Escrita, identidade e direito autoral na era das redes

por Kathy Acker

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10 min readAug 17, 2017

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Kathy Acker por Rick McGinnis (Toronto, outubro de 1988)

Quando me pego confusa, olho para escritos antigos, faço isso com certo costume quando me sinto confusa com alguma coisa. Olho para procurar vestígios da minha própria escrita.

Infelizmente, os sistemas escolares neste país estão tendo cada vez menos recursos governamentais. Ficarei sentida se a cultura de nossa sociedade, através da perda da educação, perder o senso da história. Me sentirei incomodada se aqueles que estão envolvidos na cultura não pensarem mais historicamente, se eles não apontarem para si mesmos, para nosso modelos históricos, para exemplos.

Olhando, voltei aos escritos de Hannah Arendt, uma filósofa para quem pensar significa submergir profundamente no histórico. “Mesmo aqueles entre nós”, Arendt diz, “que se aventuraram, pela palavra escrita ou falada, na vida pública, não o fizeram por nenhum prazer original pela cena pública, e dificilmente esperaram ou aspiraram a receber o selo da aprovação pública.” Ela continua, e agora ela começa de verdade a me ajudar: “Mesmo em público, eles [entre nós] tendiam a se dirigir apenas a seus amigos ou a falar àqueles leitores e ouvintes dispersos e desconhecidos a quem todos os que falam e escrevem não podem absolutamente deixar de se sentir unidos por uma certa fraternidade um tanto obscura”. Conforme eu continuo a leitura, as palavras dela clarificam mais e mais o que eu, e talvez muitos de vocês, estão sentindo neste exato minuto. E, talvez, seja assim que a literatura funcione: “Temo que, em seu empenho, sentissem pouquíssima responsabilidade com o mundo; esse empenho era antes guiado pela sua esperança de preservar o mínimo de humanidade em um mundo que se tornara inumano, resistindo ao máximo possível, simultaneamente, à estranha irrealidade dessa ausência de mundanidade — cada um à sua maneira, e uns poucos, dentro da sua capacidade, tentando entender até mesmo a inumanidade e as monstruosidades intelectuais e políticas de uma época desarticulada.”

A TAREFA DE UMA ESCRITORA

É sobre isso que quero falar: uma época desarticulada. O nome da coleção de ensaios que peguei emprestado, que usei, esses trechos da escrita de Arendt são do livro Homens em tempos sombrios.

Para muitos de nós, estes são tempos sombrios. São mais difíceis ou mais fáceis que o tempo que Hannah Arendt escreveu? Boa questão.

Com certeza estes tempos são difíceis, se não para nós, para nossos amigos. Se não são para nossos amigos, então, olhe as ruas, os sem-teto, os guetos, doenças incuráveis, a persistente e crescente presença do racismo, homofobia, de preconceito sobre preconceito, ódio contra ódio, pior, medo sobre medo. Somos conscientes que conhecemos os dois, e, talvez, somos vítimas e vitimizadores. Pois, historicamente, temos participado e ainda participamos de muitas das propriedades deste mundo.

Podemos descartar a história, nossa história, como parecemos estar tentando descartar a educação para todos, exceto os ricos. Mas se fizermos isso, e descartarmos nossa história, se não aceitarmos o pensamento histórico, que tipo de civilização estamos negociando? Que tipo de cultura? Se descartamos a história, estamos nos privando das potencialidades, potencialidades para ações. Modelos e paradigmas para ações. Potencialidade é da mesma família, e estou falando politicamente, da mesma família da imaginação.

Se não descartamos a história, se pensamos historicamente, qual postura temos diante das dificuldades, do sofrimento que ambos experimentamos e causamos? Hannah Arendt sugere que o significado de um “ato executado”, expressão dela, que é revelado apenas quando a ação em si chegou ao fim e tornou uma história suscetível de ser narrada. Isto é: “Tanto quanto seja possível algum domínio do passado”, assim, na medida em que qualquer domínio do sofrimento seja possível, “isso consiste em relatar o que aconteceu.”

