O machismo na língua: somos responsáveis por eliminá-lo?

Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd
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8 min readDec 18, 2019

Quem trabalha com comunicação está cada vez mais prestando atenção às mudanças de vocabulário e escolha de palavras para melhor transmitir uma mensagem, visto que, por meio da língua, diversas discriminações são perpetuadas, pois ela reflete valores e a mentalidade da sociedade que a cria e utiliza. Por vezes, por falta de consciência e informação, acabamos utilizando termos que reforçam relações de poder desiguais, como o machismo, racismo, xenofobia e homofobia. Mas um pouco de atenção pode mudar essa realidade: aos poucos, porém com suma importância.

O objetivo desta pequena contribuição é organizar, por meio de uma breve análise da língua portuguesa e da língua japonesa, algumas ideias que evidenciam como o machismo na língua tem aspectos históricos, buscando aumentar a consciência de que precisamos adaptar, reestruturar, reinventar e melhorar a qualidade das palavras que escolhemos.

O primeiro passo desse processo é compreender que nenhuma língua é neutra, imparcial e isenta de valores. A língua, como um importante componente da cultura, transfere os valores, bem como os preconceitos existentes para a sociedade que a utiliza. E, de fato, é difícil percebermos essa faceta do idioma, pois a língua é uma herança, ou seja, já nascemos inseridos em um ambiente rodeado por um idioma que carrega uma história, uma cultura e um desenvolvimento de longa data e que, muitas vezes, contém palavras e expressões que já não representam a geração à qual pertencemos. E como a comunicação envolvendo a linguagem está inserida de forma profunda nas relações humanas, o preconceito e a desigualdade, em diversos níveis e aspectos, também acabam sendo perpetuados. Há relações de poder intrínsecas no idioma, que foram naturalizadas ao longo do seu desenvolvimento, mas não precisamos e nem devemos aceitá-las, ou continuar usando-as.

No caso do português, o “universal masculino” que designa todas as pessoas advém da presença hegemônica do homem na história e acompanha a maior parte das línguas ocidentais, derivadas do latim, dado o aspecto rigidamente patriarcal da sociedade romana. E isso torna a mulher invisível na história. Frases como “os homens lutaram pela igualdade, liberdade e fraternidade” e “os heróis da revolução” eliminam todo o papel da mulher na luta. Apesar de ser considerado “neutro”, há casos em que precisamos intervir e buscar alternativas.

Gonçalves (2018, p. 108) faz uma reflexão importante acerca dos preconceitos linguísticos existentes no português e aqui destaco dois exemplos. Segundo a análise do autor, os insultos que costumamos utilizar para demonstrar nosso desagrado, seja com homens ou com mulheres, mostram claramente a relação assimétrica de poder. Os insultos, quando dirigidos às mulheres, costumam estar associados ao corpo delas, sua sexualidade e dignidade. Quando dirigidos aos homens, também estão, muitas vezes, relacionados ao sexo feminino, atribuindo-lhes aspectos de feminilidade. Além disso, os homens podem ser insultados através de uma mulher (em xingamentos às esposas ou à mãe) ou por suas ações representarem características que os assemelhem a elas, como se isso fosse sinônimo de covardia, de vergonha ou até de homossexualidade. Assim, a masculinização é vantajosa linguisticamente, enquanto a feminilização seria considerada algo vergonhoso. Um outro exemplo é a expressão “ficar para titia”, que não tem equivalente para o homem.

No caso do Japão, o papel da mulher nos primórdios da vida em sociedade era reconhecido como de vital importância para a sobrevivência do grupo. Em muitos casos, a mulher era considerada igual e, às vezes, até mesmo superior ao homem na gestão da família, da comunidade, da tribo ou da nação. Antes do desenvolvimento dos clãs militares (até o século X), a mulher no Japão tinha um importante papel, inclusive no governo. No entanto, a partir do avanço do militarismo japonês, o papel da mulher foi reduzido e a filosofia dan-son jo-hi (男尊女卑; predomínio dos homens sobre as mulheres) cresceu com o Confucionismo, Xintoísmo e o Budismo, proibindo a presença da mulher em diversos templos e ambientes considerados sagrados, por serem vistas como impuras, além de que pregava os diversos níveis de obediência da mulher para com o pai, o marido e o filho. Ou seja, a própria religião desenvolveu e manteve a divisão de papel baseada no gênero e também na desigualdade de gênero na sociedade japonesa e essa visão se tornou um elemento indispensável de suporte à estrutura hierárquica dessa sociedade patriarcal no período anterior à Segunda Guerra Mundial.

