O paradoxo de Paterson

k-post punk
kinodeleuze
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6 min readApr 28, 2017

Crítica de “Paterson” (Jim Jarmusch, EUA, 2016).

Paterson tem o mesmo nome da cidade, mesmo nome que vai estampado no letreiro do ônibus que o protagonista dirige todos os dias por profissão. Os dias e as horas escoam sem comoções, como as conversas sempre a baixo volume, quase murmuradas, como as tranquilas interações com a esposa, os amigos, os colegas, como os passeios com o cão, como o trânsito estranhamente plácido, as ruas fantasmagoricamente rarefeitas, a própria cidade pós-industrial cuja presumível criminalidade aparece sublimada em armas de mentirinha e carros com gangues inofensivas. A ação transcorre como uma torneira entreaberta de onde verte um fio laminar de água, jamais turbulento ou fazendo barulho. A fleuma pervasiva se cristaliza no rosto de Paterson, membro da classe trabalhadora que toca a rotina dos dias na mais completa despretensão e modéstia, contente no ordinário de emprego, casa e casamento. Não demonstra sequer interesse em publicar os próprios poemas, a sua grande paixão. Prefere guardá-los num caderninho secreto, como se fosse um diário íntimo.

Este não é um filme sobre a beleza muda do cotidiano e suas delicadas epifanias nem sobre alguma romantizada poesia secretada pela simplicidade da vida, como que uma beleza precipitada pela mera força da gravidade. Seria confundir conformidade com conformismo. Como o vampiro Adam de Amantes eternos (2013), Paterson se refugia numa existência subtrativa, a salvo da saturação midiática lá fora, no que ele mostra estratégia. Não porta celular, não usa laptop, não lê livros no Kindle e não tem perfil no Facebook. Prefere anotações à moda antiga e contatos olho no olho, presta-se a ouvir os mais desinteressantes comentários, delonga-se em situações prosaicas e aparentemente bobas. A escrivaninha pessoal no porão da casa lembra uma cápsula do tempo, rodeada de livros velhos, móveis vintage e outras referências empoeiradas. Paterson certamente não sucumbe aos ciclos da semana, do relacionamento, do cachorro, do trajeto do ônibus, do bar. Sente neles um esquematismo formado por rituais, padrões geométricos e cromáticos, regularidades (“same old, same old”), refrões, todo um carrossel de horas que se repetem do início ao fim do filme, como uma cobra niilista que come o próprio rabo, mas em momento algum Paterson coincide inteiramente com eles.

O ritmo lânguido do filme aos poucos vai elaborando um duplo, um deságio em relação à sequência de instantes repetitivos regida pelo calendário e o relógio. Além do Paterson que tem de se colocar em cada situação rotineira e repetitiva, vamos conhecendo um segundo Paterson, um segundo “eu” cuja existência não pode ser quantificada em dias ou horas, nem encaixada perfeitamente no panorama de significados do entorno. Este segundo “eu” aquém dos instantes quaisquer, mais profundo, é o que sente e delibera, o “eu” que cria, eu lírico. Se o primeiro “eu” é governado pela rotina e disposto na linearidade de um dia a dia banal e doméstico, o segundo se desdobra em devaneio num fluxo único que jorra como poesia. Quando isso acontece, a montagem assegura que os contornos do tempo do relógio se borrem, os encadeamentos causais se despedacem e os âmbitos da existência se interpenetrem, segundo imagens lembranças que se misturam entre si à maneira de sucessivas marcas d´água.

Paterson devaneia no ônibus, em casa, no banco do parque de onde assiste ao fluir da cachoeira. A sua consciência não é conformista como num monolito feliz, mas dobrada e amarrotada. De um lado, a presença atual, social e superficial, sucessão de dias, de horas, de esquemas, justaposição de momentos repetidos, pontuações que marcam espaços. Do outro lado — justamente, ao lado — o “eu” profundo que é fluxo contínuo onde tudo é poesia, que emerge na tela já pronta como se movida pelo vento. De onde vem essa poesia? Vem do contínuo produzido pelos estados afetivos que se sobrepõem uns aos outros, onde a mulher amada se mistura ao formato da caixa de fósforos, as suas cores azul e branco a blocos de sensação de outra forma indefiníveis, limiares emotivos sutis onde tudo é poesia ou não é nada. Vem da mobilização do real que, de outra forma, é governado em seus esquemas. Descontínua é a rotina que introduz uma quebra do movimento: o supervisor que lembra a hora de saída do ônibus, a mulher que chama para uma conversa no sofá, o cachorro que precisa passear, a pane elétrica que interrompe a viagem imóvel da consciência.

