“EU FAÇO TEORIA NA MINHA POESIA E ENXERGO OUTRAS PRODUÇÕES POÉTICAS NEGRAS LGBT COMO EPISTEME”

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6 min readAug 15, 2018

Entrevista com tatiana nascimento

tatiana nascimento /foto: daisy serena

Em meados de junho, tatiana nascimento veio ao Rio de Janeiro para se apresentar na Subcena, na Audio Rebel, ao lado de Cibele Minder e com abertura de Wellington Ominodé. No show, tatiana mostrou composições que revelaram dois campos moventes de seu trabalho criativo: a canção e o poema. Num jogo virtuoso de palavra e ritmo, a apresentação expôs um labirinto sem fim na estética e na política, em movimentos que convidavam a todos a percorrer por sua inventividade. Ela conversou com a Maria Bogado depois do show, mesmo que brevemente, expôs suas impressões sobre escrita, fala e poesia na entrevista que publicamos agora. Vale muito a leitura. E para quem se sentir instigado a novos mergulhos, aqui vai linkado o artigo “da palavra queerlombo ao cuíerlombo da palavra”, que está no blog dessa poeta querida e muitíssimo talentosa.

tatiana nascimento, brasiliense, palavreira: cantora, compositora, poeta, educadora, slammer, tradutora,t zineira, produtora cultural, realizadora audiovisual experimental, editora: publica autoras negras, lésbicas, transexuais, travestis em livros artesanais pela padê editorial, editora brasiliense que fundou em 2015 com a poeta paulistana bárbara esmenia. é licenciada em letras-português pela universidade de brasília (onde dá aula de feminismos e teoria queer), e doutora em estudos da tradução pela universidade federal de santa catarina. realiza formações livres em escrita criativa, ficção feminista, cartas de autoamor pra corpos subalternizados (negrxs, gordxs, lgbtqi), poesia negra lgbtqi. escreve muito sobre a distância entre o cerrado y o mar, a diáspora sexual-dissidente y suas tecnologias, os sonhos ou a vida no asfalto, exercitando traduzir as arestas y os macios entre silêncio & palavra numa poesia geometrizada espacialmente. publicou os livros de poemas “lundu” (2016) e “mil994” (2018).

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MARIA BOGADO ENTREVISTA TATIANA NASCIMENTO

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maria bogado: Como o trabalho de recitar e cantar afeta sua escrita?

tatiana nascimento: Minha escrita mudou muito quando comecei a fazer sarau. Quando comecei a ter coragem de fazer palavra falada. Porque tem coisas que não cabem na palavra falada, fica feio, fica desconjuntado. Acho que mudei muito meu jeito de escrever para parecer mais com o que eu falo. Minha linguagem poética está mais rítmica, melódica e simples.

Sou de uma família bem musical, lá em casa todo mundo canta. Mas demorou um pouco pra eu me autorizar a ser cantora, apresentar minhas composições. Acho que tem a ver com o processo de retomada da minha palavra. Encerrar o retorno de saturno e sair dos armários dos silenciamentos programados pelo racismo, pela lesbofobia, pela cisnormatividade. Realmente componho muito faz tempo. Mas só comecei a ter coragem de expor em 2016, quando conheci uma instrumentista, a Dani Vieira, que me convidou para fazermos música juntas. A transição da palavra falada para a palavra cantada tem a ver com essa sapatona ter me chamado.

tatiana nascimento e cibele minder

M: Você vê um gesto político nessa nova ênfase da oralidade no seu trabalho? Pode parecer ingênuo ou muito geral, mas seria possível pensar o caminho da oralidade como uma alternativa crítica a um modelo de leitura moderno ocidental, calcado na individualidade e interioridade do sujeito?

T: Sabe que eu não acho que a cultura escrita está necessariamente muito ligada ao ocidente? Tem essa ocorrência no pensamento crítico contra os letramentos hegemônicos. Um pessoal que gosta muito de lembrar que o continente africano é muito oral. É bom também lembrar que o continente africano tem o Egito, que tem um dos primeiros códigos linguísticos escritos do mundo. Tem os adincras que são os sistemas letrados.

Os povos árabes — muitos são negros — e têm relação forte com a escrita. A revolta dos malês chega ao Brasil como uma revolta letrada. A palavra escrita também é lugar de exercício da negritude ancestralmente.

