Da imortalidade aos deuses

Lucas Das Chagas Testa
Escriba Cafe
Published in
21 min readSep 28, 2015

A morte é o processo que constitui a finitude da vida.

Essa condição natural ao homem e até o momento irreversível, é a causa de inúmeras perguntas que não só expressam nossa ansiedade em relação ao fim, mas também, contempla incontáveis questões associadas a própria existencialidade humana.

É diante essa consciência, que a concepção da imortalidade está relacionada. Uma resposta ao desejo de perpetuarmos nossa identidade além da própria morte.

Crudelius est quam mori semper mortem timere — Temer a morte é morrer duas vezes

Ao longo da história, vemos diversas crenças, mitos e lendas associadas a essa necessidade de transcender a morte. É claro que a ideia não se limita apenas as manifestações de fé, mesmo porque, esse desejo é intrínseco a todas as pessoas, e sua expressão pode ter diferentes formas ou modos convencionados por cada cultura e indivíduo. O fato é que a imortalidade é categórica na história da humanidade e isso é constantemente declarado em cada ação que tomamos.

Neste ensaio faço uma breve passagem relacionando essas ações a visão mais aberta da imortalidade dadas as religiões, as lendas e algumas especulações científicas. A ideia a princípio era abordar apenas o movimento transumanista sob o viés da singularidade tecnológica. Acontece que a questão da imortalidade me pareceu tão presente e maior nesse assunto, que resolvi abrir o escopo do artigo e partir direto dela como linha condutora, afinal, assim como Gilgamesh, também busco minha imortalidade simbólica por meio deste texto e algumas linhas a mais.

A Epopeia de Gilgamesh

Em A Epopeia de Gilgamesh, os poemas narram a história de um herói dois terços deus e um terço homem chamado Gilgamesh, rei da antiga cidade de Uruk. A obra dividida em episódios, conta as grandes façanhas do semi-deus e a trágica busca pelo conhecimento da imortalidade após a morte de seu fiel companheiro.

“Trata-se de uma mistura de pura aventura, moralidade e tragédia. Por meio da ação estes poemas nos revelam uma preocupação bastante humana com a mortalidade, a busca do conhecimento e a tentativa de escapar ao destino do homem comum.”

- Comenta N. K. Sandars em sua introdução a versão em prosa do livro.

Provavelmente esses escritos sumérios datam por volta do fim do terceiro milênio antes de Cristo. Praticamente um dos registros mais antigos que se tem tratando do assunto.

“Como posso ficar calado, como posso descansar, quando Enkidu, a quem amo, tornou-se pó, e quando também por mim a morte e a terra esperam?”

- Gilgamesh. A Epopeia de Gilgamesh: Tradução realizada a partir da versão inglesa estabelecida por N.K. Sandars por Carlos Daudt de Oliveira, 3ª ed. — São Paulo, Ed. WMF Martins Fontes, 2011.

Algumas religiões

Ao longo da história há vários exemplos socioculturais retratando esse objeto de desejo. A ideia normalmente acompanha questões de valores morais e crenças que refletem a preocupação humana associada a seu comportamento perante a vida. Nesse sentido, muitas religiões fundamentam seus princípios e normas de conduta visando uma passagem de acordo com o divino, assim, a crença na vida após a morte seria cumprida por uma continuidade sem fim. É claro que em algumas doutrinas o pós-morte nem sempre é um estado desejável, contudo, são poucas que abandonam o eterno e consideram a extinção da alma como fim penal.

Essas concepções existenciais tem vários destinos, visto que os mais recorrentes são a crença na ressurreição, na reencarnação ou em algum plano de existência específico.

A ressurreição tem por essência, o conceito de um ser voltar à vida após a morte, reunificando a alma ao corpo anterior, ou pelo menos, a sua representação espiritual.

No cristianismo temos a ressurreição de Jesus Cristo após o terceiro dia da crucificação. A ideia referida é o fundamento central da fé cristã, onde a salvação eterna da humanidade só seria possível pelo sacrifício do filho de deus.

“Mas agora Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem. Pois desde que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Pois assim como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados.”

- I Coríntios 15:20–22

Na mitologia grega, há algumas histórias que associam a imortalidade a uma ascensão benéfica. Asclépios, deus da medicina e da cura, foi morto por Zeus enquanto homem. O motivo foi a transgressão da morte.

