“É SEMPRE HORA DA POESIA ACONTECER E ELA SEMPRE ACONTECE, ESTÁ SEMPRE ACONTECENDO”

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12 min readAug 14, 2018

Entrevista com Camillo César Alvarenga

camillo césar alvarenga /foto: elaine una

Um dos lançamentos da kza1 em 2018 é Macumbe-se, de Camillo César Alvarenga. Organizado por Vinicius Melo, Macumbe-se traz textos que comovem pelo ritmo veloz de versos que cadenciam-se na fala para alcançar a poesia. O resultado é uma paisagem natural enviesada por estímulos virtuais, em cenas de plasticidade anímica. Os acessos à espiritualidade nos oferecem a percepção de mundos além da era eletrônica a qual supostamente identificamos como contemporânea, revelando uma realidade complexa para diferentes níveis do agora, alterando percepções mais imediatas em relação ao fluxo histórico da diáspora africana, à permanência e à origem da poesia. A seleta que publicamos traz o poema inédito “Macumbe-se” acompanhado de uma curadoria do blog Animítico. Camillo César Alvarenga é poeta, tradutor e crítico, nascido em São Félix, no Recôncavo da Bahia, em 1988. Autor do livro de poemas Scombros (Edufrb, 2012) e organizador da antologia de poetas baianos Canoas do Paraguaçu (Edufrb, 2012), publicou o poemário OFILTRO (Coleção Oju Aiyê, Portuário Atelier Editorial, 2013), e recebeu o Prêmio Maximiano Campos de Literatura (Instituto Maximiano Campos) na categoria Micro-Contos (2013). Traduções suas para alguns poemas de Langston Hughes, acompanhados de um breve ensaio, foram publicadas no blog escamandro, também foram publicados poemas autorais no blog da editora portuguesa Enfermaria6 e no blog da livraria Boto-cor-de-rosa, espaços importantes de veiculação da poesia contemporânea. É colaborador do site Rap Nacional Download. Vive em Olinda, Pernambuco. Camillo respondeu às perguntas por escrito. Ao fim, publicamos o inédito “Na ginga de N’zinga”.

desenho gráfico de macumbe-se (kza1, 2018)

thadeu c santos: César, Macumbe-se é um livro que impressiona pelo modo que apresenta realidades justapostas, um dos aspectos de sua poesia que a organização de Vinicius Melo evidencia na edição que propusemos. Como você percebe o poema como transmissor da cosmovisão? Quando o aparelho da religião é aparelho da poesia?

camillo césar alvarenga: “A poema”, como a querida amiga Nina Rizzi gosta de chamar, eu penso que seja mais que veículo, fusível ou transportador de energia, informação ou pensamento (ideia). Poema, entre outras possíveis, é rastreamento da matéria sensível a olho nu, é download de percepções, é (via)-“tecnologia de acesso” ao que se encerra no silêncio ineludível do instante histórico eterno-(cíclico) e irrepetível, é etapa da mágica química da vida. É continente para a diáspora do estético. A política da arte que dá origem àquilo que venha a ser poema é puro-xamanismo, charme e chamamento, é rezação, prece-canção, antecipação e aniquilamento, é canto de caçador acuando a caça a beira da estrada, é curva de quem desvia nas bordas do barranco, é suor de piloto debaixo da balaclava, é mediação de temporalidades contemporâneas e recíprocas como proto-e-meta-dimensões de realidades aparentes em função das existencialidades imanentes e latentes que reverberam formas cósmicas e ancestrais de ser e poder. “Aparelho”, dispositivo? Ver. oriki — aparato, recurso para o culto/cultivo da vida atual/ancestral. Em Macumbe-se, há a presentificação da religiosidade e não da religião, da espiritualidade, em caso de atualidade, e não do religare como no caso de religação com algo perdido-religioso-(a deidade mito-histórica supra elevada, quase esquecida em sua condição de invenção), por outro lado, o livro busca encontrar a expressão de comunhão e equilíbrio entre as materialidade das experiências históricas do/no corpo-natural(natureza) em relação com a presença e reconhecimento do espírito-ancestral (seu-duplo), o outro de si desconhecido, obumbrado pela vida do “Eu”. O modo de organizar e editar o livro incidiu sobre a comunicação; sobre os vasos comunicantes estabelecidos entre o autor e o editor –crítico, um curador da obra — e o leitor (-presente e futuro-) — que através do processamento editorial responde ao impulso inicial de operar e reconhecer formas de intersecção entre mundos, montagens de perspectivas, colagens de imagens, atravessamentos cósmicos, mesclas de referências, modulações interiores e exteriores de linguagens compartilhadas num comum universo rítmico, mnemônico e imagístico que se interpenetram e dialogam a partir da mediação da palavra e da música sob a forma da poesia.

