sorveteria kidelírio

puxando fios a partir do livro de poemas meu coração num cone de sorvete pra você, de joão reynaldo /sp:edições aurora e selo é de língua, de 2016

thadeu c santxs
kza1
8 min readAug 17, 2017

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meu coração num cone de sorvete pra você, livro digital de página soltas

1. sorveteria

texto disputando protagonismo com a imagem : num vestígio do que seria uma investida pop na poesia concreta, se estivéssemos nós investindo na poesia concreta : como se haroldo de campos de repente largasse o latim para abraçar como língua mãe a programação do sbt : “como se Haroldo de Campos participasse do programa A Praça é Nossa”, é assim que as editoras apresentam meu coração num cone de sorvete pra você, o livro de estreia de joão reynaldo, de são paulo > numa enorme quantidade de são paulo, gasosa e em profusão. é um livro de páginas soltas com 106 dáctilos. em cada dáctilo, um poema. em cada poema, uma conspiração de poemas. a poesia aqui é um contato entre poesias — a polifonia textual que desenvolve numa imagem, um texto : e faz-se observar que joão reynaldo trabalhando parece um pistão de maquinário repetindo com a mão direita o movimento de toque com o dedo riste, e com a esquerda a trava que libera o carro da máquina, a manha em usar a máquina, toques com inventividade, fugindo do formato de grid já definido. arte a partir do obsoletismo programado. traços para fazer linhas e escritas cursivas, preenchimentos de cor ou batidas sequenciadas das caixas, padrões de ilusão óptica ou o mais descarado anel de latinha de coca-cola, o poema que está vendido para o masp, e letras, por todos os lados, fôrmas da máquina dizendo algo ou sendo desenho de algo, letras para compor poemas ou para completarem num outro momento o ramo de uma flor, os padrões mecânicos de ordenamento de linhas, organização do espaço entre palavras, os espaços em branco, as caixas pontuações e as caixas de letras alfabéticas, os algarismo arábicos e demais sinais gráficos : recursos para a mensagem desde a inscrição (escrita e composição).

aqui há presenças de tantas escolas artísticas e da comunicação quantas podem desafiar a memória dos sobreviventes das demolições e reconstruções da poesia no século 21.

poema de meu coranção num cone de sorvete pra você

2. página/browser, letra/pixel

gosto de ler esse livro do joão reynaldo como uma leitura em tela : há um elogio nas folhas soltas, no livro que não é encadernado : apesar de uma sequência ser proposta, emaranhá-la refaz a fluidez, oferece a oportunidade de outro caminho. há dois aspectos, um formal e outro estrutural : o primeiro diz respeito à ambivalência letra/pixel, o segundo à ambivalência página/browser : no plano material da página surge um algoritmo analógico : a imagem, o texto vem de um raciocínio aleatório e corre no timing da internet : os textos são randômicos, miméticos, prolíficos; atritos de subjetividades retransmitidos pelo fluxo informacional que é meio-ambiente, floresta primitiva de asfalto e verticalidades, de um estilo de vida urbanoide : o livro guarda poemas de vasta gama de atenção — das paixões ressentidas à mania pelo consumo, do comum à especialidade : em o livro depois do livro, giselle bielgueman traça algumas características da internet vista como livro que cabem perfeitamente na proposta editorial de meu coração num cone de sorvete pra você > “as narrativas são não-lineares; as criações problematizam a condição do livro e do leitor; não somente cada volta ao índice implica em um novo itinerário de leitura, mas toda a seleção significa correr o risco de mudar o trajeto, perder o ponto de partida e redirecionar da leitura; no espaço cuja a substância é a memória, o que prevalece é a arquitetura do esquecimento; pequenas animações interceptam a leitura de trabalhos jogando com a condição textual da imagem on-line, e, ao mesmo tempo com a condição imagética do texto na tela” : além dessa incursão, bieguelman será citada outra vez pois o livro depois do livro também esclarece sobre minha intenção : “são as zonas de fricção, portanto, entre as culturas impressas e digitais, o que interessa”

poemas de meu coranção num cone de sorvete pra você

3. dáctilopoema

muitos artistas se preocupam com os novos limites que o digital trouxe para a arte — filtros, manipulação de pixel, vetores, sobreposições, circuitos — porém, e em joão reynaldo esse aspecto ganha um feliz embaixador, as questões da arte digital não se circunscrevem apenas à informação eletrônica. é preciso ter em consideração que, já passados praticamente 70 anos desde as primeiras tentativas de composição de poemas no computador, houve um estabelecimento — e reconhecimento — das aparências formais provenientes dessas tentativas, além do mais, a arte digital legou à arte um modo de leitura, que outrora provocada pela condicionantes dos aparelhos utilizados, passaram a um significado manipulável — tanto por outros aparelhos eletrônicos (a consequência arte-histórica imediata) quanto pelos artesanais, não importa : pioneiros como o poeta experimental erthos de souza albino trabalharam o mesmo tema. erthos aparece em dupla intenção : a primeira, por ser um dos idealizadores da código, revista editada entre 1974 e 1990, que foi disponibilizada on-line recentemente em um projeto que contou com a participação do próprio joão reynaldo; e a segunda, pelo fato de poemas visuais de erthos, como “le tombeau de mallarmé” e “soneto alfanumérico” referenciarem o momento virginal da exploração poética computacional : erthos, valendo-se das últimas novidades tecnológicas da engenharia, criou poemas a partir da programação de computadores gigantescos : os algoritmos de erthos resultavam em um texto aleatório e recombinado, programado para gerar derivados em grandezas exponenciais. a manipulação desses derivados por erthos gerou formas, como em “ninho de metralhadoras”, que sugerem movimentos que tendem a infinitude, porém, programado a não se concluir, não possui extensão fixa, apenas momentânea : as obras são frames, exemplos de um dado instante, acontecido em um processo de duração infinita — constituem, em si, a totalidade do processo que lhe deu origem — mas não a totalidade das formas possíveis a partir da mesma origem :