Fruto da relação entre o deus Apolo e a mortal Coronis. Asclépios foi acolhido do ventre de sua mãe após a execução dela por infidelidade ao deus e destinado aos cuidados de Quíron, o qual foi responsável pela criação e educação da criança. Durante anos o menino aprendeu os segredos da arte da cura com o centauro e quando cresceu, tornou-se tão hábil, que era capaz de ressuscitar as pessoas da morte. Zeus, preocupado com a ordem natural da vida, fulminou Asclépio com um raio, mas em seu reconhecimento, ressuscita-o para ascender como uma divindade.

The Finding of Aesculapius — Óleo sobre tela por Giovanni Tognolli (1786–1862)

Já a reencarnação, tem por premissa a subsistência linear da alma em diferentes corpos físicos. O propósito dessa transcendência cíclica alterna de acordo com cada religião.

Uma concepção análoga a reencarnação é a transmigração da alma, ou metempsicose. A distinção dessa para ideia anterior está na possibilidade de transmigrar a alma do homem para o animal e vice-versa. Segundo o espiritismo, Kardec comenta que essa perspectiva implicaria na retrogradação da alma humana, o que é contra o princípio progressivo da reencarnação espirita, como por exemplo, a progressão espiritual do homem em sua própria espécie.

Outras religiões fundamentadas nessas (reencarnação, transmigração ou ambos) crenças são o Hinduísmo, o Budismo, a Umbanda, a Cabala, algumas linhas esotéricas cristãs e inúmeras mais que se ramificam a partir dessas e de outras.

E completando, temos a morte como transição a uma nova vida. Essa existência contínua abre margem, dependendo da religião, para destinos quase infindáveis como a noção de paraíso e inferno, cidades e reinos espirituais, sociedades e raças alternativas, outros mundos e planos dimensionais, enfim, uma série de possibilidades que entoam a promessa de uma vida além da morte.

É claro que entre todos esses conceitos há muito mais nas entrelinhas e claramente muito mais caminhos relacionadas a condição da eternidade. O fato, é que o ser-humano sempre buscou uma forma de preservar sua existência. A religião, sempre compreendeu essa aflição perante a brevidade. No fim, ou não, muitos encaram a morte sob o viés da fé e se isso for o suficiente, que seja, afinal, a experiência da morte sempre será particular a cada um.

Agora para outros, a fé não era o bastante.

Assim como Gilgamesh, muitos outros homens buscaram em mitos e lendas a possibilidade de refutar a morte conquistando a imortalidade.

Juan Ponce de Léon e a fonte da juventude

Um deles foi o explorador e conquistador espanhol Juan Ponce de Léon (1474–1521).

Financiados pelos reis espanhóis Fernando e Isabel que tinham por objetivo explorar novas terras, Léon conseguiu lugar em um dos 17 navios integrando a tripulação da segunda viagem ao Novo Mundo, rumo as Antilhas, organizada por Cristóvão Colombo.

A história de Léon passou por ilhas, batalhas e conquistas, muitos eventos que o colocaram em uma posição militar repleta de regalias, garantindo repartições de terras e lucros, escravos nativos, a tenência da província de Higüey (em Hispaniola) e posteriormente a governança de San Juan Bautista (atual Porto Rico). Mas entre 1509 a 1511, mudanças significativas aconteceram na política e no governo das Antilhas espanholas. Com a chegada de Diego Colombo, filho mais velho e herdeiro de Cristóvão Colombo, Léon foi deposto do cargo de governador após Diego travar uma batalha legal sobre seus direitos a herdar os títulos e privilégios concedidos a seu pai.

Apesar da perda, o rei Fernando recompensou Léon por seus anos de serviços com uma licença para explorar novas ilhas ao norte, especialmente as ilhas de Benimi, terra da lendária fonte da juventude para os povos indígenas Taíno.

Segundo a lenda popular, Léon teria descoberto a Flórida durante a busca pela fonte da juventude em suas navegações. O caso é mencionado pelo escritor e historiador Gonzalo Fernández de Oviedo y Valdés em sua obra Historia Geral y Natural de las Indias de 1535, no qual escreve que Léon procurava as águas da suposta manancial para curar seu envelhecimento.

Outro relato é do espanhol Hernando de Escalante Fontanela, que sobreviveu 17 anos entre os índios Calusa da Flórida após ter naufragado na costa da península por volta de 1549. Em seu livro de memórias publicado em 1575, Fontanela comenta sobre a expedição de Juan Ponce de Léon e a intenção dele em descobrir a localização do rio Jordão, responsável pelo rejuvenescimento lendário.