T: Um dos trechos mais inventivos desse trabalho é “‘selva branca’ psirico & Jay-Z, / Jay-Z + Beyoncé = a crítica da soberba”. De onde exatamente isso surgiu? Por que associar o pagode baiano e o rap nova-iorquino como uma imperiosa imagem da desconstrução da homogeneidade cultural?

C: Como recentemente me disse um mestre pernambucano da arte de construir instrumentos: “tudo é um acontecimento qualquer”. O que dista para nós entre a história e a ficção é uma página, um verso, e isso às vezes faz com que um verso seja tudo para muitas pessoas em muitos momentos. Esse verso é talvez um traço excedente de sentido e significação que transborda do trabalho, que se exala sonoramente das páginas em que foi escrito. Pois que desde a primeira imagem, “selva branca” — que é por sua vez o título de uma canção do Chiclete com Banana — , já nos remete ao espectro musical da Bahia, em sua cena artística midiática e comercial, conhecida como Axé Music. Além, é claro, que desviado desse significado literal e quase anedótico tem-se aí sim um sentido político impregnado de contestação e resistência étnica afro-diaspórica para e no mundo ocidental. O capitalismo é uma “selva branca”. Nesse sentido, a aparição do grupo no poema se deu por ocasião de uma notícia de uma possível parceria ou participação do Márcio Vitor [vocalista da banda Psirico] em algum dos trabalhos de Kanye West, a seu convite. Polêmicas à parte, segundo Emicida, o brasileiro não tinha data para gravação. No entanto, por outro lado político e artístico da história do Hip-Hop e da música negra contemporânea, Jay-Z e Beyoncé representam outra forma de expressão da subjetividade negra que vale a pena ser considerada sob o olhar inclusive poético já que expressa de alguma maneira certa forma de crítica à soberba do sucesso e da própria condição de artistas e seus papéis sociais enquanto homem e mulher na formação de uma família african-american.

T: Boa parte dos textos de Macumbe-se foi curada a partir de seu blog Animítico. Por que você bloga poemas? Como você é como usuário do Animítico?

C: A blogosfera é um desses universos que o livro intersecciona. Recentemente, a escritora baiana Laura Castro também publicou um livro derivado de seu blog, oarmarinho. No nosso caso, a sugestão foi do Vini Melo para realizar uma edição de poemas desse meu último blog, sugestão esta que em algum momento da edição me fez pensar que seria um outro livro. Antes disso, no final de janeiro, eu havia escrito a série da última parte do livro, série que deu título a esse trabalho, e que considerei publicar durante o carnaval numa plaquete logo após a efervescência causada pela publicação do (manifesto?) Nossa arte é postar. Só que aí o projeto ganhou corpo e nos diálogos com os editores a ideia foi sendo expandida e enxertada até a forma dos quatro cadernos. Após visões e revisões, marcas e marcações, entre o consenso dos poemas escolhidos e a sua organização, que incluiu o blog, o origâmico desenhográfico que estampa as capas, o projeto se tornou o que nem mesmo eu tinha almejado, nem ele mesma, acredito, poderia ter se tornado algo sozinho sem a sucessão de conexões, contatos e interinfluências, bem como ruídos, interferências e heterofundações criativas que culminaram com o lançamento em março deste ano, na Desvairada. O blog é lugar de respiro e suspensão diária entre o rascunho do caderno ou do word e a passagem a uma outra vista, é um ensaio real para o poema enquanto pré-texto, é uma publicação, um registro compartilhado, é uma forma de documentar e narrar para um público a passagem do tempo e como isso é vivido pelo autor do blog. De lá pra cá eu ainda postei no blog alguns versos e poemas de outros autores como a Carla Diacov e o Tomaz Amorim, algumas crônicas sobre o Chile e a Serra da Capivara, um algo sobre o Sabotage e o Cântico negro do José Régio; já faz mais de um mês que não posto nada, nem mesmo poemas.

T: O que o resultado dessa experiência encampada pela organização do Vinicius Melo retornou a você sobre a construção desse blog?

