Poéticas livres e forçadas

por Édouard Glissant

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19 min readAug 17, 2017

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Edouard Glissant em Paris, 1982 (AFP)

Este artigo trata do conto popular do crioulo da Martinica, não de toda a bacia caribenha. A Martinica, uma das ilhas das Antilhas, pertence à França desde 1635. Até recentemente, seus principais produtos eram cana de açúcar, suplementado por banana e abacaxi. O comércio desses produtos está agora definhando. A escravidão foi o sistema vigente até 1848. A população, por volta de 400 mil, tem duas línguas: o idioma mãe, crioulo, e a língua oficial, o francês, que tende a se tornar a língua natural. Outros territórios na região com o mesmo status de Departamentos Franceses são Guadalupe e Guiana. O crioulo também é falado no Haiti (4 milhões de habitantes), em Guadalupe (350 mil), Guiana (100 mil), República Dominicana (100 mil) e Santa Lúcia (150 mil), sendo que a última se tornou autônoma da Commonwealth britânica. Porém, Martinica e Guadalupe, bem como a Guiana, apresentam um problema de status político, deveras lamentável, acerca da autonomia e da independência. As mesmas condições prevalecem nas ilhas da Reunião (500 mil) e nas Ilhas Mauricius (300 mil). Além disso, o crioulo francês é falado por 6 ou 7 milhões de pessoas no mundo, incluindo algumas línguas minoritárias que não mencionei. É um idioma baseado num vocabulário derivado do francês e possui uma sintaxe original que mistura estruturas africanas, oriundas dos sudaneses, com hábitos da fala dos marinheiros noruegueses do século 16 e 17.

INTRODUÇÃO

Tem-se dito que o crioulo foi criado pelo senhor em conversas com escravos, no mundo das plantations. Hoje, nós dizemos que o crioulo foi uma criação original do africano desarraigado, aquele que, face à limitação linguística imposta, opta por alargar o limite, desvirtuar, desafinar, para que possa enfim ter um idioma próprio.

Deste modo, alguns pontos criativos se diferenciam para formar o que eu chamo de poéticas livres e forçadas. Nesse processo formal, o crioulo rompe as barreiras da coerção. Não é bem-sucedido no sentido de se tornar a língua natural dos países em que há falantes de crioulo, apesar de ter sido assim muitos anos atrás. Há razões sócio-políticas para isso ter acontecido as quais discutirei posteriormente.

Chamo de poéticas livres ou naturais qualquer coletivo que dirige a expressão de modo totalmente desimpedido em relação ao que se quer expressar ou à linguagem que se utiliza para tal.

Chamo de linguagem uma prática comum de confiança ou desconfiança manifestada através de um idioma ou idiomas que um coletivo utiliza.

Chamo de poéticas forçadas ou constrangidas qualquer coletivo que dirige a expressão de modo a reconhecer algo vago, que torna a comunicação impossível, não no que direciona, mas no que expressa em si.

Poéticas naturais: São as poéticas resultantes diretamente de alguma tensão na sociedade, geralmente de pessoas destituídas ou fragilizadas em relação ao que a comunidade deveria ser. São as mais audaciosas ou artificiais, as questões mais radicais sobre manutenção da língua, reforma ou violação de uma poética dada. Não há nenhuma incompatibilidade aqui entre a direção do discurso e sua expressão. A contestação violenta da ordem estabelecida pode proceder de uma poética natural: não há rompimentos na continuidade da ordem contestada à desordem contestadora.

Poéticas forçadas: A isso não digo selvageria, arbítrio ou artificialidade. Poéticas forçadas ocorrem quando a direção da expressão confronta algo impossível de ser expressado. Tal um confronto que pode ocorrer entre expressões e o idioma o qual é sugerido ou imposto historicamente.

Assim é o caso hoje das Antilhas Francesas onde a língua mãe, o crioulo, e a oficial, o francês, comungam a mesma tempestade invisível.

Se um falante do francês nas Antilhas se sentir à vontade diante do francês de hoje, ele lembraria alguém nadando a braçadas no ar, inconscientemente executando os mesmos gestos que o fariam se mover dentro d’água. O que pode ser encontrado através do francês é um caminho para uma língua que seja, talvez, um contraste à lógica do idioma francês. Poéticas forçadas são a consciência da oposição entre um idioma que é usado e uma língua que é necessária.