Trecho “Memoir Of Hernando D’Escalante D’Escalante”, tradução de Christian Gurter:

Juan Ponce de León , acreditando que os relatos dos índios de Cuba e San Domingo eram verdade, montou uma expedição para a Flórida para descobrir o rio Jordan. Ele fez isso ou porque ele desejava ganhar fama ou, talvez, porque ele esperava se tornar jovem de novo banhando em suas águas. Muitos anos atrás, um número de índios cubanos foi em busca deste rio, e entrou na província de Carlos (Calos), mas SEQUENE, o pai de CARLOS, levou-os prisioneiros, e os alojou em uma aldeia onde os seus descendentes ainda vivem. A notícia de que essas pessoas deixaram seu país para se banhar no rio Jordan, se espalhou entre todos os reis e chefes de Flórida, e como eles eram um povo ignorante, todos eles partiram em busca desse rio, que, supostamente, tinha o poder dos rejuvenescer os velhos. Eles estavam tão ansiosos em sua busca, que não passou um rio, riacho, lago, ou até mesmo um pântano, em que eles não se banhassem e, até hoje, eles ainda continuam buscando, mas sempre sem sucesso. Os nativos de Cuba , enfrentando os perigos do mar, tornaram-se vítimas de sua fé, e assim aconteceu que eles vieram para Carlos, onde construíram uma vila. Eles vieram em tão grande número que, embora muitos já tenham morrido, ainda há muitos que ali vivem, tanto velhos como jovens. Enquanto eu era um prisioneiro nessas áreas, eu me banhei em um grande número de rios, mas nunca encontrei o correto. Parece incrível que Juan Ponce de León deveria ter ido para a Flórida para procurar tal rio.

Léon faleceu em Cuba após ser ferido por uma flecha envenenada dos Calusa na costa sudoeste da Flórida. Seu corpo foi sepultado em Porto Rico na Igreja de São Tomas de Aquino e mais tarde transferido para a Catedral de San Juan Bautista.

Apesar dos boatos registrados, muitos historiadores acreditam que a principal razão dele ter partido para as ilhas do norte e eventualmente ter descoberto a Flórida, era a pura e simples vontade de enriquecer acumulando posses de acordo com seus eventuais achados. Outro ponto, alguns relacionam a história da fonte e seu efeito rejuvenescedor a suposta falta de vigor de Léon dada a sua idade. A fonte seria uma referência a um fruto e o efeito do rejuvenescimento, bem, a potência que lhe faltava.

Além do conto indígena e das aventuras e desventuras de Léon, existe inúmeras origens referentes a lenda.

Heródoto, historiador grego do século V a. C., menciona a longevidade excepcional do antigo povo Macrobiano (viviam supostamente no Chifre da África) que alcançava em média 120 anos de idade. Apesar da idade atípica, Heródoto não atribuiu o efeito a razões mágicas. Ele acreditava que a água tomada pelos macrobianos continha características nutricionais favoráveis a prolongação da vida.

A “Água da Vida” também aparece em algumas versões do Romance de Alexandre (coleção de lendas sobre os feitos míticos de Alexandre, O Grande), começando com a recensão β entre o século V e VI d. C. e depois alternado as histórias de acordo com cada versão do manuscrito.

Em alguns contos a descoberta da imortalidade era feita pelo cozinheiro de Alexandre enquanto lavava um peixe em uma fonte d’água. Em outros, Alexandre, consciente do poder das nascentes para além das Terras da Escuridão, usa do corpo de um peixe para verificar qual era a fonte lendária. Da mesma forma, muitas outras histórias foram relacionando Alexandre a busca, sendo a maioria derivada de lendas e contos do Oriente Médio, da Índia e algumas influenciadas pela mitologia grega.

Acontece que Alexandre não obteve êxito, independente da versão. Mas isso não é um problema, afinal, estamos falando de variações de um romance, na História, Alexandre teve um papel mais tangível relacionado a imortalidade, mesmo de maneira indireta.

Alquimia e Nicolas Flamel

A palavra alquimia vem do árabe Al-Khemy e quer dizer “a química”. Esse campo de estudo começou a se desenvolver de forma unificada por volta do século III a. C. em Alexandria, um dos principais centros de convergência cultural e intelectual da época.

Sua existência é baseada na mistura de três correntes do saber: a grega, a oriental e a egípcia. Sabedorias que foram convergidas na arte hermética da transmutação, o que é a essência e o propósito da alquimia.

