Paris, Texas e a teoria do amor despedaçado

Somos capazes ou não de lidar com as cicatrizes?

A Redação
KinoLab
9 min readJun 10, 2020

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Nota do editor: o artigo abaixo é um estudo aprofundado sobre o uso das cores em Paris, Texas (1984), de Wim Wenders. Assim, é essencial que você tenha assistido ao filme para evitar que o debate se torne uma série interminável de spoilers. Combinado?

Travis (Harry Dean Stanton) e Jane (Nastassja Kinski), vistos em Paris, Texas.

Travis Henderson foi um homem muito feliz. Numa época em que era rodeado por pessoas que o amavam, a paixão que nutria pelo seu cotidiano emanava de cada um dos seus poros. Era impossível para ele conter tanta alegria, ao passo que um nostálgico vídeo filmado em Super 8 tornou-se a única tradução perfeita daquela que é a melhor fase de sua vida.

Fase essa que, com o tempo, deixou como legado uma série de dolorosas cicatrizes.

Falar de Paris, Texas, inesquecível obra de Wim Wenders, é discorrer sobre um tipo de personagem caro ao cineasta. Aquele que, trágico, jamais consegue alcançar o direito de degustar suas obsessões. Assim como o anjo Damiel de Asas do Desejo (Wings of Desire, 1987), ele pode apenas observá-las, admirá-las, ainda que batalhe a todo momento para contrariar seu criador.

Dessa forma, decidi iniciar meu estudo sobre uma de suas obras-primas ignorando a ordem cronológica original e trazendo como introdução fragmentos do vídeo que julgo como sendo a espinha dorsal do projeto, também responsável por ser a devastadora lembrança que, posteriormente, viria a destruir nosso protagonista.

Fragmentos do vídeo em Super 8 exibido durante Paris, Texas: Travis é obrigado a reencontrar o momento mais feliz de sua vida.

Observe as imagens com calma. Quais sentimentos diria que transbordam de cada uma delas?

Não tenho dúvidas de que suas respostas sejam facilmente associadas à paleta avermelhada que toma conta dos frames que escolhi. Travis, afinal, amou e fora retribuído em sua necessidade de ser amado. Como tal, aprendeu que nada se compara à experiência de encontrar em semelhantes todos os significados que, antes ausentes, apenas demarcavam colunas vazias em seu peito.

Reação sutil de Travis ao conferir o vídeo representa um universo de sentimentos conflitantes.

E aí reside a tragédia do personagem: com o passar dos anos, o referido vídeo também se tornou a principal prova de que sua capacidade de amar fora despedaçada ao longo do tortuoso caminho que adotou para si. Eis aqui a deixa para que voltemos ao início de Paris, Texas.

Sendo Travis um sujeito devastado por uma paixão da qual nunca conseguiu se livrar, é natural que ao longo de seu cotidiano o personagem jamais deixe de pensar em Jane e nos bons momentos que um dia compartilharam. Dito isso, quão simbólica é a primeira sequência do filme?

Travis, o deserto e um boné vermelho: sequência inicial representa obsessão e tragédia do personagem a partir daquilo que o envolve.

Surgindo em meio a um deserto, Travis anda. Incansável, ele parece hipnotizado pela busca daquilo que ocupa sua mente naquele instante: seu grande amor e o desejo de chegar ao lugar que um dia fez parte dos planos do casal.

E já que essa grande paixão ocupa cada beco de sua cabeça, não seria o boné vermelho utilizado por ele uma bela introdução à lógica visual de Wenders? Falaremos mais sobre ela a partir de agora.

O amor em pedaços: ao utilizar a cor vermelha de maneira sempre consciente, Wenders transforma a obsessão de Travis em imagens marcantes e repletas de simbolismo.

Auxiliado por uma paleta de cores escolhida de maneira milimétrica, Wenders procura despedaçar os sentimentos acumulados por Travis ao longo dos anos e espalhá-los pelos cenários de Paris, Texas, ressaltando a incapacidade que o personagem tem de se livrar do mais importante relacionamento de sua vida. E qual o artifício central para o sucesso de sua estratégia? A cor vermelha, claro.

