Photo by Rachman Reilli on Unsplash

[…]EstLux — SAPIENS NA BALBÚRDIA #04 — A inundação*

Cynthia Hansen
KOMONO | POR UMA VIDA MAIS CONSCIENTE
6 min readMar 27, 2020

--

Da leitura do ‘Capítulo 4 — A inundação’, do livro ‘Sapiens: uma breve história da humanidade’, de Yuval Noah Harari, surgiu uma inquietação:

1) Pensando que, desde o surgimento do Homo sapiens, outras espécies da fauna e, inclusive, da flora, foram constantemente agredidas de uma forma muito agressiva pela sua presença, não seria questão de nos pensarmos como algum tipo de ‘agente cancerígeno’ que atua no planeta, em vez de ‘a espécie mais evoluída’?

Este questionamento se refere, especialmente, ao seguinte trecho:

A jornada dos primeiros humanos à Austrália é um dos acontecimentos mais importantes da história, pelo menos, tão importante quanto a viagem de Colombo à América ou a expedição da Apollo 11 à Lua. Foi a primeira vez que um humano conseguiu deixar o sistema ecológico afro-asiático — na verdade, a primeira vez que um grande mamífero terrestre conseguiu ir desse continente à Austrália. Ainda mais importante foi o que os pioneiros humanos fizeram nesse novo mundo. O momento em que o primeiro caçador-coletor pôs os pés no litoral australiano foi o momento em que o Homo sapiens subiu ao topo da cadeia alimentar num território específico e a partir daí se tornou a espécie mais mortífera do planeta.

Até então os humanos haviam apresentado alguns comportamentos e adaptações inovadores, mas seu efeito sobre o ambiente fora insignificante. Eles haviam demonstrado sucesso notável ao se adaptar aos vários habitats, mas o fizeram sem mudar drasticamente esses habitats. Os povoadores da Austrália, ou, mais precisamente, seus conquistadores, não simplesmente se adaptaram, eles transformaram o ecossistema australiano de tal forma que já não seria possível reconhecê-lo (HARARI, 2017, p. 74–75).

O que se apresenta a seguir são algumas das questões que emergiram do grupo a partir deste questionamento.

A jornalista Elisabeth Kolbert, em seu livro ‘A sexta extinção: uma história não natural’, trata especificamente desta questão, explicando de que maneira e por que o ser humano alterou a vida no planeta como absolutamente nenhuma espécie até hoje, mostrando que a sexta extinção corre o risco de ser o legado final da humanidade e nos convidando a repensar uma questão fundamental: o que significa ser humano? Considerando este panorama, parece mais adequado pensar no Homo sapiens como um vírus que se alastra rapidamente pelo planeta.

As tecnologias que desenvolvemos e que nos permitiram quebrar o paradigma do tempo natural tiveram como consequência não só a artificialização do tempo, mas também da nossa própria evolução como espécie no planeta, e não há parâmetros para desenvolver uma resposta adequada à pergunta: ‘como resolver o problema gerado pelo fato de termos ultrapassado o ponto de saturação do planeta Terra?’.

Ironicamente, a coletividade que serviu de estratégia para a evolução da espécie é, hoje, a estratégia que está sendo utilizada para a sua autodestruição. E isso se dá pelo esvaziamento do significado de coletividade. Construímos, coletivamente, um ‘imaginário consentido’ sobre como deve se comportar uma sociedade que prega o individualismo e estamos pagando o preço por isso. A atual situação de imersão em telas que presenciamos, alimentada por algoritmos criadores de bolhas existenciais, contribui imensamente para a manutenção deste sistema. São vários os episódios da série Black Mirror, da Netflix, que ilustram este raciocínio.

A vida baseada em rótulos faz esquecer o sentido profundo de coletividade como participação ativa na manutenção de um sistema que beneficie todo o grupo. Interessa apenas como o indivíduo se apresenta para garantir que seja reconhecido de uma determinada forma pelos demais. Mesmo quando há um grupo, ele não passa de uma bolha social.

Neste contexto surge, por exemplo, a contra-tendência do ‘natural’, da qual se pode observar a busca, entre outros, por alimentos orgânicos. Aproveitando o momento, grupos têm se organizado no sentido de criar condições para estimular o comércio justo entre produtores locais e consumidores, promovendo sua aproximação. Entretanto, uma parcela das pessoas que buscam tais alimentos está muito pouco interessada em fazer parte de uma comunidade realmente preocupada com a transformação, prezando apenas pelo benefício individual que esta comunidade possa lhe trazer.