Porém, atualmente o crioulo passou a ter uma posição de poética natural, desde que encontrou uma feliz correspondência entre idioma e linguagem. Apesar disso, se enfraquece. No dia a dia, usa-se menos crioulo e mais francês. Quando escrito, isso se torna sacal. Ainda assim, o crioulo não abaixou a resistência em nenhum desses cursos, além disso, as poéticas forçadas são resultado dos cursos e da resistência a eles.

As poéticas forçadas, em resumo, raramente existem em cultura tradicional, a não ser que esteja ameaçada. Em qualquer cultura tradicional, o idioma (ou meios de expressão) e a linguagem (ou a atitude da comunidade através do idioma) coincidem. Desde que não haja uma falta fundamental, não há nenhuma necessidade de uma contrapoética.

Poéticas forçadas, ou contrapoéticas, são praticadas pela comunidade que não pode se expressar diretamente através das atividades autônomas de seus membros. Em outro ponto, a falta de autonomia faz com que o falante condene a si mesmo a um tipo de não poder e à impossibilidade de se expressar. Esse fenômeno é complicado pela oralidade. A transição da expressão oral para a escrita, o que na civilização ocidental é um ato sempre considerado necessário para galgar posição social, desconcerta ainda mais.

O crioulo, um idioma não oficial, ilustra esse problema em sua produção tradicional. Por essa razão, escolho primeiro falar da fundação do crioulo e explico a sua base na oralidade.

AS BASES DA PALAVRA FALADA

1

O que é escrito é baseado no não movimento: quando escrevo, meu corpo não se move em uníssono com o fluir das palavras. Meu corpo permanece em descanso; então, minha mão, empunhando a caneta (ou a máquina de escrever), não se mexe com o corpo, mas funciona como um suplemento da página.

O que é oral, ao contrário, não pode ser separado do movimento do corpo. A palavra falada escreve a si mesma somente em posturas do corpo (por vezes no linguajar dos falantes ou, ritmicamente e em círculo, no bater de pés durante a música), também nos gestos expressivos do ato de falar. A postura do corpo é o início da fala; e é também seu fim.

Agora, vou especificar as relações gerais entre corpo e fala. Nas Américas, no tempo da escravidão, o corpo do escravo era alienado. Era desprovido, velado, esvaziado da dimensão da fala. Não apenas a expressão era esquecida, uma vez que escravos não estavam autorizados a falar — medida impossível, pois seus corpos mesmos se tornavam a voz que fora suprimida. Mesmo vivendo sua função reprodutiva, o escravo estava fora de si, uma vez que o que era reproduzido servia apenas para o benefício do senhor. Sua própria satisfação era muda, isso quer dizer, fraudada, rebaixada, negada. Nesse contexto, é compreensível que se expressar à noite significava precaução, resguardo e murmurinho.

Quando o dia vinha, seus corpos se libertavam de si mesmos, emaranhando-se dentro do grito. Nas Antilhas, a palavra falada é sempre sobretaxada, continuamente, sem alívio ou sentimento. O corpo segue em litígio. O corpo das Antilhas não é capaz de descansar, não numa continuidade lânguida. Ele se move aos trancos e barrancos.

A mudança de uma civilização oral para uma escrita imobilizou o corpo (do escravo), subjugando-o, possuindo-o. Uma vez despossuído desse corpo, o escravo não pode administrar a imobilidade da escrita. Ele se move constantemente e apenas administra o grito. Fala e corpo comungam um vazio indefinível.

Possivelmente, no futuro — breve — nós entraremos na civilização dos não escreventes e a mudança do oral para o escrito não aparentará um passo transcendente, um passo além das posições sociais. Embora, para nós, agora, a escrita transcenda a oralidade e nosso corpo e fala chamem pelo ritmo que falta. Até se achar essa expressão, a fala nas Antilhas não continuará apenas como algo dentro da escrita.

2

No início era o grito — o início é, para nós, o tempo em que o crioulo foi inventado como uma maneira de comunicação entre o senhor e seus escravos. Aconteceu de, então, uma sintaxe peculiar do grito tomar forma. Para quem é das Antilhas, a palavra é primeiro e à frente um som. O ruído é a fala. O estrondo é o discurso. Precisamos primeiro entender isso.