poema de meu coranção num cone de sorvete pra você

o poeta experimental português e.m. de melo castro, em um artigo na década de 1980, chamou essa modalidade de poema experimentada por erthos de “infopoesia” > “a novidade dos computadores, como máquinas escreventes de texto, é que eles próprios podem ser instruídos pelos homens nos usos e empregos das palavras e das regras gramaticais. (…) assim pode dizer-se que existem hoje numerosíssima possibilidade de produção poética que tiram partido, quer da velocidade de execução do computador na produção combinatória ou aleatória de textos que no seu rigor para a aplicação de modelos conceituais matemáticos.” : esse modo de leitura, uma vez estabelecido, realoca posições; traz, por exemplo, uma desconfiança em relação à autoridade do criador. afinal, o poema é gerado de forma autônoma, tendo como percurso o seu próprio código : o meu interesse nessa história é que também joão reynaldo registra um instantâneo de um processo que está em movimento, constituindo em seus poemas também um instante dentro de um código imaginável que roda fora do mundo da eletrônica.

poema de meu coranção num cone de sorvete pra você

4. me dá um assunto

apropriação à serviço da precariedade : catador de materiais nas calçadas da cidade para serem copiados, poemas de versos sedutores e charmosos e entregues e doídos, quando não poemas de amor, instruções para contratar um serviço de dedetização : o retrato 3x4 de sua avó : copia e intervém em textos desse naipe : “São de sua propriedade um isqueiro de bolso com pouco menos da metade do número de acendimentos e uma caixa de fósforos de segurança com 18 palitos novos. Um rapaz empresta o isqueiro do proprietário e diz ‘devolvo já’. Passam-se três dias. O rapaz continua com o isqueiroemprestado. Nesse ínterim, o ‘proprietário do isqueiro’ e da caixa de fósforos de segurança utilizou 3 dos 18 palitos novos para acender um segredo………………… Crédito Virtual é impresso em papel termossensível. Os dados impresso têm VIDA útil de 5 (seis) anos, desde que sejam tomados certos cuidados: não deixe o papel em contato direto com tomadas elétricas, plásticos, solventes, sorrisos estridentes, produtos químicos, evite a exposição ao calor e umidades excessivos, luz do ou lâmpadas fluorescentes………….”, tradutor que translitera e tradutor que propõe tradução para si mesmo : shitty friends / migos de merda : em três quadrinhos em branco as ações invisíveis “comi” “deitei” “capotei” : A COPY DÉBUT ALBUM : um beijo de tinha vermelha da máquina feito com os próprios lábios do artista no meio da página é typelips (em conversa c/ joão, ele confessou “é meio amargo”) : barrinha é ser a real : e mais artimanhas : que nos põe no esteio do que haroldo de campos chamou de “problema do provável”: “de um ponto de vista teórico-informativo, o probabilismo levado à estrutura da obra não é senão o caso mais extremo da fragilidade (um conceito veiculado por oskar becker) da informação estética. se esta é inseparável de sua realização — se não se pode, por exemplo, compreender a informação estética de um poema senão dentro do processo de signos em que ele está codificada e se não é possível alterar essa codificação sem destruir aquela informação (diferentemente do que ocorre com a informação semântica, que pode ser transmitida por diferentes codificações sem que a mensagem se perca), no caso da obra de arte provável ou aberta a informação estética ficará, ademais, inseparável de seu consumo: entre realização e consumo da informação estética, então, se estabelece uma relação arbitrada no momento, pelo intérprete-operador, coprodutor da informação, e esta já não será a mesma numa segunda ou numa terceira (e assim por diante) execuções.” (haroldo de campos, a arte no horizonte do provável e outros ensaios, in: a poética do aleatório, sp:perspectiva, 1969)

poemas de meu coranção num cone de sorvete pra você

5. “você imito eu”

o poema perdura no alargamento de um fim para o poema, um poema que desafia o fim, recusa-o embaralhando o contexto do presente no contexto do passado : a máquina de escrever é apenas uma das metáforas na realização estética desse livro parada dura : nessa epígrafe para meu coração num cone de sorvete pra você : “você imito eu” : não está apenas uma irônica referência a relação entre autor e leitor : está tudo. a originalidade pelo saqueio.

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