A tormenta dos amores vividos em silêncio

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5 min readJan 15, 2018

Crítica de Corpo e alma (Ildikó Enyedi, Hungria, 2017)

Por Juliana Berlim

Natureza e cultura, civilização e barbárie, forma e conteúdo… Na floresta das oposições, “corpo e alma” se sedimenta como a mais basilar, a célula-mater dos antagonismos ocidentais. Embora por tantas vezes desconectados, corporeidade e espiritualidade sempre estiveram, mesmo que sobre a rede do dissenso, intimamente conectados. Um não existe sem o outro, e, a partir desta premissa, constrói-se a linha de raciocínio do filme húngaro Corpo e alma (Teströl és lélekröl, 2017), vencedor do Globo de Ouro no Festival de Berlim 2017 e forte candidato ao Oscar de Filme Estrangeiro em 2018 (Se o sueco The Square de Ruben Östlund ou o alemão Em pedaços de Fatih Akin deixar).

Ainda que a tradução para o inglês nos traia, as imagens reforçam a polarização do argumento. Acompanha-se o movimento pendular entre a carne, em seu sentido mais lato, já que o principal cenário é um abatedouro de carne bovina, e o espírito dos protagonistas, expresso nas solidões marcadas pelos espaços laborais vazios, de luz ocre, opaca ou gélida ou, sobretudo, na intimidade, solitária e calada. Os protagonistas não apresentam nenhum prazer íntimo específico, nenhuma atividade fora do trabalho que os anime: alimentam-se, tomam banho, uma ou outra distração trivial, tal e qual afazer doméstico, Endre (Géza Morcsányi) e Mária (Alexandra Borbély) prosseguem, ao longo da primeira parte do filme, em um movimento plasmado, como se à espera da epifania que desencadeará o desenrolar do restante de suas vidas; como algumas personagens de Clarice Lispector, eles seguem suas trajetórias pessoais sem se dar conta da proximidade do acontecimento. Neste caso, da chegada do amor.

A idiossincrasia do acaso os reúne; a inspetora de qualidade do abatedouro sai em licença-maternidade e é substituída por Mária, taxada desde o princípio como “esquisita” por sua enorme precisão na classificação das carnes abatidas. Outra assimetria marca o encontro entre Endre e Mária, porque classificar a carne uma categoria abaixo do esperado é um problema contábil, sobre o qual o diretor financeiro Endre deve ser informado. Desta circunstância fortuita nasce uma conexão, ainda irrisória, que se aprofundará no decorrer da projeção como decorrência de outro evento casual, um furto na empresa. A investigação policial leva à necessidade de avaliação psicológica de todos os funcionários; ao fim e ao cabo, a psicóloga constata que Endre e Mária compartilham o mesmo sonho, todas as noites.

A cena de abertura do filme flagra um trecho de floresta em pleno inverno europeu. Mediados por um pequeno lago, antinatural devido a sua pequena dimensão — conforme constatará Endre mais adiante em um diálogo com Mária — um cervo macho e outro fêmea parecem se buscar. O par, em diferentes momentos da projeção, ensaia a aproximação, de modo gradual, mas contínuo. É uma metáfora por demais óbvia: os avanços que se observam nos dois animais constatam-se, em seguida, em suas contrapartes humanas. Apesar disso, o filme tira alto proveito da poesia sugerida por estas trajetórias em paralelo, dando um salto de peito aberto no inconsciente das personagens, trazendo-o à superfície, transmutando a latência emocional em experiência sensorial.

O roteiro é, em suma, um boy meets girl. A diferença é como se transpõe a aproximação filmicamente. O desenho das personagens é elucidativo neste sentido. Endre é um homem bastante amargurado com suas frustrações amorosas. Ainda viril, ainda atraente (Uma cena de sexo casual cumpre a função de nos informar deste perfil, sobretudo pelos elogios ao desempenho sexual de Endre por parte de sua parceira, bem como o “flerte” involuntário com a psicóloga), ele prefere não se envolver afetivamente com ninguém e, depois de, possivelmente, um divórcio muito doloroso (assim se infere), retira-se do jogo amoroso (a imobilidade do braço esquerdo seria uma metáfora desta falência íntima) até conhecer a bela Mária. A brutalidade do primeiro encontro dos dois, no qual Mária destaca a deficiência de Endre sem escamoteios, diz, lógico, mais sobre a emissora do que sobre o receptor.

Mária é, sem dúvida, a personagem mais fascinante do filme. A intérprete, Alexandra Bórbely, consegue exprimir todo o desajuste psicológico da personagem, refletido na quase inexistência de interações sociais duradouras, em face fixa e corpo teso, quase sem movimentos espontâneos. A imaturidade emocional de Mária é tanta que, no princípio da paixão por Endre, começa a simular os encontros com o amado com seus brinquedos guardados e, não podendo conter a ascendente do sentimento, consulta seu antigo terapeuta infantil (!), que se exaspera e implora que ela, por favor, se consulte com um terapeuta de adultos (Mária também considera muito inapropriado que a chamem pelo diminutivo). A descoberta do sonho em comum com o homem por quem se apaixona (paixão correspondida, diga-se) é a válvula de escape e a tábua de salvação (Esta expressão, conforme uma das cenas finais aponta, é menos messiânico do que parece) para uma alma atormentada pelo primeiro amor de uma vida (A personagem, na casa dos trinta, provavelmente nunca experimentou qualquer contato físico com um homem antes).

O clímax é, sem dúvida, a tão esperada relação sexual de ambos, que se consuma em um resfolegar animalesco, o animal da floresta incorporando-se ao capitalista de Budapeste no corpo de Endre, sob o olhar sempre ambíguo, mas cúmplice, de Mária. Por fim, é uma história que se pretende universal, de certo modo atemporal. Em tempos de pós-modernidade líquida, multiculturalismo, movimentos identitários, fogo e fúria de cabelos eriçados, encanta acompanhar dois indivíduos que fazem um esforço genuíno de suplantarem as muitas diferenças que os separam em nome de um interesse maior que os une — mesmo que a história padeça de uma visão do amor romântico como esperança última de existências humanas fraturadas, o sopro animador da vida. Endre e Mária continuarão idiossincráticos, taciturnos, perturbados, mas o intenso do amor os aproxima, e tão logo a relação se efetiva, a conjunção do sonho se apaga e eles não precisam mais sonhar suas existências, pulsantes que estão ao toque do ser amado. Fundiram-se numa só as duas instâncias: corpoalma.

Juliana Berlim

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