“Ambiguidade” do idioma japonês: harmonia, sensibilidade e moderação!

Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd
Published in
5 min readSep 10, 2018

A essência da cortesia obriga que a pessoa diga aquilo que dela se espera, e nada mais. — Kakuzo Okakura, em O Livro do Chá.

Essa incrível frase de Kakuzo Okakura já dá algumas dicas sobre a busca da harmonia, moderação e sensibilidade que envolve o uso do idioma japonês. Muitas pessoas têm a impressão de que este é um dos mais difíceis de se aprender. Além dos numerosos ideogramas e as formas polidas que transformam o discurso, uma das razões de dificuldade levantadas por estrangeiros e até pelos próprios japoneses é o fato do idioma ser considerado ambíguo, cheio de silêncios e pausas, como se fosse um código que os não nativos, mesmo se dedicando muito, jamais conseguiriam aprender. No entanto, o idioma japonês não falha em expressar nenhum sentimento, desejo, ideia ou ação. Na realidade, precisamos sempre pensar que uma língua vai muito além das palavras que a compõem!

De fato, essa suposta “ambiguidade” tem pouco a ver com o idioma em si e está intimamente relacionado a questões culturais que envolvem o falante de japonês. No caso do japonês, duas palavras, que são consideradas virtudes no país, são fundamentais para captar a essência do falante: o 気配り(kikubari: atenção ou sensibilidade aos outros) e o 遠慮(enryo: moderação, reserva, fazer cerimônia).

Em primeiro lugar, vejamos alguns exemplos que geram essa impressão de ambiguidade. O destaque fica para as negações em japonês. Por exemplo, ao convidar alguém para sair no dia seguinte, a resposta japonesa pode ser um “明日はちょっと…” (ashita wa chotto… : amanhã é um pouco…). E talvez você fique se perguntando: “Amanhã é um pouco… o que? ”. Ou você pode ouvir um “難しいですね…” (muzukashii desune: é difícil, né…). “Qual seria a dificuldade? ” Na verdade, ambas as expressões significam: “não vai dar” ou até mesmo um “jamais”! Já nas discussões sobre temas “controversos”, a resposta de alguém que não concorda com você seria: そうですけど(soo desu kedo: está certo, mas…) ou それはちょっと(sore wa chotto: isso é um pouco…). Um outro exemplo é: quando algo não vai muito bem, os japoneses têm uma gama de palavras para “amenizar” o fato de algo estar com defeito. Como indica Roger Pulvers, uma catraca quebrada de uma estação vai estar indicada como “使用中止” (shiyou chushi: uso suspenso) ou 調整中(chousei chuu: em ajuste) e jamais como 故障(koshou: quebrado/inoperante). A nuance que fica é de que a situação já está sendo revertida e que tudo será resolvido em instantes! O objetivo é não causar um grande desconforto no público, buscando manter a harmonia.

Para muitos estrangeiros, essas expressões ambíguas podem parecer uma tentativa de desviar o assunto ou não contar a verdade. Mas, no Japão, existe uma atenção especial dada à harmonia (和: wa), e sua busca para minimizar atritos, desconfortos ou desagrados, o que nos leva aos profundos conceitos de 気配り(kikubari: atenção ou sensibilidade aos outros) e 遠慮(enryo: moderação, fazer cerimônia).

Harmonia japonesa: Wa (和)

気配り(kikubari): a palavra vai muito além da sensibilidade ou atenção destinada aos outros. Por trás desta palavra, existe uma noção de que cada um de nós faz parte de uma comunidade, podendo ser esta a sua família, seus amigos ou colegas de trabalho. Ao fazer o kikubari, você presta atenção a estas pessoas e entende o que é positivo (o que agrada a maioria) e o que é negativo (o que irrita a maioria). Faz parte do kikubari não ouvir música alta no transporte público, não conversar alto no telefone no ambiente de trabalho ou não fazer algo que gere um atrito ou irrite o colega, como fazer piadas machistas ou mastigar chiclete fazendo barulho (please!). Tudo em busca da harmonia do grupo, mesmo parecendo algo trivial ou pequeno. E esta é uma via de mão dupla. Espera-se que todos tenham esse comportamento. Quem não tem kikubari não tem a habilidade essencial para a boa convivência em grupo. Em outras palavras, seja legal com as pessoas!

