Analogias baratas e buracos negros

Tem um buraco negro na minha barriga.

Massivo, bravo, irritado, cansado.

Eu… queria ser capaz de dizer que consigo seguir em frente apesar dele.

Eu não gosto de mentir.

Tem a porra de um buraco negro na minha barriga sugando e sugando e sugando e sugando.

Ele me tira tanta coisa e eu queria gritar, mas não vou.

Hoje não.

Primeiro ele põe as mãos no meu corpo.

Devagar, lento, quase calmo.

Que ironia.

Desvia do sistema de alarme somente o suficiente para não anunciar a sua chegada.

Se instala.

Eu não o sinto chegar, mas reconheço bem quando ele já está ali.

Sugando.

Sugando.

Ele toma segundos, primeiro.

Um flash da minha atenção que se perde.

Eu sei que você está aí.

Outra piscada e algo foi fisgado.

Pode sair, tá tudo bem.

Eu fecho os olhos, eu tento seguir em frente.

Apesar de.

(tarde demais. tarde demais. quase sempre é tarde demais)

Mas o buraco negro não descansa.

Ele tem fome.

Eu também.

Ele me toma um minuto.

Sutil.

Se expande mais um pouco, cresce, me atormenta.

Mas eu volto.

Preciso voltar.

Ele morde mais um minuto.

Sem anúncio.

O cérebro desliga. Não existe mais nada.

Só o buraco.

Só a escuridão.

Mas eu volto.

E então ele me toma meia hora.

Amarra meus pulsos e se expande pelos meus braços e me faz coçar as pernas e eu queria chorar mas não consigo e eu tenho medo e ele está crescendo e é disforme e tem fome tanta fome eu jamais pensei que pudesse sentir tanta fome eu tenho medo eu já disse que tenho medo eu eu eu eu
Eu volto.

Zonzo.

Tremendo.

Alerta.

(tarde demais. tarde demais)

Começa como um tique nas mãos eu balanço a cabeça eu mexo meus pés eu sei que tem algo tem algo fome fome fome fome fome fome fome fome
Fome
Porque eu já li três vezes quatro cinco seis sete oito nove essa mesma linha eu eu eu

Fome fome
Fome
Ele me tira uma hora.

Prostrado.

Refém.

Cansado.

Ele rasteja pelos meus ombros e se instala sob toda minha derme ele sabe que a pele é o maior órgão do corpo humano então ele a suga e a provoca e me provoca e me tira tira tira tira tira

Insaciável.

Fome.

Dessa vez eu choro.

Eu tenho medo.

Eu tenho fome eu tenho ânsia eu não sei eu não sei ele é tão grande tão dominador e eu sou só eu sou só eu sou só eu não aguento mais eu não aguento mais por favor me deixa respirar respirar respirar eu eu eu eu

Alguém me ajuda
Eu quero gritar.

Eu não tenho voz.

Ele me puxa pra dentro.

Dessa vez eu não sei se volto.

Eu me calo silêncio silêncio eco eco eco eco eu tenho medo medo eu não falo me desculpa eu falo demais eu estou cansado DESCULPA eu não quero incomodar DESCULPA eu tô com medo por favor ME DESCULPA eu não quis eu não quis eu não quero

Eu tô com medo.

Eu não sei se volto.

Não sei me mover eu só sei sentir o buraco que suga que suga que me suga e me destrói e eu eu eu eu eu estou há meia hora olhando para o mesmo ponto a vida está passando e eu estou parado com medo com medo sugado prostrado coçando coçando coçando coçando coçando eu eu eu

Eu.

Ele é maior. Tão maior.

Eu sou um só e ele tem bocas tantas bocas e se estica e me morde e me assopra e me deixa somente o suficiente para eu ter esperanças mas ele volta ele não perdoa ele me odeia ele me odeia ele me odeia ele ama me odiar ele se diverte eu tô com medo eu to com medo eu to tão cansado

Socorro
Socorro.

Desculpa.

Eu já disse desculpa?

Não. Eu não sei como terminar isso porque eu pensei que talvez ele fosse embora enquanto eu cuspia palavras mas não. Ele ainda está aqui.

Ele ainda está me sugando.

Mordendo.

Mordendo.

Eu tô com medo.

Então eu me calo mas eu não sei me calar de verdade as palavras elas saltam dos meus dedos antes que minha mente as processe eu não pensei e já foi desculpa eu não fiz por mal me perdoa me perdoa eu tô com medo tanto medo.

Eu queria chorar.

Não sai nada.

Ele tem tantas bocas e a baba fede e ele ele ele ele ele me rendeu há tanto tempo mas também fazia tanto tempo que eu não o via e ele é grande tão grande eu eu eu.

Eu não volto.

Dessa vez não.

Desculpa.

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