Armário.
O armário tem mil faces, essas faces, dois mil dentes. Meu amor, eu sou poeta, não guerreiro, e parece que tudo que tenho feito é me dobrar.
Eu corro, desvio, desisto, esqueço. Finjo que não existe, bato portas, bato pés, fecho os olhos.
O armário volta.
Nunca num sussurro, sempre em um grito, uma facada, uma mordida.
Me devora inteiro, me arranca do presente de uma só vez, me engole, se recusa a me devolver.
Vejo as pessoas do lado de fora e me pergunto porque tanta gente tem que conquistar o direito de existir.
Não penso que eu deveria olhar para um nome como se olha para um troféu; não deveria precisar ocultá-lo como se oculta uma arma de um crime.
Eu sou o crime e a arma,
e eu também sou o armário, a essa altura, cheio de portas, travado, com medo, receios, angústias, fugindo, fugindo, fugindo
Tomo decisões e volto atrás, e desisto, e desisto
De mim, não do armário
Ele é grande demais, ocupa espaço demais
Dói.
Minha pele se destrói com as mordidas, meu corpo cansado se recusa a tentar de novo
Penso que existir dentro de uma caixa parece ser tudo que resta, mesmo que no fundo a caixa seja metafórica
A distância coloca a caixa em perspectiva, mas ela ainda existe
Ainda é uma caixa
Não deveria precisar calcular meus movimentos como quem calcula a construção de uma ponte, ciente de que o menor erro pode levar tudo a desmoronar
Eu sou o engenheiro, a ponte, os destroços
Estou habitando em uma ruína de mim mesmo
A única coisa inteira é o armário
Suas faces
Seus dentes
Morde.
Morde.
Morde.
(O trecho inicial é um adaptação livre de um dos poemas do livro “Mapa de sal e estrelas, de Zeyn Joukhadar. Dá pra ler o poema original nessa foto no meu instagram.)