Começamos a discorrer sobre essa teoria observando os rastros que ela deixa pelo caminho do personagem. Indo de detalhes mínimos dentro do bar (note as cervejas Dos X dentro da geladeira, abaixo) à manivela de uma torneira, é como se Travis enxergasse resquícios de sua antiga relação com Jane em todos os lugares. Ou seja: o vídeo que dá início a esse artigo surge diluído desde o começo do filme.

No exterior/interior do bar, dentro da geladeira e até mesmo na torneira que frustra Travis, Wenders despedaça a cor vermelha (ou seja, o amor que o protagonista sente por Jane). É como se ele a visse em tudo.

Pouco tempo depois, Walt o encontra e, com isso, adiciona camadas à lógica visual de Wenders, nas quais cores opostas àquela que define as ações de Travis ganham espaço. Perceba, por exemplo, como o azul do hotel e do figurino de seu irmão surge como um sinal de que a busca do protagonista foi adiada e de que a presença de um parente há muito não visto traçou uma nova rota a ser seguida por ele. O que só fica mais interessante quando um avião que deveria afastá-lo de vez de sua trajetória inicial surge emoldurado e decorado pela mesma cor.

Quando o protagonista é questionado pelo irmão, o azul toma conta do filme. Acima, detalhes da parede, do figurino de Walt e do avião no qual Travis quase viajou, desistindo no último instante para voltar à sua desesperada busca por Jane.

Vermelho para instantes nos quais ele busca suas antigas relações e cores opostas para quando o personagem é questionado sobre sua obsessão ou impedido de buscá-la. É assim que Paris, Texas procura descrever os sentimentos de Travis em relação àquilo que o personagem vive em cada momento do longa.

Dessa forma, como não considerar belo o momento em que Hunter, seu filho e símbolo máximo do amor que sente por Jane, finalmente o reencontra?

Figurinos e paleta de cores distintas representam bem o estranho reencontro de Travis e Hunter: não há semelhanças imediatas depois de tanto tempo distantes um do outro.

Vestido num branco impessoal que denota bem a estranheza de ver o pai depois de tantos anos, o garoto inicia sua reaproximação de maneira trôpega, desconfiada, apenas para, aos poucos, se interessar por Travis e adotar a cor vermelha que tão bem caracteriza seu introspectivo pai.

A lógica de Wenders, nesse momento, ganha contornos de catarse quando, decididos a fugir para procurar Jane a partir de pistas deixadas por depósitos de banco, Travis e Hunter abraçam de vez o amor que sentem um pelo outro. Abaixo, o crescimento gradual de uma semelhante paleta de cores que os une de maneira sólida e bela.

Da palidez inicial motivada pela distância entre ambos, pai e filho passam a se aproximar e, com isso, figurinos, cenários e objetos adotam a cor vermelha vista no Super 8, unindo-os de vez.

Aqui, devo chamar sua atenção para uma das mais belas cenas vista na obra de Wenders e que se passa no alto de um andaime. Nela, Travis dá a notícia sobre a viagem que fará com Hunter ao seu irmão, Walt. Note que o outdoor em construção logo ao lado dos personagens traz consigo a imagem de uma mulher sendo montada, numa clara referência àquilo que acontece na mente do nosso protagonista quando decidido a seguir seu coração.

Devidamente vestido em vermelho, Travis avisa Walt sobre a viagem com Hunter. Sua decisão ganha um representação precisa através do outdoor que, literalmente, monta uma mulher ao seu lado. É a obsessão por Jane se expandindo de vez.

Voltando ao tema, é a partir da união iniciada na casa de Walt que pai e filho decidem fazer uma longa viagem à procura de Jane com base num plano um tanto improvável: aguardá-la do lado de fora do banco no qual, mensalmente, a personagem deposita dinheiro para Hunter. E nem preciso dizer qual é a cor do carro dela quando, depois de horas, o pequeno a fita saindo do estacionamento, não é?

Hunter reencontra a mãe, que, claro, dirige um veículo vermelho.

Assim se consolida a teoria que defendo, na qual o vídeo feito em Super 8 possui a paleta de cores que melhor representa a família Henderson, sendo ela fragmentada ao longo de Paris, Texas como forma de guiar Travis. Caso tivessem a chance de se reunir para uma foto, é certo que teríamos no abraço compartilhado entre pai, mãe e filho uma cópia exata de um dos frames registrados naquela bela viagem de verão.