Parece que no universo mudo e implacável do escravo desraigado, intenção e tom andam juntos. A altura do ruído tinha significado. A parte de cada som tinha significado. Conceitos eram agrupados, deixados de lado. Os escravos se entendiam por um sistema de ruídos no qual o senhor, embora tivesse alguma habilidade com o “crioulo básico”, ficava totalmente perdido. A casta dos senhores, a Béké, nunca colocou o crioulo entre os assuntos que mereciam atenção. Os escravos, por terem esquecido a fala, camuflaram as falas em gritos, considerando, com razão, que nenhum senhor poderia traduzir o que se falava. Para ele e, evidentemente, para fazer uma provocação ao paroxismo, o chamado dos monstros da floresta não tinha nenhum significado em geral. Isso permitiu que o homem despossuído organizasse sua fala, colocando-as dentro das armadilhas aparentemente sem significado dos ruídos.

A partir daí, uma sintaxe particular se desenvolveu, a sintaxe do grito. O crioulo organiza as sentenças ao modo de uma rajada de metralhadora. Não sei se essa prática é comum a linguagens sob risco, a dialetos moribundos ou a idiomas que perdem vitalidade. Porém, no mundo do crioulo, as pessoas falam assim: não apenas é o estilo da declamação das lendas ou das músicas, mas, geralmente, é o modo de falar do dia a dia. Isso introduz um novo fator nas sentenças do crioulo: velocidade. Não muito veloz, talvez, como o staccato. Outra novidade é também o desenrolar rápido de uma sentença dentro de uma única e indivisível palavra. O som é o significante e o nível do ruído o significado. Similarmente, o staccato ou o padrão de apresentação dos sons geralmente organizam o significado do discurso. Aqui, de novo, há uma proposta específica: embora a Béké dos senhores saibam crioulo melhor do que os mestiços, são inaptos para entender como o negro nativo usa o crioulo.

Na resposta em crioulo, o sincopado de tambores é ouvido de novo. Não é a estrutura semântica da sentença que ordena a métrica, porém, mais propriamente, é a respiração de quem fala: é a métrica poética par excellence.

Então, o significado da sentença é, às vezes, conciliado, como vimos, em um nonsense acelerado que emite sons. Porém, esse nonsense carrega o significado verdadeiro enquanto mantem longe o ouvido do senhor. Originalmente, o crioulo era um pacto secreto selado por baixo da publicidade explícita dos seus gritos. O crioulo podia ser sussurrado (sendo o sussurro um grito laminado até o limite do imperceptível no peso da noite), porém não podia ser murmurado. O verdadeiro significado estava oculto ao ouvido do senhor pelo não significado do ruído e o staccato, que é o verdadeiro significado. Esse não significado oculta e revela um significado oculto.

No entanto, se o ato da fala em crioulo, originalmente, envolvia um pacto secreto com significado oculto, é necessário saber que esse valor inicial está desaparecendo. Encaminha-se para, todavia, desaparecer, porém o grito do pacto continua na amplitude da língua. A língua não se dá na iniciação, mas na aprendizagem geral. Qualquer linguagem secreta torna a prática da sintaxe inútil, tira a “sintaxe constituída” e põe a “sintaxe substituta”. Para chegar ao status de língua completa, a “sintaxe substituta” do pacto secreto deve retornar às normas da sintaxe constitutiva. Na cultura tradicional, há uma leve, suave transição do pacto secreto a um tipo de comunicação aberta a todos, inclusive “estrangeiros”. A fala, então, gradualmente se torna um idioma. Não há necessidade de poéticas forçadas desde que o novo idioma com sua sintaxe constituída seja também a língua da sintaxe consentida.

O problema do crioulo é que o “pacto” está sendo ultrapassado, mas a língua não se evidencia. Funciona como uma comunidade secreta que está definhando, funciona como uma comunidade aberta que não se destaca.

Assim como em qualquer literatura popular e oral, o que nos abate de primeira sobre o tradicional texto crioulo, seja canção ou contação, é o caráter de subtaneidade de suas imagens. Isso é o que os intelectuais querem dizer quando falam de linguagens concretas em oposição a linguagens conceituais. Isso supõe uma transcendência completa do conceito a qual pode ser encontrada apenas no abandono (grande demais) da imanência sedutora da imagem.

