”Dekasseguês”: o português é lindo no Japão!

Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd
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5 min readAug 27, 2018

“Gomen, hoje estou isogashii… Não tive kyukei e vou fazer zangyo, mas amanhã tenho yasumi e vou te visitar!”

Se você deu um sorriso e se identificou, parabéns! Você fala dekasseguêse já deve ter ralado muito no Japão! Considerada uma variante do português (Dias, 2015, p. 66), o dekasseguês é o português que mistura palavras japonesas, e até mesmo neologismos criados pela junção dos dois idiomas, e é falado pelos brasileiros que trabalham no Japão. Esse termo refere-se aos dekasseguis, os trabalhadores que deixam sua terra natal para trabalhar temporariamente em outra região ou país.

Na década de 1990, o governo japonês facilitou a emissão de vistos para os nikkeis (descendentes de japoneses), que trabalhariam nas fábricas em expansão no país. Com salários mais baixos que os japoneses, muitos sofreram e ainda sofrem com longas jornadas de trabalho e atividades chamadas de 3K (kitanai-sujo, kiken-perigoso, kitsui-pesado). De fato, a vida não é fácil no Japão. E neste contexto, grandes comunidades brasileiras se formaram em diversas regiões, com destaque para as províncias de Shizuoka, Aichi e Gunma. Em 2007, o número de dekasseguis brasileiros atingiu o pico de 317 mil pessoas.

Questões culturais e linguísticas dificultaram a interação com os japoneses e a comunidade se fortaleceu, com uma solidariedade muito grande entre os brasileiros. A sociedade japonesa tende a ser muito homogênea e, muitas vezes, é difícil se inserir na sociedade quando não se fala o idioma local e não conhece os costumes e regras sociais estabelecidas. Mas, mesmo com essa interação frequentemente limitada apenas ao ambiente de trabalho, o contato com a cultura nipônica teve grande influência na linguagem, gerando essa variação linguística que tratamos aqui.

As variações linguísticas são mudanças que uma língua apresenta em função das condições sociais, culturais, regionais e históricas em que é falada. Isso acontece pelo fato das línguas serem dinâmicas e variarem de acordo com a região, escolaridade, idade, etc. Esta é uma característica cada vez mais presente na língua portuguesa falada, tanto no Brasil como em outros países.

E esta variante do português é fundamental para entender a realidade na qual muitos dekasseguis estão inseridos. Nestas regiões onde os brasileiros estão concentrados, a maioria dos serviços já tem atendimento em português e muitos materiais e documentos da prefeitura, por exemplo, já são traduzidos. Isso tudo facilita a vida cotidiana e limita a necessidade de aprender o idioma, que não é nada simples. Enquanto isso, os ambientes de trabalho dos brasileiros não variam muito e usar o japonês para se referir ao trabalho facilita a conversação.

Quase como algo natural, palavras em japonês vão surgindo no meio da conversa em português! Palavras relacionadas à vida diária, como arigato (obrigado), ohayo (bom dia) e daijobu (estar tudo bem) se juntam às palavras relacionadas ao trabalho, como zangyo (hora-extra), kyukei (descanso) e yakin (turno da noite). Além disso, a nossa criatividade gerou o onegaizão (um super favor) e a tchawanzinha (pequena tigela), entre outros que chegam a ser engraçados!

Há quem critique essa variante do português, em um exemplo clássico de preconceito linguístico. Conforme explica Bagno (1999), o preconceito linguístico é pautado na afirmação de que existe somente “uma única língua portuguesa digna deste nome”, que seria a ensinada nas escolas, aquela convencionada em gramáticas e dicionários. Ou seja, o preconceito linguístico desconsidera e estigmatiza qualquer manifestação linguística que fuja desses parâmetros, ignorando, de maneira até egoísta, o fato de que a língua é viva, é dinâmica e que pode passar pelo processo de variação sim, principalmente na língua falada.

Em pesquisa realizada por Dias (2015), que entrevistou diversos brasileiros no Japão, percebeu-se que existe um preconceito com relação à essa variante. Muitas vezes, de forma equivocada, os próprios brasileiros associam o dekasseguês à baixa escolaridade ou ao fato dos trabalhadores serem mão de obra não especializada. No entanto, qualquer idioma pode ser flexibilizado para melhorar a comunicação, sem ser taxado como feio ou errado, visto que a linguagem falada é praticamente uma ferramenta de sobrevivência humana e que pode e deve ser ajustada de acordo com a realidade de cada falante. Logo, não se trata de um português “mal falado” e que “descaracteriza o português brasileiro” e muito menos impacta o japonês. Um brasileiro poderá usar o dekasseguês no ambiente em que esta variação faz sentido.

Clareando a ideia de que essas variações linguísticas precisam ser abordadas e inclusive já vêm sendo tratada há muito tempo, Bagno (1999) cita uma passagem do livro, publicado em 1934, “Emília no País da Gramática”, de Monteiro Lobato,na qual a velha Dona Etimologia diz o seguinte às crianças do Sítio do Pica-pau Amarelo (pp. 100–101):

[…] Uma língua não para nunca. Evolui sempre, isto é, muda sempre. Há certos gramáticos que querem fazer a língua parar num certo ponto, e acham que é erro dizermos de modo diferente do que diziam os clássicos. […] O que sucede é que uma língua, sempre que muda de terra, começa a variar muito mais depressa do que se não tivesse mudado. Os costumes são outros, a natureza é outra — as necessidades de expressão tornam-se outras. Tudo junto força a língua que emigra a adaptar-se à sua nova pátria.

É preciso nos atentarmos ao preconceito em relação àquilo que é diferente, com sensibilidade para entender essa evolução e perceber como a língua se adapta em realidades diferentes. A vida não é fácil para aqueles que buscam oportunidades em um país com uma cultura tão diferente em diversos aspectos. E a evolução que estas pessoas estão trazendo ao seu idioma falado é essencial para uma melhor adaptação à sua nova vida do outro lado do mundo. Por isso, é preciso respeitar e valorizar o que é diferente, pois somos todos diferentes, inseridos em realidades muito diversas.

Vida longa ao dekasseguês!

Referências Bibliográficas

Bagno, M (1999) Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. São Paulo; edições Loyola

Dias, N. (2015) "Dekasseguês: Um português diferente? Variações linguísticas e interculturalidade nas migrações contemporâneas dentro do sistema-mundo moderno" in: Horizontes Decoloniales Volumen 1, №1 (2015): pp. 62-101

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Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd

Intérprete e Tradutora de Japonês ❤ E também ecomista e mestre em história econômica!