3— Maretober — Taverna
O sol ainda nem havia aparecido propriamente no céu quando Anim cruzou as portas da taverna. O movimento era pouco, composto principalmente de hóspedes que queriam começar cedo o dia. Mas elu não era nenhum hóspede e estava ali por suas próprias razões.
Ajeitou seu capuz logo na entrada, mais por costume do que por medo. De fato, talvez esse fosse o único lugar em toda Bela Vista que não despertava medo em Anim. Na taverna Dois Pardais, elu sentia esperança. Regada a um pouco de ansiedade, nervosismo e um misto inconcebível de vontade de gritar e vontade de se esconder? Sim. Mas ainda assim esperança, e isso já era mais do que todos os outros lugares eram capazes de oferecer.
Pardal estava sentado atrás do balcão, lendo o jornal do dia, e deu seu bom dia com um aceno de cabeça. Era quadrazur, então era Lisa quem atenderia os clientes pela manhã. Anim estava na cidade somente há algumas semanas, mas conhecia a rotina daquele lugar como conhecia as palmas de suas mãos. Olhando essa obsessão por fora, ela poderia parecer bizarra. Quase preocupante, talvez. Mas essa sede de detalhes vinha de um lugar genuíno, que poucos eram capazes de realmente compreender.
Anim pediu o de sempre — suco de laranjelina e pão com carne — para uma Lisa sorridente e animada. A humana não era boba, e foi a primeira a entender o motivo daquelas constantes visitas. Mesmo assim, nunca disse nada. Nem quando Pardal perguntou, e deixou o velho entender sozinho o que estava acontecendo. Não demorou muito também. Bastava um olhar atento, uma percepção alta, a facilidade para perceber a motivação nas pessoas. Detalhes que escapavam olhares desatentos, mas que não passavam despercebidos para quem realmente se importava.
Lisa e Pardal se importavam.
A comida não demorou a chegar, e Anim comeu quiete. Seu lugar de sempre era o mais escondido da taverna, mas que dava uma visão clara da porta do lugar. Ver sem ser viste, era um objetivo simples. Os minutos passavam lentos, sem se preocupar com a ansiedade inquieta no estômago de Anim, ou com sua indecisão interminável. Nem com o pequeno medo que crescia em seu coração. Não como o medo que elu sentia lá fora, não mesmo. Mas um medo de que sua hora estivesse passando. Que a chance de dizer algo escorresse pelos seus dedos. Agora que ele havia escolhido uma casa, só voltava para a taverna uma vez a cada semana. Se continuasse assim, logo não voltaria mais, e elu estaria de novo sozinhe.
Mas todos os pensamentos foram embora quando ele apareceu, saindo da porta que dava para os quartos do lugar. A boina vermelha de sempre na cabeça, o sobretudo azul, os sapatos pretos, a mochila que parecia sempre pesada e maltratada demais. Anim não escondeu um sorriso. Hérculi abraçou o Pardal e acenou para Lisa. Anim se remexeu na cadeira, sentindo suas pernas querendo correr e seu peito querendo gritar. Todas as perguntas que elu tinha voavam em sua mente com violência — eu também tenho chance? Existe mesmo um lugar pra gente? Eu posso ter esperanças? Eu devo ter esperanças?
A indecisão manteve Anim exatamente no mesmo lugar, e o goblin logo saiu pela porta da frente da taverna, desaparecendo pelas ruas da cidade. Ele estava indo para a UMaL, como sempre. Anim sabia. Anim sabia de tudo. Mas nada desse conhecimento respondia suas perguntas, e elu tinha tantas.
Lisa, com toda uma sabedoria de irmã, preparou um leite quente e levou para a mesa de Anim.
— É por conta da casa — ela disse. — Não fica triste não, menine. No próximo quadrazur você consegue.
Anim congelou no lugar, sentindo-se descoberte e exposte. Mas não medo, não havia medo. Lisa passou a mão por cima do capuz delu, um carinho gentil. Medo não. Afeto.
Ela estava certa. Quem sabe no próximo quadrazur.