O que é geralmente chamado de sabedoria popular expressa a si mesmo em termos de imagens, e a imagem é um estratagema, o que quer dizer, acima de tudo, um dispositivo da autoconsciência. Qualquer linguagem imagética (concreta) sinaliza que o conceito fora implicitamente concebido e sua discursividade tacitamente renunciada (“déroulé”). Sobre as então chamadas linguagens concretas, a imagem é o significado de uma deliberada (ainda que coletivamente inconsciente) apreensão do que é possível linguisticamente num dado momento. Sendo uma operação tão completa, sutil, finalizada quanto ao esboço conceitual, a imagem é segredada na noite de um povo. O conceito, por outro lado, é reputado para vir a ser apreendido através de um deus ou um espírito, no crepúsculo que Hegel menciona.

No entanto, o que complica a situação é que o crioulo abriga o francês dentro de si, a pulsação e a angústia do conceito (“lancinement du concept”), como transcendência interna. Entre as condições históricas sob as quais o crioulo apareceu, percebemos as poéticas forçadas, a convivência de uma percepção do francês como, em segundo plano, um constrangimento somado, ao mesmo tempo, à decisão deliberada de abandonar o francês, quer dizer, o conceito, como o locus da expressão. Consequentemente, a imagem, quer dizer, a expressão concreta e todos os derivativos metafóricos, não podem ser dados como certos dentro da língua crioula. A imagem é um desvio forçado. Não é um adorno implícito, mas um esquema bem planejado. A imagem desviada da sabedoria popular do crioulo tem algo de patético,* algo que marca a imobilidade.

É possível imaginar o tempo que agora se assoma, penso, em quase todo lugar do mundo, quando as linguagens orais se vingarem das escritas no contexto da civilização planetária baseada na não escrita. A escrita é amarrada, parece, a uma filosofia transcendental do Ser que pode ceder lugar a um sistema de relações humanas. Tal contexto pode dar lugar a sistemas de imagens, processos não conceituais, línguas que faíscam e chicoteiam em vez de simplesmente “refletir”. Não importa o que pensamos sobre essa possibilidade, a qual as circunstâncias presentes indicam como devem vir; mas, agora, vamos estudar quais requisitos devem ser preenchidos pela língua crioula para encarar esse desafio.

3

Para todas as ilhas, o crioulo é a língua do sistema de plantations que depende da cultura da cana de açúcar. O sistema desapareceu, porém, como na Martinica não houve substituição por outro sistema de produção, o crioulo degenerou-se ao circuito de transação. A Martinica é um país onde os produtos feitos em outros lugares são trocados. Esta é, portanto, uma terra que se tornou área de passagem. Como um país onde a presente organização ajuda a suprimir todos os tipos de produção, o sistema da língua mãe, privada de uma região interiorana dinâmica, não consegue se apoiar em tais tipos de região que lhe suporta. O crioulo não pode ser a língua dos shopping centers nem dos hotéis Hilton. Cana de açúcar, banana, abacaxi, estes sim são os últimos peões em jogo no crioulo. Enquanto as palavras estiverem escondidas da língua, continuarão de fora, ao menos que ganhem outros usos práticos para si mesmas.

Assim que deixou de ser a língua do pacto secreto, sem também tomar algum padrão formal e alguma característica “aberta”, o crioulo gradualmente parou de se comportar como um desvio em torno da imagem, movimento pelo qual no mundo das plantations realizava plenamente suas propostas práticas, sem atingir seus desenvolvimentos como uma ferramenta conceitual. Essas condições intimidam a língua com uma dramática paralisia.

O que o crioulo transmitia, no mundo das plantations, era, acima de tudo, uma recusa. De lá, poderíamos definir um modo de estruturação linguística que poderia ser “negativa” ou “reativa”, diferindo do “natural” das estruturações das línguas tradicionais. Nisso, o crioulo aparece como se estivesse organicamente ligado ao mundo largo da experiência das relações culturais. É literalmente uma consequência da interface cultural e não existe prioridade para essa interface. Não é uma língua do Ser, mas uma língua da Relação.*

Com o passar dos anos, no sistema de produção, tão perverso como era para a maioria da população, o crioulo manteve-se como exercício “autônomo”, permitindo uma atividade simbólica, ligando a comunidade e, através da classe determinante — primeiro os escravos e depois os trabalhadores do campo –, impôs a sua própria expressão à língua, crenças e costumes, em oposição ao mundo da escrita, religião e lei, que era posto pelas classes dominantes.