C: Que a colheita pode ser e é ainda, novamente, semeadura.

desenho gráfico de macumbe-se (kza1, 2018)

T: Você é colaborador do Rap Nacional Download, um dos principais sites de rap em atividade. Ano passado, foi publicada “Baco e os arcos afro-atlânticos do Rap Nacional: Esú, flecha a flecha”, uma “crítica literária” sua ao álbum-hit Esú, de Baco Exu do Blues, com comentários faixa-a-faixa. Enquanto boa parte da academia beletrista não parece considerar o rap como um potente movimento literário, me parece que não há nada, na música, que associe questões da poesia e da e do poeta de maneira tão vibrante e fundamental. Como você enxerga essas relações?

C: Como relações de poder. A Unicamp acabou de indicar o disco Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC’s, como obra obrigatória a ser estudada para realização do vestibular de 2020; ainda vai levar alguns anos mas a mentalidade sobre a produção de conhecimento a partir de outras visões de mundo está mudando ao passo que tenta ganhar espaço no Brasil a compreensão da necessidade do reconhecimento de diversos pontos de vista, não apenas o hegemônico. Eu pessoalmente acredito que boa parte das letras do Rap nacional do ano passado entre tantos lançamentos e feats, clips e perfis, estão contando a história recente do Brasil melhor que qualquer telejornal ou periódico impresso. Expressando diversidade racial, de classe, de gênero. Há três décadas os Racionais vêm narrando nossa realidade e realizando crônicas do dia-a-dia da periferia, só para quem não quer entender, esse trabalho, além de um artefato estético, é um documento histórico e crítico do agora. O presente está condensado em microfilmes, lentes, telas, em pixels, leds, views e a rua é onde essa luz lancinante (que por vezes cega) é revelada e apresenta sua versão mais crua e sincera : é no grafite, no pixo, no jeans, no moleton e na “bombeta branca e vinho” que a vida afetiva e a subjetividade do jovem negro encontram vazão e expressão através da dança e rima no rap, no funk ou no samba, e principalmente, através do canto e voz de rappers e das batidas de djs como KL Jay e cia. O Hip-Hop diverte e ainda salva vidas em ritmo e poesia.

T: Os livros da Organismo, do editor Jorge Augusto, e da Paralelo13S, da editora Sarah Rebecca Kersley (selo da livraria Boto-cor-de-rosa), jogam luz e apontam para uma sacação sobre o que está acontecendo na poesia baiana de agora. Como você vê a edição de livros de poetas da Bahia? Se estivéssemos num concurso público e na seção Atualidades viesse esse tópico, o que você diria sobre?

C: Eu começaria falando da atualidade da ancestralidade. A matriarca do samba de roda, cantora, compositora e doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, D. Dalva Damiana de Freitas pode ser considerada nossa maior poeta em atividade. Seguindo o legado da nossa oralidade, a ela, junta-se o Mestre Mateus Aleluia, que com seu disco Fogueira Doce, nos deu mais uma grande mostra da experiência anímica da diáspora afro-atlântica na América indígena. As potentes poéticas de Baco Exu do Blues, Larissa Luz e Giovani Cidreira realizam uma transição litero-musical para nomes e trabalhos de gentes como James Martins, Lívia Natália, Daniela Galdino ou Orlando Pinho. Há alguns anos também um grupo chamado Poetas de Aço também apresentou um trabalho interessantíssimo ligando música eletrônica e audiovisual numa estética antropofágica. No campo editorial destacaria a Editora Ogum’s sob a coordenação do poeta Marcus Guellwaar Adún Gonçalves, em Salvador, e também o projeto latino-americano Portuário Ateliê Editorial conectando Colômbia, Argentina e Brasil, além da Coleção Oju Ayê, ambos projetos sob a coordenação do poeta João de Morais Filho e sediados no Recôncavo baiano, na cidade de Cachoeira, que recebe mais uma vez este ano a FLICA — Festa Literária Internacional de Cachoeira. Um novo e mais recente movimento gira em torno da poeta Barbara Uila e suas parceiras recentemente envolvidas na criação da editora Cartoneira das Iaiás que nasce em função de desdobramentos do belo projeto Irmandade da Palavra que tem levado a poesia e o fazer poético a vários espaços e territórios em especial no interior do estado, com vistas a subjetividade da mulher negra. Em Feira de Santana, destaco as Edições MAC, sob a direção de Edson Machado, a Diabo A4 Editora, formada por um grupo de jovens entre eles Will Fialho, Henrique Sampaio e Larissa Rodrigues. Além, chamo atenção para publicações de Editoras Universitárias como a Edufrb e a Via Litterarum. Ainda em Salvador, no bairro do St. Antônio Além do Carmo, a Sociedade da Prensa, com o selo Editóra, que editou e publicou, além do oarmarinho [fiquesão], da Laura Castro, fez também vir à luz o Lucas, do Márcio Junqueira, é outro exemplo de editoras e projetos editoriais interessantes em atuação. Antes de concluir é imprescindível falar de poéticas urgentes como as encontradas em trabalhos de performers, artistas visuais, cineastas e artistas plásticos como Alex Simões, Deisiane Barbosa, Caio Araújo e Ayrson Heráclito. Agora, por fim e, de fato, algo que é para mim desconcertante da e na nossa poesia é o que posso chamar de diáspora baiana. Se por um lado o que acontece na Bahia é de encher os olhos, a poesia baiana fora da terrinha também caminha a passos largos, ou melhor, “AVOA” em os trabalhos de nomes como Rodrigo Lobo Damasceno, vivendo em São Paulo, a frente do selo treme~terra, e Ederval Fernandes, radicado em Lisboa, Portugal, com seu novas ofertas de emprego para ederval fernandes, publicado pela Paralelo13s. Toda essa turma e muito mais gente ainda anda valendo a leitura, a escuta e a visita!

