Nota do editor: o artigo abaixo é um estudo aprofundado sobre o uso das cores em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. Assim, é essencial que você tenha assistido ao filme para evitar que o debate se torne uma série interminável de spoilers. Combinado?
Travis Henderson foi um homem muito feliz. Numa época em que era rodeado por pessoas que o amavam, a paixão que nutria pelo seu cotidiano emanava de cada um dos seus poros. Era impossível para ele conter tanta alegria, ao passo que um nostálgico vídeo filmado em Super 8 tornou-se a única tradução perfeita daquela que é a melhor fase de sua vida.
Fase essa que, com o tempo, deixou como legado uma série de dolorosas cicatrizes.
Falar de Paris, Texas, inesquecível obra de Wim Wenders, é discorrer sobre um tipo de personagem caro ao cineasta. Aquele que, trágico, jamais consegue alcançar o direito de degustar suas obsessões. Assim como o anjo Damiel de Asas do Desejo (Wings of Desire, 1987), ele pode apenas observá-las, admirá-las, ainda que batalhe a todo momento para contrariar seu criador.
Dessa forma, decidi iniciar meu estudo sobre uma de suas obras-primas ignorando a ordem cronológica original e trazendo como introdução fragmentos do vídeo que julgo como sendo a espinha dorsal do projeto, também responsável por ser a devastadora lembrança que, posteriormente, viria a destruir nosso protagonista.
Observe as imagens com calma. Quais sentimentos diria que transbordam de cada uma delas?
Não tenho dúvidas de que suas respostas sejam facilmente associadas à paleta avermelhada que toma conta dos frames que escolhi. Travis, afinal, amou e fora retribuído em sua necessidade de ser amado. Como tal, aprendeu que nada se compara à experiência de encontrar em semelhantes todos os significados que, antes ausentes, apenas demarcavam colunas vazias em seu peito.
E aí reside a tragédia do personagem: com o passar dos anos, o referido vídeo também se tornou a principal prova de que sua capacidade de amar fora despedaçada ao longo do tortuoso caminho que adotou para si. Eis aqui a deixa para que voltemos ao início de Paris, Texas.
Sendo Travis um sujeito devastado por uma paixão da qual nunca conseguiu se livrar, é natural que ao longo de seu cotidiano o personagem jamais deixe de pensar em Jane e nos bons momentos que um dia compartilharam. Dito isso, quão simbólica é a primeira sequência do filme?
Surgindo em meio a um deserto, Travis anda. Incansável, ele parece hipnotizado pela busca daquilo que ocupa sua mente naquele instante: seu grande amor e o desejo de chegar ao lugar que um dia fez parte dos planos do casal.
E já que essa grande paixão ocupa cada beco de sua cabeça, não seria o boné vermelho utilizado por ele uma bela introdução à lógica visual de Wenders? Falaremos mais sobre ela a partir de agora.
Auxiliado por uma paleta de cores escolhida de maneira milimétrica, Wenders procura despedaçar os sentimentos acumulados por Travis ao longo dos anos e espalhá-los pelos cenários de Paris, Texas, ressaltando a incapacidade que o personagem tem de se livrar do mais importante relacionamento de sua vida. E qual o artifício central para o sucesso de sua estratégia? A cor vermelha, claro.
Começamos a discorrer sobre essa teoria observando os rastros que ela deixa pelo caminho do personagem. Indo de detalhes mínimos dentro do bar (note as cervejas Dos X dentro da geladeira, abaixo) à manivela de uma torneira, é como se Travis enxergasse resquícios de sua antiga relação com Jane em todos os lugares. Ou seja: o vídeo que dá início a esse artigo surge diluído desde o começo do filme.
Pouco tempo depois, Walt o encontra e, com isso, adiciona camadas à lógica visual de Wenders, nas quais cores opostas àquela que define as ações de Travis ganham espaço. Perceba, por exemplo, como o azul do hotel e do figurino de seu irmão surge como um sinal de que a busca do protagonista foi adiada e de que a presença de um parente há muito não visto traçou uma nova rota a ser seguida por ele. O que só fica mais interessante quando um avião que deveria afastá-lo de vez de sua trajetória inicial surge emoldurado e decorado pela mesma cor.
Vermelho para instantes nos quais ele busca suas antigas relações e cores opostas para quando o personagem é questionado sobre sua obsessão ou impedido de buscá-la. É assim que Paris, Texas procura descrever os sentimentos de Travis em relação àquilo que o personagem vive em cada momento do longa.
Dessa forma, como não considerar belo o momento em que Hunter, seu filho e símbolo máximo do amor que sente por Jane, finalmente o reencontra?
Vestido num branco impessoal que denota bem a estranheza de ver o pai depois de tantos anos, o garoto inicia sua reaproximação de maneira trôpega, desconfiada, apenas para, aos poucos, se interessar por Travis e adotar a cor vermelha que tão bem caracteriza seu introspectivo pai.