Do outro lado, o individualismo alimenta a crença na importância da posse de territórios e espaços, que contribui fortemente para a onda de aversão à imigrantes que acompanha os movimentos migratórios gerados por guerras e desastres naturais. Justifica-se como luta pela sobrevivência o comportamento de intolerância contra estrangeiros por conta da perda de empregos dos habitantes locais vista a possibilidade de pagamento de menores salários aos que chegam de fora, bem como por conta da precarização dos serviços públicos em vista do aumento de demanda gerado pela entrada dos novos usuários. Situações como estas não são típicas apenas de países em desenvolvimento, podem ser encontradas inclusive em países altamente desenvolvidos da Europa, como a Suécia. O documentário ‘A vida em mim’, da Netflix, mostra a situação de famílias de refugiados asilados na Suécia que convivem com a Síndrome da Resignação, doença que atinge centenas de jovens e crianças e que têm sintomas parecido com os do coma.

De outro lado, a ignorância, a desinformação e o medo do desconhecido também contribuem para com atitudes preconceituosas. Por exemplo,chineses e outros indivíduos de origem asiática têm sido alvo de ofensas e constrangimento em espaços públicos desde o agravamento do surto de coronavírus na China.

Nestes casos todos, considerando que muitas das escolhas das pessoas se dão a partir de decisões baseadas em julgamentos subjetivos, a pergunta que surge é: como garantir condições adequadas para uma mudança de comportamento? Certamente, é imprescindível uma revisão de crenças no sentido de assumirmos que é possível prover espaço e qualidade de vida para todas as pessoas do planeta, não somente para algumas. Pelo menos é o que acredita o mitologista Joseph Campbell, que, em seu livro ‘O poder do mito’, nos brinda, no final do primeiro capítulo, que trata das relações entre o mito e o mundo moderno, com os seguintes apontamentos sobre como resgatar nossa humanidade a partir da habilidade mesma que nos tornou a espécie dominante do planeta, a capacidade de criar ficções:

[…] Você não pode prever que mito está para surgir, assim como não pode prever o que irá sonhar esta noite. Mitos e sonhos vêm do mesmo lugar. Vêm de tomadas de consciência de um a espécie tal que precisam encontrar expressão numa forma simbólica. E o único mito de que valerá a pena cogitar, no futuro imediato, é o que fala do planeta, não da cidade, não deste ou daquele povo, mas do planeta e de todas as pessoas que estão nele. Esta é a minha idéia fundamental do mito que está por vir.

E ele lidará exatamente com aquilo com que todos os mitos têm lidado — o amadurecimento do indivíduo, da dependência à idade adulta, depois à maturidade e depois à morte; e então com a questão de como se relacionar com esta sociedade e como relacionar esta sociedade com o mundo da natureza e com o cosmos. É disso que os mitos têm falado, desde sempre, e é disso que o novo mito terá de falar. Mas ele falará da sociedade planetária. Enquanto isso estiver em curso, nada irá acontecer (CAMPBELL, 1991, p. 46).

* A proposta das sessões de leitura reflexiva […]EstLux é imergir em temáticas importantes da contemporaneidade conhecendo pontos de vista diversos, entrando em contato com diferentes referências e repertórios e exercitando a escuta ativa e a fala consciente, de modo a promover um diálogo capaz de ampliar visões de mundo sem, necessariamente, levar a um consenso ou resposta final às questões que são levantadas nas sessões.

Alguns papéis são primordiais para o bom andamento das sessões: o do anfitrião, do condutor e do facilitador. Em relação ao anfitrião, todas as sessões desta edição do […]EstLux acontecem na sede do coletivo de arte Balbúrdia, na Rua Comandante Joãozinho Haeger, 112 — Centro, em Blumenau (SC).

Este texto se baseia nas discussões geradas por uma sessão de leitura reflexiva do ‘Capítulo 4 — A inundação’, do livro ‘Sapiens: uma breve história da humanidade’, de Yuval Noah Harari, realizada em 04 de março de 2020. A sessão foi conduzida por Bárbara Machado, que trouxe as inquietações apresentadas para a discussão do grupo. Participaram da sessão: Bárbara Machado, Cynthia Hansen, Guilherme Hostins, Josiane Demo, Luciana da Rosa e Sávio Abi-Zaid.

Idealização e facilitação: Komono Caminhos de Aprendizagem. A proposta da Komono é oferecer caminhos voltados à aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de habilidades cognitivas, emocionais e sociais. A ideia é ajudar as pessoas a escolherem caminhos que as façam viver de uma forma mais leve e feliz.

--

--

Cynthia Hansen
KOMONO | POR UMA VIDA MAIS CONSCIENTE

Publicitária, professora, apaixonada por aprendizagem, eterna aprendiz, co-idealizadora do Heimo Learning Lab e ligada em 220V! about.me/cynthia.hansen