T: E se você pudesse indicar um livro para referenciar essa produção, qual seria?

C: Tatuagens complicadas no meu peito, do Rodrigo Lobo. Ainda inédito.

desenho gráfico de macumbe-se (kza1, 2018)

T: Lançamos Macumbe-se durante a Desvairada 2018, em São Paulo. Lá você me mostrou um poema feito no metrô enquanto você se deslocava em direção à feira. O vagão estava recortado por intensas camadas de realidade, segundo suas previsões e manejos do agora. Vamos publicar esse poema ao fim da entrevista apenas para saber de você: quando é hora de fazer poesia? E o que importa?

C: É sempre hora da poesia acontecer e ela sempre acontece, está sempre acontecendo, até mesmo, e principalmente, agora, nesse momento histórico e político tenebroso do país e do mundo, com a escalada ofensiva da ordem dos conservadorismos contra todas alternativas e formas de viver possíveis. É preciso que nos lembremos e que nos deixemos à poesia para lembrar: há vida ainda fora do capitalismo e ela é orgânica, natural, indígena, aborígene, ameríndia, africana, ancestral. E a poesia se conecta com formas comuns e primordiais da vida do ser. A poesia se faz quando se está em busca do “bem viver”, quando se quer chamar os ancestrais para perto ou afastar vibrações negativas, quando se quer protestar ou imaginar, a poesia vive no instante imediato em que se faz presente o toque, a troca, o contato, o encontro do ser com o elã vital do qual este faz parte, quando há uma escuta por parte da escrita ou do corpo para o fluido fluxo cósmico que se estabelece em deslocamentos espaciais e temporais nos universos. Simplesmente, o que importa é NÃO MORRER!

*

P.S.: MARIELE FRANCO, PRESENTE!

Os tambores de N’zinga saúdam o seu retorno à Massa original!!!

*

POEMA INÉDITO DE CAMILLO CÉSAR ALVARENGA

NA GINGA DE N’ZINGA

Se você não entendeu
o que sempre me doeu
então você não leu, não viu, não ouviu
o recado de deus! o silêncio de deus —
esse ar quente que pesa.

O pombo o trouxe até mim
parte de meu Orí, Alàáfim.

Palmas para palavras
dançam sobre a pele das mãos
até o torpor, até o estopim.

(pelo metrô —
chego até Paraíso
entre a linha amarela
e a verde, cruzam-se
Oxum e Oxóssi, nasce
Logum Edé, filho de

Ibualama, Orixá Igbo.

pelo metrô –
chego até Sumaré
vou à puc? à usp?
passo direto até a saída
pulo catraca à esquerda
visto um capote valente
e na próxima à direita
adentro o pórtico 1417).

E meu coração escuta
malungos da África Central
agudás da África Ocidental
em fúria…

Estamos em guerra ! ! !

No caminho, sou testemunha
(cúmplice?) do fim de mais uma
remoção sob o viaduto Jabaquara
onde barracas de sacos plástico
são casas e, do outro lado, a copa
cobre a Av. dos Bandeirantes.

Antes, na estação São Judas
um movimento a mais e

a traição passa ao largo
: o metrô via do “progresso”
e do protesto.

No metro metaquântico do verso
a palavra arremesso
e a gente aprende a ficar de pé
enquanto o trem arranca e pára
pára e arranca.

Mar. 2018

SP, sp.

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