A transmutação alquímica tem por base três finalidades: a transformação dos metais inferiores (principalmente mercúrio e o chumbo) em metais tidos como superiores (como ouro e prata); a transformação espiritual do alquimista em um ser perfeito, ou seja, o aperfeiçoamento dele enquanto ser humano por meio dos fundamentos e da prática; e por fim, um dos que mais geraram histórias a respeito da imortalidade, o Elixir da Vida, a panaceia que cura as enfermidades, conserva/devolve a juventude e prolonga a vida.

A maioria desses processos necessita de um item essencial em suas composições, a Pedra Filosofal.

Considerada como a Grande Obra Alquímica, o artefato é o que torna possível a transmutação dos metais e a obtenção do Elixir da Vida. Foram poucos os que conseguiram cria-la e mesmo assim, existe uma áurea de incerteza a respeito da veracidade do assunto, seja por ela ser um objeto palpável como uma pedra de fato ou uma representação simbólica de um estado ou ideal.

Um desses alquimistas, talvez o mais famoso, é Nicolas Flamel (1330–1418 ou 1330-∞).

A princípio, Nicolas Flamel foi um parisiense nascido no século XIV. Escritor, copista e livreiro, casou-se com a viúva Perenelle, a qual garantiu-lhe uma confortável fortuna somada a sua carreira de sucesso. Tanto, que no decorrer de suas vidas o casal viria a ficar conhecido por seu amplo investimento em ações filantrópicas. O que mais tarde tornaria-se objeto de especulação a respeito da origem de suas riquezas associadas a figura de Flamel como alquimista e detentor da Pedra Filosofal.

Segundo a lenda póstuma, Flamel teria dedicado sua vida a compreender os textos de um misterioso livro intitulado “O Livro de Abraão, o Judeu…”. A ideia o fez viajar até a Espanha, mais especificamente até o caminho de Santiago de Compostela, onde conhecera um sábio que o ajudou na compreensão dos escritos. De volta a Paris, ele finalmente consegue replicar a receita da Pedra Filosofal e desse modo, a transmutação de metais e a conquista do Elixir da Vida.

A quem diga que a história toda seja apenas fruto de editores desesperados do século XVII tentando reproduzir edições de antigos tratados alquímicos. Outros, defendem veemente o legado de sua vida e de suas obras considerando-as em parte como uma alusão iniciática a alquimia.

Nicolau Flamel faleceu em 22 de março de 1418 e foi sepultado na Igreja de Saint Jacques de la Boucherie. Entretanto, sua história fora estendida três séculos mais tarde pelo antiquarista Paul Lucas.

Na publicação “Voyage du sier Paul Lucas…” de 1714, ele resume sua viagem pelo oriente a serviço do rei Luís XIV. Em uma das histórias, Paul relata ter conhecido em Broussa (Turquia) um homem muito sábio que dizia ser membro de um grupo de sete filósofos não pertencentes a nenhum país, que viajavam por todo mundo não tendo outro objetivo senão a busca de sabedoria e do próprio desenvolvimento. De acordo com ele, a vida humana poderia durar em média mil anos através do conhecimento da Pedra Filosofal. O que era claramente uma condição restrita, pois apenas um número ínfimo de pessoas possuíam tal compreensão. No ocidente, haviam poucos, sendo um deles Nicolau Flamel. O filósofo também conta a história de como “O Livro de Abraão…” foi parar nas mãos de Flamel e declara que o alquimista e sua esposa ainda viviam após séculos as suas supostas mortes.

A publicação do livro criou uma grande sensação na época, tanto, que algumas pessoas deram sequência ao boato relatando terem encontrado o próprio Flamel em vida. O curioso disso tudo, é que a situação cursou um caminho muito semelhante a de outra figura enigmática da época. O Conde de Saint-Germain.

O Conde é outro “personagem” que merece menção neste artigo, mas não pretendo dar uma prévia de sua história ou lenda. Caso você tenha interesse, escute o podcast de número 37 do Escriba Cafe.

Bem, querendo ou não, essas histórias ainda são lendas e, por mais que elas sejam compostas por fatos reais, não há como afirmar até que ponto a verdade convencionada se mescla com a fantasia desejada. Mesmo porque, a intensão de algumas narrativas nunca foi a de contar uma história literal, mas sim, provocar uma reflexão maior relacionando a existência humana a sua efemeridade perante o tempo.

A ciência, a expectativa de vida e a senescência celular

by John Van Horn (US), Neda Jahanshad (US), Betty Lee (US), Daniel Margulies (US) and Alexander Schäfer (DE).

