cartas que minha mãe nunca vai ler e outros desabafos sobre gênero, I

Koda Gabriel
kodagabriel
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11 min readJul 14, 2022

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uma foto de uma bandeira nao binaria pendurada em um varal (cores: amarelo, branco, roxo e preto)

Mãe, isso não é um pedido de autorização.

Mas também não é um informe.

Talvez seja… Uma história.

É, mãe, acho que isso é uma história.

Tem alguma coisa dentro de mim, mãe. Ela tá… Incomodada. Ela não estava tão incomodada assim há muito tempo. Acho que ela está acordando. Eu tenho… Medo. Mas até então, eu tenho medo de tudo.

Eu sou um ratinho, mãe. Que… Não consegue colocar a própria armadura. Ou que talvez tenha colocado tantas armaduras que agora não consegue respirar e está sufocado dentro da própria segurança.

Eu fui estragado mãe. Não sei dizer pelo que, como, quando. Agora eu quero acreditar que ainda tem conserto. Alguns dias são mais difíceis.

Eu costumava enfrentar as coisas. Não sei de onde tirava forças. Não sei como cheguei até aqui, mas de alguma forma, cheguei.

Você tem orgulho de mim? Eu não sei se eu tenho.

Tem tanta coisa a meu respeito que eu ainda não sei. Tem tanta coisa que… Me escapa.

Sempre uma mão mais distante do que o braço alcança. Sempre raspando a ponta dos dedos, escorrendo como areia, escoando como água.

Não sou o que pensam de mim, mãe.

Também não sou o que eu penso de mim, olha só.

Sou muito cruel comigo mesmo. Demais. Mais cruel do que qualquer um pode ser (e mesmo assim, e talvez justamente por isso, tenho tanto medo de tudo).

Mas só um ratinho, sabe?

Que saiu correndo da toca e agora observa que talvez tenha fechado a porta atrás de si forte demais.

Eu… Não sei o que fazer.

Consigo imaginar. Mais ou menos.

Transcrever essa carta. Enfiar na sua mesa de cabeceira.

Fugir.

Quando penso nas palavras, nunca consigo imaginar elas saindo da minha boca.

Não pra você.

Não pra ninguém.

Essa semana eu vi… Amor. Nas pessoas.

A coisa dentro de mim está gritando mas não tem nenhum som saindo da boca dela. As lágrimas são silenciosas.

Em algum momento do passado eu comprei uma guerra. Eu perdi, mãe.

Mas isso não foi a pior parte. A pior parte foi… Aceitar a derrota.

Eu domei a fera. Coloquei uma boa coleira. Fechei a porta do quarto. Apaguei a luz.

O que os olhos não vêm…

O coração sente, sim.

Porque ela está no escuro, mas eu também. Eu sinto a respiração no meu pescoço. Querendo sair. Eu sinto a baba no meu ombro. Querendo sair. Eu sinto as sombras me pesando. Querendo sair.

Eu escuto a voz que não diz nada.

Implorando pra sair.

Mas eu permaneço perfeitamente parado. Respirando curto. Imóvel.

Rezando baixinho pra essa piscina de criança, úmida, pegajosa… Controlada. Essa piscina de criança altamente controlada e vigiada e perfeitamente dimensionada… Pra caber eu. E caber o mostro. Pra ela aguentar.

Eu não posso me mover.

Tenho câimbras. E medo. Câimbras e medo.

O monstro me olha nos olhos. Ele se parece tanto comigo.

Eu quero que ele acorde e me destrua. Guardar dói tanto. Segurar dói tanto.

Mas eu não sei como. Eu perdi a chave. Perdi a coragem.

Perdi… O tempo.

Eu me pergunto se meu tempo já passou, e o que restou pra mim e pro monstro foi isso aqui.

Sabe?

Não. Você não sabe.

Ninguém sabe, mãe.

Talvez o ponto todo seja esse.

Mãe, queria ter aprendido a me defender.

Eu não sei se você não me ensinou, ou eu que estava naquela fase da infância e adolescência em que os pais parecem não saber de nada.

Talvez um pouco dos dois.

Me sinto frágil. Na real, me sinto quebradiço. Despedaçando em mim mesmo, cheio de pontas afiadas e perigosas.

Eu sou um perigo pra mim mesmo.

Tô cansado, mãe.

Nada bom dura dentro de mim. É muito pouca terra. Muito concreto fechando as valas.

Tudo seco demais para algo bom florescer.

