Autonomia crítica do artista

por Ulises Carrión

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3 min readAug 17, 2017

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Ulises Carrión, autorretrato, 1979

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Toda obra de arte repousa sobre supostos críticos ainda que isso não esteja explícito em todos os casos. Algumas vezes isso acontece porque os artistas não têm talento para as palavras e algumas vezes porque não querem expressar em palavras seus pontos de vista críticos. Em ambos os casos, os artistas esperam que um observador treinado traduza suas próprias palavras, sua compreensão sobre o significado da obra. Essas duas atitudes podem nos tornar intoleráveis, mas no passado foram aceitas sem dificuldade, principalmente devido a uma razão: supunha-se que os críticos de arte deviam cumprir com o trabalho de iluminar a transcendência de uma experiência visual. Os críticos de arte não necessariamente eram considerados mais inteligentes ou sensíveis do que os artistas. Pelo contrário, os artistas frequentemente declaravam que os críticos eram absurdos e depreciáveis. Os artistas deixavam o crítico falar em seu nome só porque os críticos sabiam manejar as palavras, sabiam como escrever. Aos críticos de arte era confiada a tarefa de traduzir a linguagem visual em linguagem verbal, geralmente mais compreensível. E os próprios críticos aceitavam esse papel secundário, não por modéstia, mas sim conscientes do poder que seu juízo teria para iluminar o público geral sobre o significado de um dado artista.

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Três movimentos neste século (Dadá, Fluxus e a arte conceitual) conseguem incorporar a linguagem das palavras na corrente principal da prática moderna da arte, criando para os artistas, portanto, a possibilidade de expressar explicitamente seus pontos de vista críticos sobre sua própria obra e a de seus contemporâneos. Atualmente, esse direito foi convertido em um dever. Creio firmemente que toda a crítica de arte feita pelos críticos profissionais de arte é acadêmica, do mesmo modo que toda arte não crítica é acadêmica. Porém, a incorporação da crítica como um elemento constituinte formal da obra de arte também adquiriu formas negativas. Alguns artistas ignoram mais de dois mil anos de história literária, utilizam uma retórica da moda passada para representar suas análises e teorias. As revistas de arte começaram a parecer e a funcionar como as piores revistas literárias. Consequentemente, as obras de arte foram reduzidas, em alguns casos, a uma série de frases mais ou menos poéticas.

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Tenho a convicção de que a arte não pode alcançar uma categoria crítica simplesmente adotando a linguagem da crítica tradicional: sua gramática, seu vocabulário, sua retórica. A crítica de arte tradicional só pode ser transcendida quando inserida no marco de uma práxis artística plural que, por sua vez, é a única possibilidade que a arte tem de ser contemporânea. Isso é mais do que bons desejos: já se converteu em realidade. A arte se apropriou de diversas atividades que se supunham estranhas ou escravas à arte. Os artistas começaram a publicar a distribuir livros e revistas, administrar galerias e outros centros de arte, organizar eventos culturais que involucram várias mídias e profissionais especializados. Em outras palavras, abandonaram o reino sagrado da arte e entraram no campo da cultura, de maior amplitude e contornos difusos. Já que a arte pela arte não tem sentido, a única via válida é a arte como elemento de uma estratégia cultural. Essa estratégia necessariamente repousará sobre princípios críticos.

/“Autonomia crítica do artista” foi a contribuição de Carrión à Primeira Conferência Internacional de Artistas (Arte Fiera, Bolonha, 1979). Em: Ulises Carrión. El nuevo arte de hacer libros. Organização de Heriberto Yépez e Juan J. Agius, Cidade do México: Tumbona, 2016. Também foi incluído na edição bilíngue Quant aux livres / On Books (1997 e 2008).

/tradução de thadeu c santxs

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