Armário.

Koda Gabriel
kodagabriel
Published in
2 min readMay 5, 2023

--

Foto de Darshan Gavali na Unsplash

O armário tem mil faces, essas faces, dois mil dentes. Meu amor, eu sou poeta, não guerreiro, e parece que tudo que tenho feito é me dobrar.

Eu corro, desvio, desisto, esqueço. Finjo que não existe, bato portas, bato pés, fecho os olhos.

O armário volta.

Nunca num sussurro, sempre em um grito, uma facada, uma mordida.

Me devora inteiro, me arranca do presente de uma só vez, me engole, se recusa a me devolver.

Vejo as pessoas do lado de fora e me pergunto porque tanta gente tem que conquistar o direito de existir.

Não penso que eu deveria olhar para um nome como se olha para um troféu; não deveria precisar ocultá-lo como se oculta uma arma de um crime.

Eu sou o crime e a arma,

e eu também sou o armário, a essa altura, cheio de portas, travado, com medo, receios, angústias, fugindo, fugindo, fugindo

Tomo decisões e volto atrás, e desisto, e desisto

De mim, não do armário

Ele é grande demais, ocupa espaço demais

Dói.

Minha pele se destrói com as mordidas, meu corpo cansado se recusa a tentar de novo

Penso que existir dentro de uma caixa parece ser tudo que resta, mesmo que no fundo a caixa seja metafórica

A distância coloca a caixa em perspectiva, mas ela ainda existe

Ainda é uma caixa

Não deveria precisar calcular meus movimentos como quem calcula a construção de uma ponte, ciente de que o menor erro pode levar tudo a desmoronar

Eu sou o engenheiro, a ponte, os destroços

Estou habitando em uma ruína de mim mesmo

A única coisa inteira é o armário

Suas faces

Seus dentes

Morde.

Morde.

Morde.

(O trecho inicial é um adaptação livre de um dos poemas do livro “Mapa de sal e estrelas, de Zeyn Joukhadar. Dá pra ler o poema original nessa foto no meu instagram.)

--

--

Koda Gabriel
kodagabriel

25 anos, bissexual e não binário. escrevo romances, ficção especulativa e putarias em geral https://kodagabriel.com.br