Quando Arendt fala sobre história, sobre narração e narrativa, ela não está falando sobre uma narrativa mestra. Está falando sobre a linguagem enquanto se move de um ponto para o outro. Ela está falando sobre o significado como é revelado e, portanto, como coequivalente à linguagem.

Arendt acredita que a escrita, a narração não acabam com o sofrimento: a escrita não faz nada. A narração, a escrita fazem outra coisa. Restauram o significado para um mundo em que a dificuldade e o sofrimento foram revelados de maneira caótica e sem sentido.

A narração, a escrita, então, permitem a nós sermos humanos: as histórias deste mundo, os mitos que chamamos de histórias, nos faz humano. Isso é o que nós escritores fazemos.

TEMPOS SOMBRIOS

Mas e aí se os tempos são mesmo difíceis? Tão difíceis que a própria existência da escrita, que confere humanidade, está em perigo? A perda, não da arte, mas da comunidade, a perda da história e da escrita como base da história — essa perda que é neste mundo um tipo de morte.

Se olharmos para a indústria literária hoje, a escrita está passando por maus bocados. Pouquíssimos escritores que passam a maior parte do tempo escrevendo e aqueles que querem passar a maior parte do tempo escrevendo podem ganhar a vida fazendo o que fazem na maior parte do tempo, além disso, eles amam essa oportunidade. Aqueles que podem e se mantém escrevendo, em geral, se valem de algo chamado copyright, direito autoral. A existência do direito autoral, acredito, baseia-se nas seguintes premissas ou frases: Um autor é a única pessoa que escreveu seu próprio trabalho; um autor é dono de seu próprio trabalho.

Agora, na primeira frase — um autor é a única pessoa que escreveu seu próprio trabalho — a definição que se assume sobre identidade é questionável. Por exemplo, não escrevo do nada, nem para o nada, pois devo escrever com a ajuda de outros textos, sejam textos escritos, orais, de memória, de sonho etc. Na segunda frase, um autor é dono de seu próprio trabalho, a expressão dono deve ser questionada.

Em outras palavras, como escritores, dependemos economicamente do direito autoral, da sua existência, porque estamos vivendo e trabalhando, queiramos ou não, numa sociedade burguesa e industrial, uma sociedade capitalista, uma sociedade baseada na propriedade. É preciso ser dono para sobreviver, na verdade, é preciso ser dono para ser.

Nossa sociedade, no entanto, está no processo de se transformar, ou já se transformou, numa economia selvagem pós-industrial e ex-nacionalista. Espero que eu esteja usando os termos corretos. À medida que as bases econômicas mudam, também mudam todas as outras. Tanto na linguagem quanto na comunicação e o lugar da linguagem e da comunicação, na nossa sociedade, estão mudando rapidamente.

Por exemplo: dou cursos de escrita no San Franisco Art Institute. Todos os anos, cada vez menos alunos leem livros. Não quero dizer que eles não leem. Leem, embora não admitam. Leem revistas, zines, comparecem a performances, eventos de poesia falada; participam com alegria de tais eventos; compram cds com poetas e estrelas do rock. Mais e mais alunos, e posso acrescentar, meus amigos e eu mesma estamos usando a internet como um lugar onde podemos expor nosso trabalho. Até o momento, a rede é uma zona livre… para aqueles que podem pagar ou acessar o equipamento requerido. Se permanecerá livre ou se nosso governo será capaz de implementar controles rigorosos, ou se várias corporações multinacionais poderão transformar a rede em uma cruz entre o terreno da televisão e do shopping center, uma versão gigante da America Online, ninguém sabe ao certo. Com certeza, há aqueles que pensam que a rede não pode ser controlada. Agora, não tenho ideia se será ou não será, isso é, se pode ou não vir a ser. Mas, de qualquer maneira, há uma coisa que eu suspeite. Suspeito que o direito autoral assim como está definido se tornará coisa do passado.