A narrativa do crioulo é o simbólico, desvio de percurso através do qual a massa da Martinica criou, no mundo das plantations, uma poética forçada (que também poderia chamar-se contrapoética). Isso acentua a impossibilidade de liberdade geral da comunidade junto com o desespero para se conseguir a libertação.

Se ao sistema de plantations tivesse se seguido outro sistema de produção, o crioulo provavelmente teria se reestruturado, quer dizer, teria controle do processo de escrita, teria mudado de posição — do pacto secreto a uma sintaxe elaborada, até mesmo do desvio para a fluidez, da imagem para o conceito.

No lugar disso, o que vemos na Martinica, até hoje, é uma das mais extremas consequências da irresponsabilidade social, um tipo de delírio verbal que por hora chamo de habitual, para distingui-lo do delírio patológico. Como a espinha dorsal da comunicação, o delírio verbal é um dos avatares mais frequentes da contrapoética desempenhada pelo crioulo. O barulho do mar, batuques, aceleração, repetições luxuriosas, pronúncia das sílabas, nonsense, alegoria e significados ocultos, todos os aspectos em que esse delírio verbal habitual condensa-se, fase por fase, na história dramática desta língua. Além disso, observando essa técnica não funcional que esvazia o crioulo, podemos dizer positivamente que o uso diário da língua a torna mais e mais uma língua de neuroses. As línguas do grito se amarram elas mesmas dentro de uma língua distorcida, uma língua frustrada. Poderíamos também nos perguntar se o uso frenético do crioulo possa ter ajudado na sua própria manutenção, a despeito das condições extremamente desfavoráveis as quais se apresentavam à prática do crioulo. Nós sabemos que o discurso delirante é uma técnica de sobrevivência.

Mas isso está dentro do conto popular, o eco da plantation, no qual você pode tomar como despercebida a lucidez patética* do falante do crioulo. A análise do conto popular mostra que as deficiências que a comunidade sofre: a ausência de uma cultura interior, a perda da responsabilidade técnica, o isolamento no Caribe etc., são reforçadas pelo imaginário popular. O que é notável é que esses reforços são sempre elípticos, se movem rapidamente e camuflam-se em desdém. Isso é o que observaremos na análise do conto popular. Procede, com certeza, das poéticas forçadas; é a tensão com uma linguagem que, fazendo uso da grande deficiência da qual sofre, condena a si mesma, pois prefere negar o direito à escrita por relacioná-la à superioridade, e assim nunca aprimorar sua própria expressão escrita.

CRIOULO E TERRITÓRIO

1

Não é meu propósito estudar o conto popular crioulo como sistema de significados, nem isolar elementos significantes. Uma síntese do bestiário africano e europeu, o preciso testamento das lendas transplantadas, o olhar penetrante do escravo no mundo do senhor, a recusa do “valor” de trabalho, círculo de medo, fome e miséria, ou um depósito de esperança continuamente rasgado em pedaços: muitas são as interpretações. Me contentarei aqui a estabelecer uma relação entre o conto popular e o meio-ambiente.

Uma forte demonstração do que quero dizer é a agudez do crioulo sobre seu território. O interior do país é um diagrama, um mapa de vários lugares que se pode atravessar andando; a floresta e sua escuridão, os campos e sua luz solar, as montanhas e seus enfados, são lugares precisos de trânsito. Andar adquire importância surpreendente: “J’ai tellement march, que chémar et que mes talons sont vênus par-devant”,* diz o ditado vez ou outra. Alguém pode retraçar os passos de outro. Vegetação abunda pelo território, a vida animal fervilha em seus limites. A coisa mais importante é, entretanto, que o lugar, apesar de indicado, nunca é descrito. A descrição do território não é parte do conto popular. A razão é que o território não é mencionado de forma a ser vivido; é um lugar de passagem e nunca uma terra natal.