Eu me sinto aquela menina que eu vi no parque, sabe. Gritando desesperadamente enquanto tudo balança, rindo um pouco quando para, o olhar perdido no segundo seguinte.

Queria ter aprendido a me defender para talvez assim ter chance contra tudo… Isso.

O mundo não está contra mim, não inteiramente, não no nível que eu sinto medo.

Tá, mãe, talvez eu tivesse chance contra o meu próprio medo.

Talvez ele não tivesse mãos tão enormes e tão sufocantes e não usasse luvas, para não se cortar nas minhas extremidades, e garantir o maior impacto, o maior estrago.

O medo transforma minhas pontas afiadas em farelo de vidro, mãe. E farelo de vidro é uma merda, você não se livra dele. Limpa, varre, passa pano. E acaba pisando e cortando o pé, passando a mão e arranhando os dedos.

Eu sou uma pilha de cacos.

Me destruindo para não machucar os outros. Machucando mesmo assim.

Me cortando inteiro, da cabeça aos pés.

Tentando caber, mas sabendo que minhas pontas saltam para fora. E que quebrá-las é inútil.

Estou esperando o calor de mil sóis, um calor que me derreta para eu talvez poder me refazer em alguma coisa nova com o que restou.

Mãe, você me ensinou gentileza.

Outro dia eu fui na sua casa e você me ouviu comentar que gostava mais de pedaços pequenos de carne e deixou todos os pedaços pequenos de carne para mim.

Eu vejo seu amor por mim capaz de fazer muitas coisas. Mas ele é capaz de amar a pessoa que eu realmente sou?

O que preciso te pedir, mãe, vai além do cuidado de sempre.

Eu te disse que tava com vontade de sopa. Você fez.

Eu te disse que tava com uma saudade de um suco de maracujá gelado, você fez.

Te falei que precisava de tapetes novos, você apareceu com tapetes novos.

Mas se eu te pedir para amar o seu filho, você amaria?

Se eu te contar sobre o seu filho, você escutaria?

Eu amo as pequenas gentilezas na mesma medida que tenho pavor delas. Tenho medo delas serem o começo e o fim do que você pode fazer por mim.

Não quero confirmar as incertezas do abandono.

Sigo calado mais um dia.

Quando é que a minha relação com meu gênero (e, portanto, a minha relação comigo mesmo) vai deixar de parecer uma peça ensaiada e ter mais cara de vida?

Quando é que meu nome vai parar de voltar a ter um gosto amargo, depois de soar doce por tanto tempo?

Eu me pergunto todas essas coisas enquanto escuto pessoas falando comigo com um nome que não é mais meu. Talvez nunca tenha sido. Quem é essa pessoa? Quem eu sou?

Por que diabos estou com esse nó no estômago, e por que diabos fiz cara feia quando pensei no meu próprio nome? Esse nome é meu. Foi conquistado no ódio, na marra, com briga e cara feia. Eu não o odeio. Por que estão fazendo isso comigo de novo?

Eu me pergunto todas essas coisas enquanto penso que é um inferno como nunca acaba.

Mãe, tive um sonho sobre identidade.

Me perguntaram se Koda era meu nome de verdade. Eu disse sim tão sem hesitar, no sonho, que fiquei feliz. Sim, esse é meu nome de verdade. Sim, esse é quem eu sou.

Mas a moça me encarou e perguntou “você tem certeza?”. E eu disse que não.

É a segunda vez desde que mudei definitivamente de nome que esse tipo de sensação horrível acontece. Essa coisa estranha que fica latejando na minha cabeça e no meu coração que do nada me faz encarar o espelho e não reconhecer a pessoa que me olha de volta.

O que eu me tornei?

A memória de chorar no banheiro fechado com a família lá fora lidando com um assunto triste e complexo imediatamente vem na minha cabeça. Parecia injusto ter uma crise de identidade com algo tão importante acontecendo, mas ali estava eu, chorando por sentir que meu nome não era meu, que a minha persona não fazia sentido. Chorando com medo de me perder dentro de mim mesmo.

Acho que estar meio dentro do armário faz essas coisas com a gente.

Escuto esse nome estranho tantas vezes. Um nome que não me pertence. Que não me representa. Mas mesmo assim caminha nos meus dias, lado a lado com quem eu realmente sou. Um fantasma que ainda não consegui abandonar.