Tomei uma rota longa para apresentar um ponto simples. Algo que me faz pensar que muitos escritores já sabem: se este é um momento histórico difícil para um escritor viver através da dependência do direito autoral, no futuro isso pode se mostrar impossível para todos, exceto para muito, muito poucos.

O cerne da questão não é se a internet está fornecendo um método alternativo de publicação e distribuição de livros. Não no memento, enquanto a tecnologia está aí. Ninguém vai fazer o download de um livro inteiro, pois é muito mais fácil ir até a livraria mais próxima. A existência da rede está ameaçando a indústria literária de outra forma: meus alunos, pessoas que trabalham, o que provavelmente significa que eles trabalham mais de oito horas por dia e têm pouco tempo para ler, assim como muitas, muitas pessoas na nossa sociedade, estão preferindo sem envolver na escrita e em atividades literárias fora do domínio dos livros. E, portanto, estão, em grande medida, fora do domínio do direito autoral, tal o direito autoral agora se manifesta. Estes são realmente tempos difíceis.

SEM DIREITO AUTORAL

E para nos livrarmos do direito autoral, como agora existe, devemos descartar a escrita?

Para responder à pergunta, acho que é preciso tentar ver claramente, ver a sociedade em que estamos vivendo. Eu deveria dizer sociedades, pois, às vezes, as únicas entidades que unem nossas sociedades são os hambúrgueres do McDonald’s e a Madonna. Precisamos ver como nós, como escritores, nos encaixamos em nossas sociedades, quanto essas sociedades estão mudando. Como Hannah Arendt diz, mesmo em mundos que aparentam ser inumanos, como permanecemos numa relação de obrigação com esses mundos? Obrigação, justamente pelo fato de sermos escritores, nosso trabalho é ouvir e encadear narrações e, assim, dar sentido mesmo ao que parece ou é inumano.

Como posso, como escritora, ser útil para e nas minhas sociedades? Essa é a questão que está subjacente à do direito autoral.

Acho que é difícil entender o que é escrever na nossa sociedade porque a escrita se tornou muito emaranhada com a indústria literária. Emaranhada ao ponto de que já não parece mais haver nenhuma diferença entre as duas coisas. Por exemplo, se um escritor não representa um big business, um grande negócio, ela ou ele não representa um bem, é, enfim, um escritor não publicável.

Permitam-me que parafraseie e repita a pergunta de Hannah Arendt: Até que ponto permanecemos obrigados a um mundo mesmo quando a nossa presença já não é desejada nesse mundo? Estamos nós, escritores, obrigados em relação à indústria literária e à sociedade por trás dessa indústria? Eis aqui a resposta de Arendt: “A fuga do mundo em tempos sombrios de impotência pode sempre ser justificada, na medida em que não se ignore a realidade.” A fuga não significa abandono.

Como agora se manifesta, a indústria literária depende do direito autoral. Mas a literatura, não. Eurípedes, por exemplo, escreveu sua versão de Electra enquanto o “direito autoral” de Sófocles ainda estava em vigor. Para não mencionar a maneira com a qual Shakespeare, Marlowe e Ford usavam textos uns dos outros. Minhas preocupações dizem respeito à crescente marginalização de escritores e de seus escritos nesta sociedade. Sempre que os escritos são considerados marginais em uma sociedade, algo está muito errado, errado com a sociedade e errado com as relações entre a escrita e a sociedade. Escrever deveria ser escrever um mundo e, simultaneamente, se envolver com o mundo. Porém, a indústria literária, como agora está, parece estar atrapalhando as relações entre os escritores desta sociedade e a sociedade.