2

Logo, é a terra do não pertencimento. Ninguém se mostrou a fim de declará-la para si. Há dois personagens “dominantes” no conto popular crioulo: o Rei (simbolizando a Europa, é preciso dizer) e o Tigre Irmão (simbolizando a Béké colonial). Ambos são fruto do escárnio e, então, são espancados pelo personagem “determinante”, o Coelho “Brer” (simbolizando a astúcia do povo). Porém, o direito à terra nunca é questionado. O simbolismo do conto popular nunca é levado ao ponto da erradicação do direito colonial à terra; a moral nunca manifesta a última chamada pela óbvia supressão desses direitos. Sobre isso, não vejo resignação, porém até essa extrema astúcia a qual mencionei, essa fixação emocional, aqui neste tema, é o meio pelo qual o conto popular crioulo sinaliza que certamente reconhece o sistema e sua estrutura.

Sobre o ambiente ao redor, homens (ou o animal que o emblema) possuem apenas relações fragmentadas com as coisas e plantas, animais e pessoas. A intensa “pulsação” do conto popular crioulo não deixa nenhum cômodo em repouso. Ninguém tem tempo para deixar o olhar vagar pela cena. A relação com o ambiente é constantemente dramática e questionadora. O conto popular pulsa, porque optou por não permanecer. No mesmo sentido que evita a descrição, se esquiva da apreciação. Não há escuridão que seja propícia ou fraqueza que seja doce. Cotidiano de correria ininterrupta é a ordem, de um passado de negação para um irrisório presente. A terra sofrida ainda não é a terra oferecida. A consciência nacional do conto popular crioulo germina, mas nunca floresce.

Um destaque comum do conto popular é também a lembrança à natureza dos “ricos”, aquele homem que reconhece esta como terra própria. Embora seja a questão do prazer de viver ou da felicidade de se dizer dono, o conto popular crioulo tem apenas duas respostas, deficiência ou excesso. Esta é a lucidez patética. Os ricos são ainda irrisórios ou excessivos. Eles são quantitativamente excessivos, por exemplo, quando o conto popular enumera coisas para comer; qualitativamente, por exemplo, quando determinam o preço extravagante dos bens. Um “castelo” é descrito com um único traço (sua ostentação, luxúria, conforto, prestígio) — enquanto expõe a pompa escancarada, sem nenhum detalhe a mais –, com duzentos e dez banheiros. Esses ricos são inexpressivos para os verdadeiros ricos que estão afastados do mundo fechado das plantations. Excesso e vazio combinam em apontar para a mesma impossibilidade. Por isso, o conto popular é situado numa terra não existente, evidenciada pelo excesso ou pela falta de substância, que não se relaciona em nada com o país real e ainda delineia sua estrutura com precisão.

Ao mesmo tempo, observa-se que o conto popular crioulo não oferece descrição de artesanatos comuns ou técnicas criativas. Uma distância separa a ferramenta do seu manejador. Apesar de ser um instrumento da dominação do homem sobre a natureza, o implemento é totalmente impossível de ser adquirido. O equipamento ou maquinário no conto popular é representado sempre submetido a algum dono cujo prestígio, quer dizer, os de status diferente, está implícito. Diz-se “o caminhão do senhor fulano” ou “o engenho do senhor fulano”. O implemento pertence de maneira clara a um outro alguém; a técnica não se tornou do seu próprio dono. Os homens não se incubiram de transformar a terra (por não poder). Também não têm tempo para apreciar a sua beleza, a qual é provável que ainda lhes pareça como um insulto.

CONVERGÊNCIAS

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De onde, então, vem a força para “se agarrar”? Qual a importância destas poéticas forçadas, uma contrapoética, que não saltam a frente em um crescimento saudável a partir da terra ancestral, porém, na direção contrária, levantam a sua frágil muralha contra a impossível tarefa: vazio, negação, redução?

<> Essa contrapoética é obrigada a realizar uma síntese da diversidade, muitas vezes em oposição, de elementos culturais.
<> Ao menos uma parte desses elementos não existe antes da função sintetizadora, o que faz da síntese ainda mais necessária, ainda que também mais ameaçada.
<> Esse constrangimento é o que causa a força (severidade, rispidez, catástrofe) da dita poética forçada.
<> Essa poética forçada tende a secar a não ser que lhe seja permitido fluir para uma natural, livre e aberta poética da relação.