Em Paterson, a dobra dos dois “eus” que coexistem como gêmeos díspares não é vivida como fratura, como fonte de inquietação, ansiedade ou compungência. O “eu” profundo da poesia escorre como um rio subterrâneo de que o “eu” superficial não passa de afluente visível e tangível, como uma parada tática ou luz refratada, mas ainda assim inextricável do outro. A poesia exprime o infinitamente movente que as imagens compõem, de modo a reconstruir o vigoroso esforço de introspecção do protagonista. Inatual na rotina, intempestivo no seu tempo, out of joint, nada há nele de conformista. O paradoxo de Paterson é o mesmo de Zenão e repercute a ancestral querela eleática sobre a diferença entre duração e tempo, uma realidade permanentemente duplicada. O movimento não pode ser entendido pelo relógio, como sucessão de horas, nem pelo calendário, de dias, mas pelo intervalo entre os momentos, o que conta é o “entre” que o filme explora através do protagonista. Na inércia dos acontecimentos banais, sentir a diferença qualitativa na sucessão de eventos que se juncam uns aos outros como as plantas de um jardim mal cuidado. Apesar de todas as regularidades e mesmices, um dia não pode ser deduzido de outro, uma segunda-feira não é a mesma segunda-feira.

Se pressentimos a nostalgia do universo formulado pelo cinema de Jim Jarmusch, com seu canto triste ante o sacrifício da poesia em face das saturações, gadgets e congestionamentos do tempo moderno, há um suplemento inédito neste filme. O mundano e imperceptível Paterson se diferencia do imortal e etéreo Adam. Ao diagnóstico jarmuschiano de que perdemos a capacidade de simpatizar com o fluxo do real, Paterson dá tempo ao tempo e assim pode reintroduzir nele a capacidade de mudança. A sua liberdade é criativa. A grande questão depois do fim do futuro, como escreveu o filósofo Gilles Deleuze a respeito das sociedades de controle, não é mais “o que fazer”, como nos tempos leninistas da revolução. Mas sim voltar a ser capaz de fazer, perscrutar não mais pela experiência pura e simples (fazer, fazer!, otimismo da ação), mas por suas condições mesmas, condições de política, de ética, de amor. Daí a nova tarefa: interpor o ensimesmamento ao ardil das conjunturas, mas um ensimesmamento impessoal e criativo que reabre as condições da experiência. Para, assim, multiplicar-se ao conquistar a própria solidão e no processo tornar-se apenas uma peça num quebra-cabeças em aberto onde as outras ainda não existem.

No filme, as cenas de devaneio terminam por usurpar o “eu” superficial das armadilhas de sua mesmice, de seu tempo lento ou acelerado, mediante infinitas lentidões e acelerações ainda mais intensas, uma proliferação de instantes notáveis somente divisáveis enquanto tendências no próprio fluxo e quando este é possessão completa do corpo pela imagem. Nesse momento, para Paterson, nada sobra para dizer, para mostrar, nada a exibir, não mais dizer “eu”, ou melhor, não existir mais nenhuma importância em dizer “eu”: “identificar-se com o não-eu a tal ponto que não haja mais um eu para morrer” (Clarice Lispector). Atingir uma zona de indiscernibilidade absoluta no sopro das coisas, habitar o continuum fluente tal qual um peixe camuflado de pedra no fundo do mar. Um esforço zen de muita sobriedade para eliminar tudo que é ânsia, remorso, insatisfação comezinha, reclamação ou senso de perda, tudo tão dispensável. Fundir-se à paisagem, às paredes de tijolos, homônimo da cidade e de tudo, enfim impessoal, pois não estamos no mundo como um invólucro. Devimos com ele ao contemplá-lo de dentro.

Olhamos para Paterson e dele já não podemos dizer mais nada. Um ser especial que não emite nenhum sinal característico, nenhuma pista, ninguém poderia suspeitar… um motorista de ônibus que gosta de Emily Dickinson.

Bruno Cava também escreve críticas no Quadrado dos loucos (quadradodosloucos.com.br)

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