Mais uma vez precisamos ver o que é escrever. Precisamos nos afastar de todos os negócios. Precisamos avançar para o individual. Isso que entendo como fuga. Os negócios se tornaram muito pesados, muito dominantes. Precisamos lembrar os amigos que escrevemos dentro da amizade, que escrevemos para os amigos. Precisamos recuperar uma parte da energia, como escritores e como leitores, que as pessoas emanam na internet quando, pela primeira vez, enviam um e-mail, quando descobrem que podem escrever sobre qualquer coisa, mesma para um estranho, mesmo sendo o que importa no nível mais pessoal. Quando se descobre que estranhos podem se comunicar entre si.

A cessão de significado e, portanto, a feitura do mundo, a palavra como mundo: é sobre isso que se trata a escrita.

AMIZADE

Na nossa sociedade, a excitação, a energia e o poder não estão mais localizados na escrita, isto é, no mundo da escrita. A excitação é encontrada no cinema, como em Pulp Fiction, ou na TV de David Lynch. Talvez devamos questionar porque a indústria da escrita, em termos de cultura geral, é emasculada. (Devo dizer, e-fe-mi-na-da.)

De volta às palavras de Hannah Arendt. Como você vê, minha mente preguiçosa nunca vai a lugar algum: só retorna. Escrita, como definida pela indústria literária, é toda sobre individualidades. Eu possuo minha escrita; isso é direito autoral. “O poder surge”, Arendt escreve, “apenas onde as pessoas agem em conjunto, mas não onde as pessoas se fortalecem como indivíduos.”

Escrever é fazer outra coisa além de anunciar a si mesmo comum indivíduo fechado. Mesmo o mais narcisista dos textos, como aponta Lolita de Nabokov, alcança, no caso Lolita agarra, seu leitor. Escrever é escrever para alguém. Não sobre alguém, como se alguém fosse capaz de tirar a alteridade do outro, mas para o outro. Escrever, como Gertrude Stein e Maurice Blanchot um dia disseram, é escrever para um estranho, para um amigo. Enquanto avançamos, digamos, nas redes, talvez estejamos também andando para trás, e eu não boto muita fé nos modelos de tempos lineares, nos tempos em que literatura e economia se encontraram na zona da amizade. “Os antigos”, comenta Arendt, “consideravam que os amigos eram indispensáveis para a vida humana e que, inclusive, uma vida sem amigos não era realmente digna de ser vivida.”

A amizade é sempre um ato político, pois une os cidadãos em uma polis, uma comunidade (política). E é essa amizade que a existência do direito autoral (como está hoje definida) ofuscou.

A perda da amizade, a concessão da amizade aos negócios com base no individualismo, causou a perde da energia no mundo literário. Pense, por breve momento, quanta energia é despendida para fazer algo para alguém que se ama ou para um amigo próximo em relação a uma ação que ver apenas a interesses próprios. Num artigo memorável sobre a escrita de seu amigo Georges Bataille, Maurice Blanchot opõe dois tipos de relacionamentos, aquele que diz respeito à amizade e aquele que diz respeito ao totalitarismo. Ambos Blanchot e Bataille viveram sob o nazismo e o stalinismo. Um relacionamento totalitário, Blanchot diz, é aquele no qual o sujeito nega a alteridade, portanto, a própria existência de outra pessoa, a que ele ou ela está falando. Assim, o relacionamento totalitário é construído em cima do individualismo como encerramento. Individualismo como encerramento da energia, do significado. Considerando que, quando falo com uma amiga minha, quando escrevo pra ela, escrevo para alguém cuja alteridade eu aceito. É a diferença entre eu e minha amiga que permite o significado. O significado começa nesta diferença. E isso significa, a significância do mundo, isto é, a consciência. Como você vê, finalmente, estou falando sobre escrever.

KATHY ACKER escreveu este ensaio para apresentação no Author’s Guild, em Palo Alto, Califórnia, nos Estados Unidos, em março de 1995. O original pode ser acessado aqui.

/tradução de thadeu c santxs

/trechos de Homens em tempos sombrios, de Hannah Arendt, tem tradução de Denise Bottmann (SP:Companhia de Bolso, 2008)

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