Um desabafo sobre gênero

Koda Gabriel
kodagabriel
Published in
9 min readJul 13, 2021

--

uma foto minha ao fundo, de perfil. tenho pele marrom e cabelo comprido e cacheado. no meu rosto tem uma bandeira bi de adesivo. por cima, translucido, uma bandeira não binária

Esse texto é um misto de auto análise com desabafo. Ele fala por mim, e só por mim. Não sou porta voz de uma comunidade, não falo por todas as pessoas não-binárias, não tenho pretenção de definir minha experiência como absoluta.

Quero só falar sobre como foi e é para mim, como ando me percebendo, o que me saltou aos olhos nesses últimos quatro anos e também o que eu tenho refletido sobre meu passado. Em alguns pontos, o texto contém saltos de um assunto para outro. Fiz algum esforço para tentar alinhar as coisas em uma ordem que fizesse sentido, mas também resolvi manter parte da linha de raciocínio que eu tive enquanto construía esse desabafo. Dito isso, comecemos:

***

Me descobrir lá em 2016~2017 foi ao mesmo tempo maravilhoso (como finalmente perceber que as coisinhas pulando na minha cabeça não eram de mentira), mas também estranho. Eu estava mexendo com algo que eu não entendia teoricamente bem e eu não entendia também na prática. Era só uma coisa que fazia absoluto sentido para a pessoa que desde que se lembra não conseguia se sentir inteiramente confortável como mulher, mas que sempre odiou a ideia de ser um homem. Uma… Outra coisa? Sim, claro. É isso. Aceito. Por favor.

E não binário foi, e não binário é.

Termos, nenhum deles nunca fez sentido pra mim. Não, minto. Eles sempre fizeram sentido, eles só não se aplicavam a mim. Agênero? Não.. eu tenho… Um gênero. Eu acho. Gênero, what a concept. Bigênero? Também não. Gênero fluido? Talvez, mas não exatamente. Não. Não é bem isso.

***

Sair do armário ativou todas as minhas disforias. Eu estava exigindo coisas do meu corpo, e, naquela época, ele até podia me dar.

Eu cortei meu cabelo. Muito. Muitas vezes. Cada vez mais. Minha mãe não me deixa esquecer disso. Ninguém deixa, na verdade. Eu escuto tantas vezes sobre como estou mais lind(a/o) agora com meu cabelo grande que eu penso em cortar pela ousadia e raiva. Mas eu quero ele assim, e essas pessoas que se fodam. Eu acho.

Hoje eu acho que estava fugindo de ser mulher.

Porque eu ainda odeio que pensem que sou homem, mas eu prefiro que pensem que sou homem às vezes só pra não ter que lidar com um misgender.

Talvez tenha algo a ver com nunca ter sido de fato visto como mulher.

Eu olho pra trás, e muitas coisas não se encaixam. Eu gostava de brincos e maquiagem. (Que não são coisas de mulher, ok, mas que me foram impostos assim.) Por que eu parei de usar? Sou forçado a pensar que é por isso, por nunca ter sido visto como uma mulher completa.

Eu era estranho. Meu cabelo era estranho. Minha performance de gênero era confusa, não fazia sentido. Rejeitado. De novo. De novo. De novo. Mulher? Não, eu não sou isso. Não tenho como ser.

***

Quando o (que hoje eu sei que é) racismo venceu e eu alisei a porra do meu cabelo, eu passei rapidamente de “maria homem” pra puta. A puta de brinco e maquiagem. A puta arrumadinha sete horas da manhã no colégio (agora que uniforme não era obrigatório, eu queria estar… legal, né?). A puta que chegou atrasada com o garoto no primeiro tempo depois do almoço e fez até o professor rir porque é claro que a puta estava beijando na boca (era a segunda semana de aula, filhos da puta, eu olhei o horário errado).

Eu larguei tudo isso. Eu cansei de ser a puta.

Ai a puta fez amigos, que descobriu que eram do grupo que achavam que ela era uma puta. Mas eles eram legais, né? E eu não era mais uma puta.

***

Eu acho que fugi de tudo que era visto como “mulher” porque eu não queria nunca dar o direito de me chamar de ELA pra pessoas que a vida inteira me disseram que eu não era ela o suficiente.

***

Então, bom, sair do armário me deixou disfórico as fuck. Eu queria um binder, eu queria passabilidade. Mesmo que não exista a porra de uma passabilidade não-binária, eu só, por favor, pelo amor de deus, não queria ser visto como mulher. Eu não era mulher. Nunca me deixaram ser.