Mas Wenders não se contenta em despedaçar o amor de Travis, dando-o como migalhas de pão a serem seguidas pelo nosso faminto protagonista. O diretor ainda concebe o complexo reencontro dos pais de Hunter como se estivesse certo de que tal momento se tornaria um dos mais impactantes diálogos do cinema. E saber que sua lógica permanece impecável durante a conversa entre Jane e Travis é notar quão ambicioso pode ser um diretor quando em total controle sobre sua criação.

O azul que decora as paredes do trabalho de Jane e dá frieza à iluminação das cenas ressalta a impossível presença de Travis na vida de sua amada.

Observemos a primeira conversa entre ambos mais de perto: depois de seguir o carro de Jane, Travis pede para que Hunter permaneça em seu veículo e, sozinho, adentra o local no qual sua ex trabalha. Ao público, basta notar o tom predominante no lugar para saber que o protagonista não sairá muito feliz dali.

Mas se a primeira sala visitada por ele revela apenas uma desconhecida tentando ganhar alguns trocados, sua tentativa seguinte traz a imagem que todos torcíamos para admirar desde o começo do filme. E perceber que todo o amor obsessivo de Travis transborda de cada parte do quartinho no qual Jane se encontra é, de fato, devastador em sua complexa relação com a narrativa de Paris, Texas.

A cor vermelha transborda ao redor de Jane no momento em que Travis a vê outra vez.

Como seria reencontrar a pessoa mais importante de sua vida num ambiente como aquele? É essa a pergunta que toma conta de nossos nervos quando, enfim, Travis vê Jane outra vez. Seu amor transborda em cada parte do cenário que a envolve, mas seria esse sentimento o bastante para que suas esperanças sejam mantidas?

Não. E aí Wenders trata de conduzir seu personagem principal às duas mais difíceis decisões de sua vida: deixar Jane de lado e permitir que Hunter seja criado pela mãe. Ou seja: desistir da família da qual desejou tanto fazer parte. Assim, a paleta que antes dava total atenção à cor vermelha surge devidamente sem vida durante as sequências nas quais pai informa filho sobre sua partida.

Aqui, o destaque fica por conta de um sutil movimento de câmera que retira o vermelho (ou seja, a presença do pai) da vida de Hunter. Confira nos dois últimos quadros abaixo.

O momento da despedida: no primeiro quadro, a camisa vermelha de Travis surge pendurada enquanto o personagem dá adeus ao filho. Hunter, por sua vez, é visto ouvindo a despedida de seu pai enquanto ainda mantém algum vermelho em seu figurino, logo ocultado por um sutil movimento de câmera que retira a cor de sua vida.

Seguindo a mesma lógica, Wenders faz com que Travis tenha uma última conversa com Jane, na qual todo o relacionamento que tiveram é descrito com extrema frieza e detalhismo pelo personagem. Assim, o preto e o branco que tomam conta do quadro — assim como a simbólica mise-èn-scene — são claras alusões ao fato de que a paixão que um dia tiveram é apenas passado. Como bem denota o aviso de “Coffee Shop” localizado sobre o vidro que os separa, ambos os personagens, nesse ponto, sabem que já é hora de acordar.

Preto, branco e as costas de Travis: conversa final tem todos os elementos de suporte necessários para se tornar um dos grandes diálogos do cinema.

Por fim, deixo a boa para você: Paris, Texas é um marco. E acredite quando digo que o filme ainda tem muito mais a oferecer do que a teoria que concebi e que agora compartilho contigo.

Portanto, faça como eu e permita que seus pais, amigos, filhos e futuros conhecidos tenham a chance de admirar a obsessão de um dos mais trágicos personagens da história do cinema, capaz de seguir em frente mesmo sabendo que o sentimento que o tortura jamais abandonará seu peito e sua alma.

Planos finais como síntese de uma tragédia: o verde como sinal para seguir em frente e o vermelho indicando que, apesar de fazer isso, Travis jamais deixará de amar Jane.

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