Até a derrota do Japão, a mulher era legalmente submissa ao pai, marido ou chefes. Apesar da liberdade conquistada no papel, as mulheres no Japão não conseguiram se livrar do machismo, arraigado na cultura há tanto tempo como herança de séculos de assimetria. E a língua japonesa, apesar de estar passando por diversas revisões nas últimas décadas, ainda evidencia esse peso herdado das gerações passadas.

Uma pesquisa com 70 mulheres japonesas realizada pela pesquisadora Naoko Takemaru, que organizou os dados no livro Women in Language and Society of Japan: The linguistic Roots of Bias identificou o total de 151 palavras e frases no japonês que, de alguma forma, degradam a mulher, ressaltando a assimetria de gênero e descrição estereotipada da mulher.

Os Kanjis (ideograma japonês), em sua maioria, são constituídos por radicais (hen), usados para categorizar ou classificar o caractere. Além do radical feminino (onna hen・女), há radical de árvore (ki hen・木), radical de água (san zui hen・氵), entre dezenas de outros. No entanto, não existe o radical masculino.

A parcialidade de gênero existente no idioma japonês é expressa na significativa quantidade de kanjis que contém o radical feminino com significado negativo, como inveja(嫉妬), ódio(嫌悪), adultério(姦通), barulhento(姦しい ).

Takemaru (2010) indica vários exemplos em que a assimetria de gênero é encontrada em palavras. Por exemplo, em palavras como gusai (愚妻;minha esposa estúpida ou minha esposa), katazukeru (片付ける;arrumar, resolver ou casar a filha), Akusai wa issho no fusaku (悪妻は一生の不作;uma esposa ruim arruinará a vida inteira do marido), entre outras, não havendo correspondentes para o homem. A desumanização da mulher está em expressões como urenokori (売れ残り;produto não vendido, mulher solteira com mais de 30 anos) ou kanai (家内;dentro de casa, minha esposa). No ambiente de trabalho, quando a mulher ocupa uma posição tradicionalmente dominada por homens, adiciona-se o termo “mulher”, para expressar a posição ocupada. Por exemplo, a presidente de uma empresa vai ser chamada de onna shachoo(女社長), e não apenas de shachoo(社長). E uma deputadaserá chamada de josei giin(女性議員) e não apenas de giin(議員).

A expressão mais citada pelas mulheres como degradante foi onna no kuse ni (女のくせに;apesar de ser mulher, afinal de contas ela é uma mulher), expressão comumente usada para mulheres que obtém resultados ou ocupam posições tradicionalmente masculinas ou para criticar a conduta de uma mulher que desafia o estereótipo de gênero. No sentido de que as mulheres deveriam saber o seu lugar, bem como o comportamento adequado.

Outra expressão bastante citada foi o memeshii(女女しい), escrito com dois ideogramas de mulher, significando um homem com características femininas, sendo utilizado quando o homem tem atitude covarde, ou é indeciso, fraco, sem força de vontade. As participantes da pesquisa indicaram que se sentem extremamente ofendidas pela expressão associar a personalidade feminina com aspectos negativos de caráter. Enquanto isso, a expressão otoko masari (男勝り), que se escreve utilizando o caractere de homem, é utilizada para expressar uma mulher corajosa, valente. Ambas as expressões são usadas ainda hoje. Por fim, das sete expressões de xingamento usadas exclusivamente para mulheres, cinco estão relacionadas com prostituição e promiscuidade.