***

Mesmo no auge do meu feminismo, lá pros 18 anos, eu me sentia lutando pra estar ali. Raiva, eu tinha muita raiva nessa época, mas eu também tinha pulgas, e elas coçavam e me incomodavam e eram um lembre de que tinha algo errado. Algo profundamente errado.

Me dá até certa azia lembrar da raiva onde eu estava inserido em 2015. Era tentador, parecia um coletivo, me trouxe um senso de pertencimento que foi rapidamente tomado das minhas mãos quando eu percebi que eu não era exatamente aquilo.

Oi, desculpa, eu não sou… exatamente mulher. O que a gente faz agora?

Eu não sei. Elas por elas. Faça tal coisa como uma garota. Eu me senti (eu me sinto) muito mesquinho por ter criado raiva disso. Foi a minha forma de lidar com o desespero que foi sair de um lugar onde eu me sentia parte de algo e cair em um limbo onde eu estava… só. Apagado. Esquecido. Sem referências.

Eu parei de me denominar feminista porque o feminismo (enquanto coletivo de pessoas feministas, não enquanto luta), não fazia mais sentido pra mim. Porque eu estava socando ponta de faca defendendo uma galera que insistia em falar tudo esquecendo que eu existo? Que tem gente como eu que se pá deveria estar incluso em metade dessas conversas, mas que era deixado de lado. Interseccionalidade. Isso ainda faz sentido pra mim. Recorte, do recorte, do recorte, diagrama de venn, discussões que se cruzam. Queria não ter criado toda essa raiva, mas eu criei.

Tudo isso fugindo de ser mulher.

Mas aí eu comecei a engordar.

Ai, tudo lentamente começou a mudar.

É claro que eu só percebi quando a coisa já estava totalmente fora de controle, porque a gente não nota isso logo de cara.

Eu sempre tive uma preferência por roupas mais largas, então tudo foi ficando disfarçado ali. Eu estava de binder o tempo todo, então meu peito também ficou disfarçado ali.

***

Eu lembro mais ou menos quando começou a desmoronar esse castelo que eu criei pra me blindar de ser visto como mulher. Quando o binder parou de funcionar, porque meu peito estava grande demais. E aí as roupas, eu perdi boa parte das minhas roupas. Eu também parei de tirar fotos, porque parei de me sentir bonito. (O google está tentando corrigir bonito para bonita, enfim, a fucking ironia).

Aqui, a transfobia, a disforia e a gordofobia deram as mãos e se tornaram melhores amigas.

Life was a party and I was the piñata.

Eu tenho apenas nove fotos postadas em 2019. Uma delas tem o meu rosto.

Dá pra ver onde eu quero chegar?

Eu era o adolescente que precisava esvaziar a memória do celular todo mês de tanto que eu tirava foto — de mim, do mundo, das coisas, das pessoas. Eu fui esmagado.

Acho que nunca antes eu me odiei tanto.

Peguei o péssimo hábito de tomar banho de luz apagada. Sempre. De preferência somente à noite, no escuro. No meu histórico do youtube deve ter um número assustador de visualizações em um vídeo chamado 10 hour white screen. Era a única luz que eu permitia que entrasse.

Foi aqui que meu castelo ruiu, porque eu não tinha mais “passabilidade”. Meu binder não me servia, eu evidentemente tinha peitos. Coxas. Bunda. Cara de mulher.

Seja lá o que CARALHOS cara de mulher signifique.

Comprei outro binder. Ele chegou apertado e com um mês começou a ferir minha pele.

Continuei usando.

Eu sangrava, chorava, me odiava. Esse parecia ser o único caminho possível agora que eu não tinha mais poder de controlar como me viam.

***

Assim que eu saí do armário minha psicóloga falou muito sobre eu precisar adquirir a confiança de sair de casa com uma melancia na cabeça, se eu quisesse, e segurar essa confiança independente das outras pessoas. Era uma fucking hipérbole pro medo que eu tinha, mas fazia sentido.

***

Ser visto como mulher, no fim, foi tudo que me restou.

E aí, talvez, foi aí que eu fiquei com raiva (de novo?). E me cansei.

Cansei de discutir, de advogar, de bater boca. De me sentir mal.

E daí se me chamam de ela? Eu posso odiar isso, mas eu não posso morrer por isso. Não mais. Foi um misto de “eu desisto” com “talvez eu devesse concentrar minhas energias em outra coisa”.