Desviar é, portanto, o primeiro esforço dessa contrapoética. É um saber inconsciente pelo qual a consciência popular afirma a sua vagueza e a sua consistência. Contudo, essa é a ponte necessária da inconsciência para o deliberado autoconhecimento. A essa altura algumas discussões finais podem ser apropriadas para elucidar a relação entre tal situação e o campo da etnopoética.

2

Em primeiro lugar, pondo atenção no embate entre essas duas línguas, o crioulo e o francês, em que até agora uma domina a outra de maneira dramática, é preciso registrar que a única solução viável é fazê-las opacas uma para outra. Em oposição a um humanismo universal e reduzido, devemos desenvolver uma teoria ampla das opacidades particulares. No mundo da Relação* (que toma o lugar do sistema unificado do Ser), deveríamos consentir à opacidade, que é o mistério irreduzível do outro. Isso é, assim vejo, a única maneira de realizar genuinamente, através da diversidade, o humano.

Em segundo lugar, poéticas não podem ser separadas dos modos operacionais da língua. A fim de resguardar o crioulo, não seria suficiente a longo prazo protagonizar a fala ou a escrita crioula. O que é necessário para um genuíno desenvolvimento é reestabelecer condições adequadas de produtividade e fazer os martinicanos atentos das suas responsabilidades técnicas e morais na sua própria terra natal. Em outras palavras, cada etnopoética é o salto, em um tempo ou em outro, para alçar à política.

Por último, minha exposição demonstra bem que se certas comunidades, oprimidas pelo peso da história das ideologias dominantes, a ponto de converterem sua fala em grito, redescobrirem por essa prática a inocência do ethnos primitivo, nosso desafio é mais no sentido de transformar o grito que nós uma vez colocamos dentro de uma fala a qual o continua — e assim descobrir, embora de maneira intelectual, a expressão de uma poética totalmente liberada. Eu acredito que as etnopoéticas podem percorrer os dois caminhos.

As contrapoéticas conduzidas pelos habitantes da Martinica (seja em trabalhos escritos em francês, na prática do crioulo, ou na fuga através do delírio verbal) reconhecem a necessidade de se coletar essas expressões e a impossibilidade de realizar essa expressão. Essa contradição provavelmente desaparecerá quando a comunidade martiniquense estiver apta para expressar a si mesma, isto é, quando for uma escolha possível para si. A etnopoética estará mesmo no futuro. Então, não haverá mais conflito entre a busca da expressão e a expressão em si. O crioulo não será a longo prazo a língua da neurose. O francês então falado não mais determinará de fora os níveis linguísticos a serem usados. Uma língua, compartilhada pela comunidade, tomará forma. O tempo trará uma poética natural, espontânea e viva. O tempo trará uma subterrânea alegria, alegria a qual, enterradas todas as mágoas do mundo, é o sinal de um povo redescobrindo sua identidade.

NOTAS__por João Borogan

*Lucidez patética: vale ressaltar que o “patético” do termo se refere ao grego pathos, que, por sua vez, está relacionado ao trágico e à piedade que este último gera, segundo Aristóteles. Portanto, no caso deste texto, é um termo que se relaciona ao encontro entre os extremos, à catástrofe e a sentimentos limites. Curiosamente, no Brasil, a palavra “patético” é utilizada como xingamento de idiota, imbecil ou digno de pena.

*Relação: a Relação com R maiúsculo se opõe aqui ao Ser. Este é entendido, em poucas palavras, como o ser unificado e circunscrito, ao qual se oporia o ser-da-Relação, que, uma vez incompleto, tenderia a se completar, mas sem nunca terminar de fazê-lo, na relação com os Outros. É não só incompleto, mas móvel e mutante em sua incompletude, conforme as relações se transformam e se engaje em diferentes relações com diferentes Outros.

NOTA__por Michel Benamou

*“Chémar”: é a inversão bem-humorada das duas sílabas em “marché” (caminhar) e é intraduzível. “Eu realmente caminho, tanto que minhaco que meus calcanhares chegam antes” (tradução do ditado de João Borogan)

/“Poéticas livres e forçadas” foi publicado na revista Alcheringa, organizada por Michel Benamou e Jerome Rothenberg, Universidade de Boston, 1976.

Tradução do francês para o inglês de Michel Benamou.

/tradução de thadeu c santxs / revisão e notas de joão borogan

(não encontramos o artigo original em francês)

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