No entanto, não é pelo fato da língua ser herdada que devemos continuar usando esses termos. No Japão, o processo de mudança se iniciou no dia 21 de outubro de 1970, quando centenas de mulheres do movimento ūman libu (women’s lib/Movimento de Libertação das Mulheres) marcharam pelas ruas de Tóquio, lutando por direitos políticos, econômicos, sociais, culturais e pessoais para as mulheres. Em meado dos anos 1970, iniciou-se o debate no Japão pela reforma do idioma japonês, com intuito de eliminar o machismo enraizado na escolha de palavras. E na década de 1980 e 1990, estudos detalhados dos dicionários e palavras usadas pela mídia, conduzidos por pesquisadoras de diversas Universidades e Associações, tiveram um importante impacto na redução da assimetria de gênero no idioma, com a criação de guias e livros que instruíam os governos locais e também os ministérios a eliminarem o uso de palavras de cunho machista. Na mídia, a mudança chegou em 1997, quando a discriminação de gênero no idioma foi, pela primeira vez, reconhecida. Na década de 1990, os dicionários passaram a ser revisados, com o intuito de eliminar as explicações machistas nos verbetes. Assim, a expressão urenokori, acima citada, passou a ser definida como: Termo discriminatório comumente usado para mulheres solteiras. E a otoko masari: Termo baseado no estereótipo de gênero de que o homem é mais forte que a mulher.

A língua é um instrumento flexível, em evolução. A língua é um organismo vivo. Na nossa diversidade atual, podemos também adaptar e reinventar o nosso idioma, tornando-o cada vez mais inclusivo, empático e adequado à nossa realidade plural, mas que ainda tem muitos desafios para serem enfrentados. Se o passado da humanidade foi machista, desigual e sexista, cabe a nós deixarmos essas palavras caírem em desuso, como já vem acontecendo com essa tomada de consciência inicial. As grandes alterações no papel da mulher são recentes historicamente e ainda geram grandes repercussões, por incrível que isso possa parecer. Ainda carecemos de medidas suficientes para atingirmos uma sociedade mais igualitária, mas a nossa escolha de palavras, apesar de não ser o único elemento relevante para eliminar as desigualdades linguísticas, já iniciou uma pequena revolução.

Para que a mulher seja representada, é imperativo nomeá-la. Precisamos eliminar as palavras que deixam as mulheres invisíveis e também aquelas que as desvalorizam. E nós somos capazes de adaptar. Em vez de falar “bom dia a todos”, podemos usar “bom dia a todos e todas”, ou substituir o “esses são os meus pais” por “esses sãos meu pai e minha mãe”. “O trabalhador brasileiro” pode ser substituído pela “classe trabalhadora brasileira” e “os leitores do jornal participarão do sorteio” pode ser “se vocês leem o jornal, participarão do sorteio”. “Os deputados votaram” fica melhor como “os deputados e deputadas votaram”, caso haja uma mulher no grupo. Além disso, já está mais que na hora de parar de usar xingamentos que difamam a esposa ou a mãe de qualquer pessoa, ou que julgam a vida sexual da mulher. Pois, é claro, ninguém tem nada a ver com isso. E o português está cheio de pérolas para substituir aquelas várias palavras que começam com “V” ou “P”.

De fato, ninguém tem que nada. Mas eu prefiro estar do lado daqueles que vão fazer um esforço e ter cuidado em 2020 para tornar a língua portuguesa mais democrática, igualitária e ainda mais linda.

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Referências Bibliográficas:

Cervera, J. P. e Franco, P. V (2006): Manual para o uso não sexista da linguagem

Gonçalves, D. S. (2018): Por uma língua feminista: uma breve reflexão sobre o sexismo linguístico, Rev. Interd. em Cult. e Soc. (RICS), São Luís, v. 4, n. 1, jan./jun. 2018, p. 99–115

Takemaru, N. (2010): Women in Language and Society of Japan: The linguistic Roots of Bias.

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Anna Ligia Pozzetti
Komorebi.trd

Intérprete e Tradutora de Japonês ❤ E também ecomista e mestre em história econômica!