A lógica de Wenders, nesse momento, ganha contornos de catarse quando, decididos a fugir para procurar Jane a partir de pistas deixadas por depósitos de banco, Travis e Hunter abraçam de vez o amor que sentem um pelo outro. Abaixo, o crescimento gradual de uma semelhante paleta de cores que os une de maneira sólida e bela.
Aqui, devo chamar sua atenção para uma das mais belas cenas vista na obra de Wenders e que se passa no alto de um andaime. Nela, Travis dá a notícia sobre a viagem que fará com Hunter ao seu irmão, Walt. Note que o outdoor em construção logo ao lado dos personagens traz consigo a imagem de uma mulher sendo montada, numa clara referência àquilo que acontece na mente do nosso protagonista quando decidido a seguir seu coração.
Voltando ao tema, é a partir da união iniciada na casa de Walt que pai e filho decidem fazer uma longa viagem à procura de Jane com base num plano um tanto improvável: aguardá-la do lado de fora do banco no qual, mensalmente, a personagem deposita dinheiro para Hunter. E nem preciso dizer qual é a cor do carro dela quando, depois de horas, o pequeno a fita saindo do estacionamento, não é?
Assim se consolida a teoria que defendo, na qual o vídeo feito em Super 8 possui a paleta de cores que melhor representa a família Henderson, sendo ela fragmentada ao longo de Paris, Texas como forma de guiar Travis. Caso tivessem a chance de se reunir para uma foto, é certo que teríamos no abraço compartilhado entre pai, mãe e filho uma cópia exata de um dos frames registrados naquela bela viagem de verão.
Mas Wenders não se contenta em despedaçar o amor de Travis, dando-o como migalhas de pão a serem seguidas pelo nosso faminto protagonista. O diretor ainda concebe o complexo reencontro dos pais de Hunter como se estivesse certo de que tal momento se tornaria um dos mais impactantes diálogos do cinema. E saber que sua lógica permanece impecável durante a conversa entre Jane e Travis é notar quão ambicioso pode ser um diretor quando em total controle sobre sua criação.
Observemos a primeira conversa entre ambos mais de perto: depois de seguir o carro de Jane, Travis pede para que Hunter permaneça em seu veículo e, sozinho, adentra o local no qual sua ex trabalha. Ao público, basta notar o tom predominante no lugar para saber que o protagonista não sairá muito feliz dali.
Mas se a primeira sala visitada por ele revela apenas uma desconhecida tentando ganhar alguns trocados, sua tentativa seguinte traz a imagem que todos torcíamos para admirar desde o começo do filme. E perceber que todo o amor obsessivo de Travis transborda de cada parte do quartinho no qual Jane se encontra é, de fato, devastador em sua complexa relação com a narrativa de Paris, Texas.
Como seria reencontrar a pessoa mais importante de sua vida num ambiente como aquele? É essa a pergunta que toma conta de nossos nervos quando, enfim, Travis vê Jane outra vez. Seu amor transborda em cada parte do cenário que a envolve, mas seria esse sentimento o bastante para que suas esperanças sejam mantidas?
Não. E aí Wenders trata de conduzir seu personagem principal às duas mais difíceis decisões de sua vida: deixar Jane de lado e permitir que Hunter seja criado pela mãe. Ou seja: desistir da família da qual desejou tanto fazer parte. Assim, a paleta que antes dava total atenção à cor vermelha surge devidamente sem vida durante as sequências nas quais pai informa filho sobre sua partida.
Aqui, o destaque fica por conta de um sutil movimento de câmera que retira o vermelho (ou seja, a presença do pai) da vida de Hunter. Confira nos dois últimos quadros abaixo.
Seguindo a mesma lógica, Wenders faz com que Travis tenha uma última conversa com Jane, na qual todo o relacionamento que tiveram é descrito com extrema frieza e detalhismo pelo personagem. Assim, o preto e o branco que tomam conta do quadro — assim como a simbólica mise-èn-scene — são claras alusões ao fato de que a paixão que um dia tiveram é apenas passado. Como bem denota o aviso de “Coffee Shop” localizado sobre o vidro que os separa, ambos os personagens, nesse ponto, sabem que já é hora de acordar.
Por fim, deixo a boa para você: Paris, Texas é um marco. E acredite quando digo que o filme ainda tem muito mais a oferecer do que a teoria que concebi e que agora compartilho contigo.
Portanto, faça como eu e permita que seus pais, amigos, filhos e futuros conhecidos tenham a chance de admirar a obsessão de um dos mais trágicos personagens da história do cinema, capaz de seguir em frente mesmo sabendo que o sentimento que o tortura jamais abandonará seu peito e sua alma.