Sinto falta do meu jardim.

Koda Gabriel
kodagabriel
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7 min readDec 15, 2022

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Ando lendo muito sobre arte, sobre escutar os chamados que batem na nossa cabeça insistentemente como ligações de operadoras oferecendo planos e bancos oferecendo empréstimos. Lendo sobre ideias que correm como pedrinhas no fundo de rios, sobre vontades tão fortes que são por si só capazes de bombear o sangue de alguém por muito tempo.

O problema é justamente esse: tem muito tempo que eu não sinto essas coisas.

Não exatamente.

A empolgação aqui vem e volta. Às vezes bate mais forte que brisa, e eu me sinto ligado diretamente na rede da CEMIG, incapaz de parar. Mas na maior parte dos dias ela está tímida ou sequer aparece, e eu me debato com a minha própria indiferença, com ódio da minha própria amargura.

Tem muito tempo que ando lendo e lendo e lendo coisas com uma sede de anos de quem quer ser arrebatado, quer levar um soco na cara e sair sorrindo e dizendo que foi bom, quer vomitar palavras em desespero, gritando e gritando e gritando. Voltei a encontrar livros que me movem, me tiram do lugar e me fazem desejar ser mais… mas parece que continuo só no desejo inquieto e que meu motorzinho parou de funcionar há muito tempo.

Eu já descobri o que tá causando isso, a propósito. Ou que causou, e que agora eu não consigo mais afastar ou começar de novo.

Recentemente minha psicóloga cravou meu diagnóstico em Transtorno de Ansiedade Generalizado. Eu tinha muitas suspeitas, e já tive muitos diagnósticos diferentes, mas esse daí não me surpreendeu nadinha. Com diagnóstico ou não, que eu tenho ansiedade pra caralho, aos montes, caindo pra fora de barris, para dar e vender e ainda sobra… não é nenhuma novidade. Então o laudo foi um grande pretends to be shocked.

Mas entender de verdade quão fundo na merda a coisa estava… talvez tenha sido uma surpresa. Ironicamente, não foi na terapia que eu consegui sacar isso. Embora a terapia me ajude muito, eu só fui finalmente me entender um pouco melhor… lendo. É claro.

Ganhei de um amigo querido um livro chamado Meu amigo medo — e falar que esse livro foi apropriado demais como um presente pra mim é apenas eufemismo -, e li com a mesma velocidade que ando lendo a maioria das coisas: não muita.

É um livro lindo, a propósito. Todo ilustrado em aquarela, com frases lindas e um texto muito reflexivo. Embora nem todas as inseguranças da pessoa autora dialoguem diretamente comigo, o que ela falou dialoga pra caramba. E tinha tudo para ser um livro muito bom que mexeu um bocado comigo, balançou o fundinho do meu rio e tudo mais… até o capítulo sobre criatividade.

Meus amigues… eu nem vi o caminhão vindo.

Depois de ficar mais de um mês afastado do livro porque a vida aconteceu, peguei para ler um pedacinho antes de dormir. Já passava da meia-noite, eu não via a hora de dormir o sono dos (in)justos e comecei a tomar porrada.

Já tem um bom tempo que eu me sinto que eu ando seco.

Meus amigues podem advogar com muita lábia que eu produzo pra caramba, que preciso parar de me medir por réguas inexistentes e muito agressivas e que o único ritmo que realmente existe é a falta de ritmo, toda música é composta por altos e baixos, momentos lentos e rápidos, etc, etc, etc… Eles podem advogar muito, mas como eu mencionei, eu sou ansioso.

E, honestamente, eu não sei se consegui de alguma explicar corretamente o que eu sinto. Não é só que eu não ando produzindo, ou que eu tô cansado demais, ou que eu to com poucas ideias.

A gente pode agora voltar no título desse texto (eu sinto falta do meu jardim), porque essa analogia me ocorreu agora para explicar o que o Meu amigo medo me fez perceber.

A ansiedade faz parte de tudo na minha vida. Me acompanha quando eu acordo, quando eu deito, quando preciso tomar cada pequena decisão dos meus dias, das mais banais — o que vamos almoçar? — até as mais complexas — o que diabos eu quero pra minha carreira de escritor? — e tem muito pouco que eu consigo fazer para de fato essa torrente de pensamentos parar.

Tudo que eu consegui até hoje foi criar formas de lidar com algumas dessas inseguranças, para tornar alguns momentos menos insuportáveis. Na maior parte do tempo, entretanto, tenho uma matilha de lobos correndo soltinhos dentro da minha cabeça e tentando morder tudo que encontram pelo caminho.

Nos últimos anos ela ficou insuportável. Fiquei sem terapia e sem remédio durante boa parte da pandemia e com coisas e mais coisas se acumulando nas esquinas da minha mente. Minha última reação desesperada foi começar a compartimentalizar tudo e podar qualquer micro pensamento que pudesse me deixar maníaco e ansioso.

