emissão do RG, órgão emissor, data de nascimento, e-mail, endereço completo, e telefone — tudo isso por meio de campos de preenchimento obrigatório.
Caso ainda mais admirável ocorre no Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, que pede que o requerente digitalize seu documento de identidade para poder enviar o pedido.
O artigo 10, parágrafo 1º da Lei de Acesso à Informação é claro ao determinar que “para o acesso a informações de interesse público, a identificação do requerente não pode conter exigências que inviabilizem a solicitação”. O artigo 31, parágrafo 1º inciso I, também é claro ao afirmar que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”, sendo que essas informações pessoais “terão seu acesso restrito a agentes públicos legalmente autorizados e às pessoas a que elas se referirem, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção”.
Ora, se o Estado não dá garantias de que trata com seriedade as informações pessoais de identificação contidas nos pedidos de informação, estaria ele no direito de fazer da identificação oficial obrigatória? A necessidade de mecanismos de neutralidade de identificação urge, incorporando proibições e penalidades para quem fizer mau uso destes dados pessoais.
Outros países já colocam em prática soluções para a questão. A plataforma de pedidos do México, por exemplo, agrega as identidades dos requerentes num sistema centralizado que envia pedidos para todos os poderes e níveis de governo, preservando a identidade dos requerentes a um número restrito de operadores.
Há formas de burlar estes sistemas e, ainda assim, saber a identidade de quem está pedindo informações, e nisso a tecnologia pode ser uma grande aliada por meio da encriptação de dados. Por meio de identidades ‘encriptadas’ ou ‘pseudonimizadas’, é possível manter a possibilidade de responsabilização, tratado de forma devida os dados pessoais, sem prejuízo ao direito de informar-se, principalmente num contexto social-político em que o pleno e seguro exercício da democracia vem sofrendo constantes ataques.