遠慮(enryo): a moderação ou o fazer cerimônia é uma das formas principais de mostrar polidez e boas maneiras, seja na fala ou também nas atitudes. Significa ter cuidado diante do seu interlocutor, para não ser impositivo ou egoísta, com o intuito de não gerar confronto direto. Expressões taxativas e extremamente sinceras são, muitas vezes, evitadas, pensando-se em não gerar desconforto ao ouvinte. Ou seja, mesmo que não concorde com a opinião do outro, você tem cuidado com a pessoa e utiliza recursos linguísticos para discordar sem ser rude ou impositivo, sem atacar o seu interlocutor. E isso reflete-se em atitudes como dizer “não precisa se incomodar” para o anfitrião que te oferece uma bebida, discordar de forma inteligente e educada de alguém que não vota no seu candidato ou ter moderação na hora de encher o prato no almoço de domingo, com a família inteira esperando para se servir!

Além desses dois aspectos, o silêncio e as pausas são recorrentes em uma conversa com japoneses. Esses aspectos são complexos e precisam de uma análise mais detalhada. Mas, no Japão, esses “vazios” podem ser áreas de transições e coexistência. Lao-Tzu, filósofo chinês e fundador do Taoísmo explica que “o vazio é o que pode tudo porque pode conter tudo (…). Aquele que pudesse se transformar num vazio em que os outros pudessem livremente introduzir-se se tornaria o dono de todas as situações” (Okakuro, p. 70). Ou seja, deixando-se algo por dizer, dá-se a oportunidade de o observador completar a ideia.

Agora, imagine um estrangeiro aprendendo português. Há uma gama imensa de aspectos culturais extremamente específicos a nós brasileiros que usamos o português, que criará nuances e expressões que talvez nem nossos amigos lusitanos consigam entender. Por exemplo, para um brasileiro, "passa lá em casa qualquer dia para tomar um café" não é exatamente um convite formal, mas para um japonês a mensagem já é outra. Por isso, na hora de aprender qualquer idioma, incluindo o japonês e o português, é preciso também incluir, na lista de estudos, os diversos aspectos culturais, históricos e comportamentais, além de diversas convenções sociais de um determinado país.

Entendido os dois conceitos, retornamos à frase de Kakuzo Okakura que abriu este texto. No Japão, a harmonia é buscada através de palavras e ações que se limitam ao que é necessário, sem quebrar a harmonia e sem causar confronto e desconforto. E essa possibilidade não é restrita ao japonês, podendo ser aplicada em todos os idiomas.

Em tempos de intolerância e ataques gratuitos na internet, em que enfrentamos dificuldades para manter discussões razoáveis, podemos aprender com os japoneses: às vezes, é melhor usarmos a moderação e a sensibilidade diante do sentimento ou opinião alheia para mantermos a harmonia em nosso meio de convívio social. Não se trata de concordar com tudo e com todos, sem ter opinião própria. Mas de respeito e noção de coletivo, o que vai além das palavras.

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Referências Bibliográficas:

Pulvers, R. When muzukashii means more than ‘difficult’, https://www.japantimes.co.jp/life/2006/07/25/language/when-muzukashii-means-more-than-difficult/#.W5aqES3OrBJ (acesso dia 10/9/2018)

Pulvers, R. Whatever some say, there’s no Japanese-language ‘code’ to be deciphered, https://www.japantimes.co.jp/life/2013/05/26/general/whatever-some-say-theres-no-japanese-language-code-to-be-deciphered/#.W5aqZy3OrBI (acesso dia 10/9/2018)

Takita, F. Cross-cultural Comparison of Linguistic Politeness Strategies. Expressing Power and Solidarity. Department of International Studies. Interim Report, 2010. Hiroshima City University.

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Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd

Intérprete e Tradutora de Japonês ❤ E também ecomista e mestre em história econômica!