Escrevo mais do que falo, na real. Escrevo todo dia um poema novo e tem uns que não são para serem falados, tem uns que são pra mim, pra eu ler mesmo. Eu gosto de livro, de ter a coisa ali.

tatiana nascimento e cibele minder

M: Como sua trajetória de pesquisadora e tradutora afeta sua produção poética?

T: Traduzi a Audre Lorde, a Cheryl Clark, a Pat Parker e também a Dionne Brand, que adoro. A Cheryl Clark diz uma coisa muito linda, que é: “A poesia sempre foi a professora da autoestima para as pessoas negras e para os povos do terceiro mundo.” Ela é uma sapatona preta falando. Isso combina muito com a Audre Lorde. Audre Lorde fala sobre a poesia como o sistema de expressão por excelência da classe trabalhadora, das pessoas negras e dos povos subalternos, das mulheres, das mulheres negras — porque a poesia é aquilo que elas têm tempo de fazer entre um trabalho e outro, entre deixar a criança na creche e voltar pra temperar o feijão. No vagão lotado depois dum dia de trabalho. E aí o lance é que a gente entende a epistemologia como prosa acadêmica, né? Mas, para mim, a teoria está num modo de viver e olhar as coisas reflexivamente. Eu faço teoria na minha poesia e enxergo outras produções poéticas negras LGBT como episteme, como espaço de construção teórica.

tatiana nascimento e cibele minder

M: E no Brasil, quem você tem lido?

T: Estou estudando a Kika Sena, que é uma mulher trans, travesti, preta, arteducadora de Alagoas que mora no DF. Ela tem duas obras, Marítima, uma autopublicação, e Periférica, que eu publiquei pela Padê Editorial. Sua poesia é um ensinamento sobre a diáspora sexual dissidente;

Vitória Sales, de São Paulo, poeta de escritos lindos, que refaz itãs e orikis sob uma perspectiva lésbica preta, (re)conta histórias de romance entre orixás gays, sapatonas, trans (especialmente sapatonas);

Mariana de Matos, Maré de Matos, de Minas, mora em Pernambuco. Uma sapatão preta que tem uma pira com metalinguagem muito interessante, brinca com a poesia da poesia, a poesia do pixo, a poesia que não taria no muro da galeria antes dela ter levado;

Nanda Fer Pimenta, que tem um trabalho com poesia vocal e performada dum jeito muito único pra mim, também mora no DF, tem uma pira com repetições de fonemas como lugar estético de crítica/escape às repetições do racismo;

Daisy Serena, uma amiga amada, artista visual, contista e poeta de São Paulo. Seus textos são também sobre diásporas, mar, raízes, sensibilidade e tudo muito fora dos estereótipos que a gente espera da poesia negra LGBT. Ela não é uma pessoa que fica falando “o racismo está comendo minhas vísceras”;

Kika Sena fala que não se pode mexer com os filhos do mar, a história da gente não foi largada no mar. É muito outro jeito de pensar as coisas, outro jeito de pensar a resistência;

Esteban Rodrigues, que é um poeta trans preto de Salvador que eu li pela primeira vez e fiquei chorando, chorando e chorando;

Jade Bitencourt, uma sapatona branca de Salvador também. Falar que parece Manoel de Barros é injusto, porque não parece, mas é nesse nível de simplicidade refinada do cotidiano e das coisas materiais, da folha, da planta, da pedra, da água de chuva, do amor;

Kati Souto, demais amada, que tem um rolé de poesia oral urbana, e a poesia dela tem um trânsito bem específico entre funk/hip-hop e poesia clássica/tradicional/canônica, rima, métrica, soneto, essas coisas, ela faz um jogo muito interessante aí pra construir uma erótica-meio-pornô bem debochada, bem sapatão, bem sexual. Ela é do DF também;

Nina Ferreira, uma amiga amada, de Brasília também, sapatão também, preta também, e agora está morando em São Paulo. Tem um poema dela que diz “é de axé que eu seja feliz, e Luana também, aqui ou no Orun, em qualquer lugar.” Ela fez um poema sobre o assassinato de Luana Barbosa que termina com esses versos e que me pega aqui [aperta a mão contra o coração]. Escreve a diáspora também na lindeza do pequeno, do sorriso, da árvore sagrada — que isso também é resistência né? A gente ser feliz aqui, no Orun, onde quer que seja.

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