Estou indo muito ao hospital nos últimos tempos, tentando pagar o atraso de tantos anos negligenciando minha saúde, e esse nome se faz ainda mais presente. Grudando nas minhas canelas, no documento que tiro e guardo na minha carteira, nos papéis que eu assino. Assinar documentos é sempre uma questão, sabia, mãe?

Sempre sinto que estou apagando uma parte de mim.

Folha por folha, assinatura por assinatura.

E daí outro dia, assinei um desses papéis do plano de saúde no automático. Nem pensei direito, só preenchi. Depois fiquei encarando a bancada, me culpando onde não havia culpa.

Como pode um nome que não é meu me vir tão fácil?

Como pode eu deixar me abalar com coisas tão estúpidas?

Mãe, estou escrevendo todas essas coisas que nunca vou te falar. E também penso em quantos pedaços de mim você está perdendo por as circunstâncias serem como são. Não consigo evitar o pensamento de que tudo isso é uma escolha.

(Sabe, mãe? Você, meu pai, a nossa família, que vocês todos pareçam — e sejam — tão assustadores, ameaçadores, preconceituosos, ariscos com o desconhecido. Tudo isso é uma escolha. Consciente ou não. Eu queria poder negar e dizer que sou muito discreto, queria dizer que você nunca precisou pensar sobre gênero e sexualidade antes, mas você e eu sabemos que eu e meus irmãos poderíamos ser uma distribuidora de tanto dar bandeira. Mas vocês todos escolheram reagir mal, fechar os olhos, tampar buracos com terra podre, fingir que não estão vendo. Estamos todos pagando o preço.)

Vivo falando que só vou tirar outra identidade quando puder colocar meu nome de verdade nela.

Ultimamente resolvi esperar sentado.

Às vezes me pergunto se vou morrer esperando.

Mãe, eu tenho vinte e cinco anos e me pergunto se algum dia vou ter coragem de te contar a verdade.

Foi um choque muito grande quando finalmente me dei conta de que meu problema (o nosso problema) nasceu muito antes de eu perceber quem eu sou. Nosso relacionamento não era bom antes. Você nunca me conheceu de verdade, não exatamente. E só piorou. Escrevi muitos textos sobre ter começado a correr para longe de vocês, para longe de casa, e sobre como isso ajudou a moldar quem eu sou hoje, e como essa pessoa é mais e mais afastada.

Não me arrependo.

Nem tenho do que me arrepender, na verdade, porque fiz o que tinha que fazer para continuar vivo. Eu corri porque era a única saída, porque era isso ou enlouquecer completamente, ou acabar ainda mais afundado, ainda mais submerso.

Tenho orgulho de quem eu sou. Na maior parte do tempo, ao menos, eu consigo enxergar que, diante de todas as possibilidades, eu dei muito certo. Estou quase me formando. Tenho um bom emprego, em uma área que gosto de trabalhar. Tenho um marido que amo imensamente. Dois gatos gostosos de apertar. Bons amigos. Me divirto muito escrevendo coisas que amo escrever.

E mesmo assim não consigo parar de pensar no olhar de confusão, desgosto e raiva que sei que passaria pelo seu rosto. Que já vi outras vezes. Sequer consigo imaginar a reação do meu pai, e por essa e outras esse não é um texto para ele — afinal, é difícil escrever para um estranho. Mesmo assim, consigo imaginar o pensamento acelerado de “onde foi que eu errei”, consigo ver as conexões acontecendo implicando uma derrota, um fracasso.

Afinal, olha só, como que pode, a filha que deu certo… não é uma filha? Não deu certo?

Tenho tantos traumas internalizados que não sei listar todos eles. E vocês são incapazes de reconhecer que me foderam nesse nível.

A filha que deu certo, fizemos algo de errado?

Mãe, você não tem dimensão do problema. Não sei se teria como ter, de qualquer forma. Não sabe que ainda me encolho quando escuto pessoas gritando, e se é comigo ou não, não faz diferença. Não sabe que ainda me engasgo de chorar quando preciso falar sobre meus sentimentos, que eu mesmo tenho dificuldade de me entender, que me enrolo todos os dias nas menores coisas, e nas maiores, que nunca sei dizer se estou feliz, se estou triste, não se apreciar nada direito, sou apavorado com conflitos, tenho uma ansiedade incontrolável.

Você mal conhece essa suposta filha que deu certo. Esse fantasma amorfo, confuso, apagado e quieto que você vê uma vez por mês e que se enrola nos próprios pronomes e às vezes não responde quando você chama.