Perder a passibilidade me trouxe a compreensão de que… foda-se?

No fim do dia, eu continuei eu. E no dia seguinte, às vezes eu era uma pessoa diferente. Às vezes eu era exatamente a mesma pessoa.

Meu cabelo cresceu, eu comprei outras roupas, eu fiquei mais de um ano sem binder. Minha expressão de gênero se tornou menos caótica. Dependendo do ponto de vista, claro. Ainda é caótico me apresentar assim e exigir que usem ele comigo no trabalho, nas redes sociais, no dia a dia. Mas na rua eu sou ela, não me olham duas vezes.

***

Acima de tudo, cada vez mais eu fui percebendo que meu gênero era intrinsicamente sobre quem eu era. Sobre quem eu sou. Meu gênero existe porque eu existo. Eu sou não-binário porque ser homem ou mulher (ou homem e mulher) não explica o koda de ontem, não abrange o koda de amanhã, e não contempla a elasticidade de uma existência inteira.

***

Tinha uma imagem rodando a internet sobre alinhamento de gênero/sexualidade, etc, e eu não soube explicar porque me incomodava muito olhar para a linha “extremamente masculino — andrógino — extremamente feminino” e não conseguir entender onde me colocar.

Eu não sou/estou andrógino. Não há muito tempo, pelo menos.

Mas feminino? Não, não só porque meu cabelo está grande. Não só porque tenho peitos (e embora a disforia bote suas garras em mim todo dia, embora odiar meu corpo ainda seja um sentimento que exista, eu estou sobrevivendo).

A porra da minha expressão de gênero é minha, e só. Ela não é feminina porque se parece com signos ditos de mulher. Ou neutra. Ou masculina. Ela é tão minha quanto meu gênero é meu, tão construída quanto meu gênero é construído, e amanhã pode ser outra, e depois outra, e depois outra: não-binária, fora, o outro, o escape.

Eu ainda estou fugindo de ser mulher? Talvez.

Mas acho que estou chegando todo dia mais perto de ser eu. E só.

***

Não quero chamar de conclusão o fato de que eu sou meu gênero e meu gênero sou eu porque isso se parece muito como uma resposta fixa, e é meio que justamente sobre não ser fixo. Shapeshifter, eu penso muito nessa palavra quando penso em mim. Também já fiz a analogia com amoeba mais de uma vez. Algo que se aperta, se estica, se molda, se brinca, depois começa tudo de novo diferente. Mistura com outra cor, e agora nunca mais tem como voltar a ser o que era antes. E que bom?

Eu gosto de negar as coisas. Petulância, outra palavra que eu gosto muito.

Você é mulher? Não.

Homem? Não.

Não-lugar.

Minha memória é um lixo, mas eu nunca esqueci de bell hooks falando desse não lugar. Ela não falava exatamente de gênero, e não exatamente dessa forma, mas fez tanto sentido. Eu costumava odiar estar nesse não-lugar, mas ele é a minha casa.

Transgredir é a minha existência.

Confundir é meu sobrenome. Incomodar. Questionar. Bater o pé.

E às vezes, às vezes chorar quando uma garota disser que sente muito ter errado meus pronomes, mas é que a minha voz a confundiu. Sim, eu quero confundir. Mas às vezes dói muito querer confundir.

***

Eu também penso se talvez seria mais fácil explicar pra minha mãe se eu fosse menos caótico. Como eu vou reivindicar ele se eu pareço uma garota — frase muito difícil de falar, porque eu posso gritar que minha expressão de gênero é minha, e ela pode ser, no fundo, apenas minha. Mas o mundo ainda é mundo. A confusão que eu causo é divertidíssima, mas também… confusa.

Estou partindo do princípio que eventualmente vou precisar explicar, e não só pedir por favor, me respeite. Mas como? Confuso. Eu nunca fui mulher, mãe. Nunca me deixaram ser.

***

(Nome, nome é um caralho que me quebra. Eu me sinto tocando em algo que meus pais escolheram pra mim e em algo que vão considerar uma ofensa quase mais pessoal do que todo o resto do desvio moral que eu sou. Não vou desenvolver isso agora. Só lembrei desse B.O.)

***

Meu corpo é um templo em constante reforma. Não repara a bagunça, estou sempre quebrando tudo pra construir a melhor versão de mim.

--

--

Koda Gabriel
kodagabriel

25 anos, bissexual e não binário. escrevo romances, ficção especulativa e putarias em geral https://kodagabriel.com.br