O lado brilhante do trumpismo

k-post punk
kinodeleuze
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3 min readOct 8, 2017

Crítica de “Logan Lucky” (Steven Soderbergh, 2017)

Na década de 2000, Soderbergh dirigiu a trilogia “Ocean”, protagonizada por George Clooney e recheada de astros de Hollywood: “Onze homens e um segredo (2001)”, “Doze homens e outro segredo” (2005) e “Treze homens e um novo segredo” (2007). Foram três filmes ágeis com temática amena, que repercutem a atmosfera norte-americana de prosperidade e crescimento econômico daquele período. Então veio a crise dos subprimes em 2007–08 e o céu do sonho americano desabou novamente sobre a classe trabalhadora. O purgatório de frustração, paixões tristes e desemprego se abateu também no cinema. Clooney vai estrelar “Amor sem escalas” (Jason Reitman, 2009), onde é um especialista em demissões contratado para poupar os patrões do trabalho sujo de mandar os funcionários embora e fechar filiais de empresas, enquanto Soderbergh faz um de seus filmes mais sombrios, a balada apocalíptica “Contágio” (2011), um filme hobbesiano sobre a guerra de todos contra todos que se segue a uma epidemia global.

“Logan Lucky”, o último filme do diretor, pode-se dizer que é um filme pós-crise, fechando a fatura desse período de inchaço e espouco da bolha econômico-financeira. Soderbergh vai à base eleitoral do trumpismo para filmar a classe trabalhadora branca e caipira, aquela que frequenta boates country, acompanha as corridas de Nascar e socializa nos espaços comunitários da América profunda: recitais infantis, bailes de formatura, boliches, cultos e missas dominicais. São personagens que pagam a conta pelo buraco em que os Estados Unidos se meteram: um operário manco demitido “por razões do seguro”, um presidiário, um veterano de guerra que perdeu o braço no Iraque, dois nerds desajustados, entre outros tipos ideais weberianos de uma era de descenso e desesperança. É aí que o filme vai inverter o lugar comum: não os retrata nem como “white trash” comedor de hambúrguer, sem educação e truculento, nem como refugo geopolítico jogado de escanteio pelos poderosos, para então se insuflar de nostalgia, raiva ou depressão em meio à pasmaceira existencial. Nem como os enxergam as elites liberais e universitárias rendidas ao ‘menos pior’ clintonista, nem como vítimas de uma estrutura perversa exercendo a sua justa revolta antissistêmica, como gostariam de vê-los certa esquerda nacionalista antiliberal.

Soderbergh filmará a genealogia desses personagens que, para uns integram uma onda fascista, para outros, a emergência do dito “conservadorismo de fundo” da América interiorana, em reação a políticas reformistas do governo Obama em favor de pobres, latinos, negros e imigrantes. O produto final dessa gênese no filme, diversamente, será outro: pessoas que em vez de se confundirem numa massa homogênea de ressentimento e estupidez, concatenam-se alegremente para realizar o roubo do século. No subterrâneo de uma corrida lotada da Nascar, organizam a sua vingança coletiva contra o sistema, roubando grandes franquias e um banco que guardava o dinheiro vivo. A quadrilha não prescinde de uma justificativa moral: não estão roubando qualquer um. O que acontece a seguir é uma versão ‘hi-ho’ de Robin Hood: a distribuição equânime do butim, a reconstrução dos laços sociais traumatizados, a apresentação de uma mitologia renascida que ganha o coração do povo local. Orientada para o futuro otimista, tão bem personificado na filha do operário que, na apresentação na escola, prefere cantar uma canção regional da West Virgínia ao hit da Rihanna, porque o pai e a comunidade gostam.

“Logan Lucky” é sobre o lado brilhante da composição social que vota Trump, sua inteligência reprimida, seu altruísmo acima de qualquer recalque, sua criatividade a toda prova, capaz de fabricar explosivos com um saco de jujubas e canetas de cloro. Depois do elogio descomplexado do arrivismo e do beijo no princípio hobbesiano que justifica o soberano, Soderbergh apresenta-nos com extrema eficiência e economia de meios cinematográficos, extraindo o máximo do mínimo, a sua própria versão otimista do cenário pós-crise de 2008. É tudo tão perfeitamente articulado e narrado no filme que nos poupa do trabalho de contemplar a paisagem social, política e econômica que move as linhas invisíveis da trama. O filme é tão bom, tão excelentemente dirigido, que só resta a nós, — espectadores envolvidos por esse tour de force que nos eleva do purgatório, — acreditar de pés juntos nos olhos esperançosos da menina. E na bandeira americana.

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