E mesmo assim, de vez em quando fico pensando naquelas histórias onde a protagonista, em um momento de loucura e desespero, corre para o colo da mãe. Pede um consolo que os filmes me ensinaram que só mães conseguem oferecer. E as mães oferecerem. E as coisas se curam, porque tem que se curar, e porque o roteiro tem que continuar, e o final tem que ser feliz.

Foi horrível perceber que eu tava desejando esse consolo que nunca conheci. Que fico ansiando por esse amor de mãe que é um porto seguro, mas que não me vejo te dando toda essa confiança.

Você não sabe nada sobre mim, mãe.

Não sabe sobre o quanto eu choro por me odiar. Mas me odiar é horrível, e eu não deveria sentir isso, então choro mais ainda por me achar fraco. Não sabe o quanto é dolorido sair de casa. Não sabe o quanto as pessoas me machucam todos os dias, mesmo que inconscientemente. Não sabe o quanto eu tenho medo da nossa família, mesmo que não deva nada a eles. Não sabe quantas e quantas vezes eu já pensei em fugir, e nunca mais telefonar, e só seguir a minha vida. Não sabe o quanto o mundo me espreme. E o quanto o espelho me morde. E o quanto a cisgeneridade quer me por de louco. De insuficiente. Me querem disforme. Chorando. Detestável.

A pior parte é que não sei se quero te contar tudo isso.

Que merda.

Mãe, me pergunto se algum dia essa dor vai parar.

Eu não sei se algum dia a pessoa que eu vejo no espelho vai deixar de parecer um inimigo.

Mãe, eu tenho medo do meu pai.

Mãe, essa não é uma carta pra você.

Não agora, não exatamente. Talvez no futuro. Talvez quando eu tiver coragem e finalmente te contar todas essas coisas. Acho que hoje essa carta é para você que está lendo. Você que talvez seja uma mãe, também, confusa e preocupada. Um amigo gentil e curioso. Um parente interessado. Ou só um bom aliado da causa.

Em geral, a confusão é compreensível. Eu entendo. Su amigue entende. Seu filho, sua filha, a pessoa que você criou, entende. Estamos nos debatendo com questionamentos intermináveis e dúvidas e sentimentos há muito tempo, e muitas vezes guardamos tudo isso sozinhos. É muita novidade para você, como foi muita novidade para mim em algum momento.

Mas enquanto isso pode ser uma justificativa, não pode ser uma desculpa.

É fácil separar a confusão genuína, mas regada de esforço, da confusão colocada como um fim e ponto final. Confusão é um estado, e exige esforço para que se saia dele. Carinho, compaixão, empatia.

Então sempre que parecer que uma pessoa trans está sendo impaciente com o seu tempo de aprendizado e costume, se faça uma pergunta: “o que estou fazendo para que essa pessoa entenda que pretendo que meus erros sejam a exceção e não a regra?”.

É uma pergunta simples. Ela não faz juízo de valor dos erros que estão acontecendo agora, mas percebe nas sutilezas do dia a dia se existe sequer a perspectiva para que a situação melhor.

Você está trazendo a perspectiva de melhora?

Está sendo parte da solução ou parte do problema?

Às vezes tudo que você precisa é tentar. De fato tentar. E uma hora, tentando, você acerta. Corta aquela piada preconceituosa do vocabulário porque finalmente percebeu como ela magoa. Acerta o novo nome do seu amigo porque o sorriso que ele dá é impagável. Convida a namorada da sua irmã para um almoço de final de semana e percebe que nunca foi sobre um tratamento mega especial, ou sobre se desdobrar como um mágico para fazer o impossível.

Às vezes tudo que você precisa é enxergar que existe uma pessoa do outro lado.

Cheia de medos, inseguranças, machucados, dores, lágrimas.

Mas também cheia de alegrias, certezas, cheia de cores, ideias, histórias.

Então se pergunte: você quer ser um ombro acolhedor, ou mais um na lista de preocupações e dores de cabeça? E lembre sempre que não escolher um lado já é escolher um lado. Ser indiferente às agressões, por mais micro que sejam, é deixar espaço para que ocorram novamente.

É um movimento simples, deveria ser uma decisão fácil.

Faça a escolha certa.

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Koda Gabriel
kodagabriel

25 anos, bissexual e não binário. escrevo romances, ficção especulativa e putarias em geral https://kodagabriel.com.br