Me tranquei em casa — literal e figurativamente — , fugindo de interagir com as pessoas, fugindo de me expor demais, de me abrir demais, de pensar demais, fugindo, fugindo, fugindo. É uma especialidade que aprendi por ter crescido na minha família, um pessoal que me fez e me faz muito mal e que me ensinaram que ou você foge, ou eles te devoram. Cansado de ser devorado pela ansiedade, comecei a correr.

A conexão que eu nunca tinha feito — e que o Meu amigo medo brilhantemente me ajudou a fazer — na real era bem óbvia: você não pode fugir de tudo e de todos (inclusive de você mesmo) e esperar que a imaginação, a criatividade e as ideias fiquem dando sopa por perto, ou que elas fujam de tudo junto com você e se escondam dentro de casa, intactas e prontas para serem utilizadas a qualquer momento. Não é assim que funciona.

Mas vai falar isso pro Koda dos últimos anos.

A analogia é também bem simples: eu tinha um jardim caótico, cheio de coisas diferentes, imprevisível no que podia nascer se eu cuidasse direito, me alimentasse direito, continuasse encarando o mundo de frente enquanto ele me encarava de volta, continuasse o tempo todo brigando para não ser devorado, lutando por mim mesmo e pela minha mente em pedaços.

Quando comecei a podar os pensamentos ruins, eu estava com medo de tudo. Absolutamente qualquer ideia me dava medo. Não me esqueço de um dia no meio do ano passado, quando eu estava escrevendo Manda foto de agora, que eu estava lavando vasilhas e comecei a pensar nas meninas. Tive uma crise de ansiedade ali mesmo, em pé, com vontade de vomitar e tudo, só por começar a imaginar cenários diferentes na vida delas.

Não to me culpando por sentir ansiedade, porque eu sei que muitas vezes é incontrolável.

Só que nesse desespero de podar os pensamentos ruins, eu podei tudo. Tudinho. Porque eu já não conseguia diferenciar mais o que era imaginação saudável de imaginação ansiosa, o que era divertido e o que poderia a qualquer momento me deixar em pânico. Tudo era uma ameaça, então tudo foi podado.

Como que sobra imaginação assim?

Spoiler: não sobra.

Estou com duas boas ideias de livros rodando a minha vida nesse momento e olho para elas com insegurança. Elas me encaram de volta com receio e tentam devagar fazer nascer as raízes que podem me ajudar a escrevê-las, mas elas sabem onde estão se metendo e que posso a qualquer momento… podar tudo. Surtar.

Ou então eu posso fazer o que já fiz muito: delegar um quadradinho exato, de 1x1, onde essas histórias podem crescer e nada mais. Delegar um horário exato do dia onde posso pensar nelas, sempre com cuidado e atencioso para não deixar elas crescerem demais e se tornarem incontroláveis.

Controle. Preciso saber para onde isso está indo, preciso segurar as rédeas bem forte ou essa história vai sair de controle e vou ter uma crise.

Eu não quero mais fazer isso. Não quero mais controlar minhas histórias, não quero mais apertar o freio da minha mente a qualquer sinal de insegurança, não quero mais tentar prever e controlar cada pedacinho de tudo que está acontecendo. Só que… não sei bem como fazer isso. É um trabalho hercúleo, todo dia, todo minuto, de aprender e reaprender e reaprender e reaprender a não ter medo. Ou, talvez, de seguir com medo e tudo.

Qualquer som me deixa em alerta e é angustiante resistir a vontade de correr e me esconder ao menor sinal de qualquer coisa. Angustiante aguardar lentamente o lobo vir, com seus dentes afiados, a baba escorrendo, a raiva queimando no fundo dos olhos, enquanto eu continuo caminhando, ciente de que ele está ali, que pode atacar.

Às vezes é impossível acreditar que eu de fato tenho armas para me defender, tenho pessoas para me apoiar, tenho carinho e afeto de sobra ao meu redor, e, mais ainda, é difícil acreditar que nem sempre a porra do lobo de fato tá ali.

Sei lá, até ele tem que dormir né? Tem dia que é só um equipamento de som muito potente me enganando, ou só um esquilo que pisou em um galho, um macaquinho fofo ou qualquer uma das outras infinitas coisas existentes que eu nunca via porque eu só corria e me escondia.

Tô cansado de sonhar com lobos, pensar em lobos, correr de lobos.

Quero ver montanhas, água correndo, rostos diferentes, música esquisita, gatos fofinhos e arte que dê tanto tapa na minha cara que eu saia chorando.

Quero ver o meu jardim caótico e cheio e confuso e com planta por cima de planta e quero que nada faça sentido, para, talvez, eu conseguir ver sentido na vida de novo.

Não sei onde isso vai dar, eu só espero que eu me encontre desse outro lado hipotético.

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Koda Gabriel
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25 anos, bissexual e não binário. escrevo romances, ficção especulativa e putarias em geral https://kodagabriel.com.br