Maratonista

Koda Gabriel
kodagabriel
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4 min readDec 8, 2020

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uma pessoa em pé correndo em uma floresta. a foto foi tirada de baixo, como se a camera estivesse no chão.
Photo by fahad pgd on Unsplash

Eu não me alonguei hoje de manhã. Na maioria dos dias, não lembro que devo. É estúpido, não é? Se esquecer de algo que deveria fazer parte da sua rotina, mas sequer consegue se tornar hábito. Rotina. Hábito. Essas palavras têm gosto amargo na língua. Eu não me alonguei hoje de manhã e minhas pernas doem, os músculos choram.

Exausto, mas não foi um terço do dia. Ainda é começo da semana. Nem preciso falar do mês, importa mesmo o ano? Ciclos. Repetição. Dor. Dor. Dor. A mochila nas minhas costas tem três ou quatro quilos. Tinha mais, abandonei pelo caminho. Respira fundo, não olha para trás. Sempre em frente, aventureiro. Sempre em frente.

Olho ao redor, sem diminuir o passo. São poucos os que caminham pelo meio do mato: as expressões confusas, rostos inchados, muito peso nas costas e olheiras fundas. Alguém aqui alongou hoje? As risadas vão longe, estranhas.

Às vezes nos reunimos em grandes clareiras para descansar e comer. São poucos momentos, mas gratificantes. Na maioria deles, compartilhamos silêncios. Encaramos uns aos outros, pensando em formas de amenizar o fardo mútuo que carregamos. Cuidamos das feridas, pomadas nas picadas, repelentes pros mosquitos. Será que dessa vez alguém puxa um alongamento? Risadas. Não temos tempo.

Comida no papinho e pé no caminho, mãe dizia. Caminhamos. Não temos os mesmos objetivos, mas uma loucura peculiar nos assemelha. De vez em quando os caminhos se cruzam o suficiente para que uma mão amiga sustente parcialmente as dores nossas, ou nós as dores deles. Geralmente ambos colocam mais peso na mochila. “É mais bagagem pro futuro, certo?”. Literalmente. Literalmente.

Talvez o pior não seja de fato a bagagem, mas a corrida. Com calor ou chuva no pescoço, a roupa molhada de suor ou de água, eu ainda corro. Todo mundo corre. Perdi um dos meus tênis há três dias, sigo correndo. O pé na carne viva. Sigo correndo. Alguém grita lá atrás sobre alongamento, pausas e descanso. A risada vem primeiro da frente, eu só suspiro. Novatos. Alguém algum dia se preparou para isso?

Ao longe dá pra ver a estrada e quem passa por ela. Dá pra ver quem tá de carro, no ar condicionado, e quem tá queimando o pé no asfalto quente porque essa é a única opção. Dá pra ver todo tipo de gente entre esses extremos. E eu preciso confessar que, de vez em quando, na escuridão das noites frias, deixo a inveja sair para correr. Fico de longe observando, abatido e pálido, o bicho que não é feio nem bonito, só é. Ela sobe em árvores para ver mais longe, grita noite afora e rosna para coisinhas indefesas. No dia seguinte acordo, tomo a pílula do orgulho e sigo em frente. Sempre em frente, aventureiro.

Não ouso falar que aqui é o caminho mais difícil. Cada coisa deve ser colocada na sua própria perspectiva, então eu falo que talvez esse seja o meu caminho mais difícil. Me dar conta disso não faz muita diferença no resultado: continuo aqui, colocando sempre mais coisa na mochila. Dando passos cada vez mais cansados, chorando cada vez mais forte. Às vezes de alegria. Nem sempre.

***

Eu penso muito sobre como costumo ser injusto e cruel comigo mesmo, e gentil e paciente com os outros. Percebi que corria o risco de descrever o que eu faço e exijo de mim lado a lado do que me dou em recompensa ao meu próprio esforço e parar direto em um vagas arrombadas. Será que sou meu próprio chefe abusivo? Eu nunca paro. Já dormi chorando. E não paro. Pele sangrando. Eu não paro. Ansiedade é meu nome do meio. Eu nunca nunca nunca nunca paro. Até parado, não parei. A mente é traidora, inimiga, sabota. Descansando, estou correndo.

***

Na mata, clareira. Eu e os outros juntos mais uma vez, um último abraço antes do amanhecer, um último carinho antes da maratona seguir. Encaro meu amigo mais próximo nos olhos e repito aquela história sobre a vida não ser uma corrida enquanto amarro meus tênis. Ele diz que acredita e dessa vez nos alongamos juntos, enchemos as garrafas de água, prendemos os cabelos. Ele me dá um boné, diz que o sol vai castigar hoje. Percebo que isso o deixa desprotegido, mas ele me assegura que é só até a próxima clareira. Vai ficar bem. Vou ficar bem. Vamos. É só lembrar: não é uma corrida. Não é sobre quem chega primeiro, ou sobre quem está na frente agora. Sim, sabemos.

Mochila nas costas, preparar, nas suas marcas.

O sol vai nascer, corra enquanto eles dormem…

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Koda Gabriel
kodagabriel

25 anos, bissexual e não binário. escrevo romances, ficção especulativa e putarias em geral https://kodagabriel.com.br