No caso da ciência, se considerarmos verdadeira a hipótese que a consciência existe unicamente como resultado de correlações materiais e que ela é intrínseca a continuidade do nosso ser, a vida enquanto existência acabaria no momento da morte e com isso, nós deixaríamos de existir para sempre. É, a esperança de um pós vida religioso não se encaixa nos moldes da ciência.

Provavelmente essa concepção de fim não é a mais atraente de todas, porém a ciência, assim como as outras já mencionadas, também não se contenta com o estado natural da vida e por isso avança em diversas áreas do conhecimento afim de um dia, quem sabe algumas décadas, superar a condição existencial da mortalidade humana.

No século XX, a expectativa de vida experimentou um aumento significativo graças ao progresso científico na medicina e suas áreas correlatas. Tivemos os aprimoramentos das vacinas e antibióticos que permitiram a prevenção de doenças e controle de epidemias; o desenvolvimento tecnológico da agropecuária que possibilitou o acesso populacional a alimentos de melhor qualidade; os avanços científicos da biologia que conduziram às noções modernas de higiene e de saneamento básico; a criação de serviços públicos de saúde; uma série de acréscimos ao londo do século passado, que praticamente dobrou a expectativa de vida em relação ao seu início. Em 1900, essa média atingia a expectativa dos 40 anos nos países mais desenvolvidos, hoje, na França por exemplo, sua população ultrapassou a média dos 80 anos.

Esse salto da expectativa de vida tem provocado uma série de especulações a respeito do nosso destino. A questão, é que mesmo com os indícios favoráveis, a comunidade científica em sua maioria não acredita que alcancemos uma média significativamente superior a existente, não sem uma intervenção que amenize a degeneração do corpo ao longo da vida e os riscos de mortes decorrentes do envelhecimento na terceira idade.

Ao longo da vida, nosso corpo gradativamente acumula uma série de danos causados por reações metabólicas do organismo. Uma das causas, se não a principal, é o processo natural do envelhecimento.

O fato está relacionado ao ciclo de divisão celular. Toda vez que esse processo ocorre, os telômeros — são as pontas responsáveis por manterem a estabilidade estrutural dos cromossomos — são encurtados a cada fração do processo até atingirem o limite mínimo de comprimento, ponto em que os cromossomos deixam de se replicar e as células param de se dividir. O motivo é que a enzima responsável pela replicação do DNA eucariótico, é incapaz de copiar o trecho final do DNA linear telomérico de cada cromossomo. E a medida que nos aproximamos desse limite, as células tendem a se regenerar com menor capacidade, até elas finalmente pararem. Além disso, há inúmeros fatores externos que causam um envelhecimento prematuro no organismo.

Para que possamos estender a vida, será necessário encontrar caminhos que nos preservem dessa degeneração ou nos reparem. Até o momento, a ciência identificou uma série de alternativas que não só são capazes de aumentar a expectativa de vida, mas também, são premissas para alguns cientistas acreditarem que a imortalidade é possível.

Aubrey de Grey

O cientista britânico Aubrey de Grey, teórico no campo da gerontologia e co-fundador da Fundação SENS, argumenta que o envelhecimento é um processo completamente reversível sob a ótica da medicina regenerativa, assim como uma doença habitual.

Ele acredita que por meio do desenvolvimento da biotecnologia no rejuvenescimento e reparação de células, será possível realizar manutenções e reparos no corpo de forma tão eficaz, que nos permitirá viver indefinitivamente com o passar do tempo. Em vez da ciência continuar criando meios para aliviar os sintomas com dispositivos e drogas e outros procedimentos, a ideia será reconquistar a função perdida pelo corpo, regenerando a função dos órgãos e do tecido danificado. Este é o propósito do tratamento, que o seu corpo seja o mesmo que era antes de começar a se tratar.

“Quando houver muitas células proliferando de modo irregular, vamos remover as excedentes usando terapia genética ou vacinas. Se o problema for o acúmulo de toxinas dentro das células, podemos tirá-las utilizando enzimas ou vacinas. Em relação às mutações, podemos prevenir seus efeitos por meio da inserção de genes modificados novos, sadios, ou induzindo à morte as células com as mutações. Esta última estratégia envolve terapia genética e uso de células- tronco. Quando tivermos todos esses recursos, não ficaremos mais frágeis, decrépitos e dependentes com o passar dos anos.”

- (PEREIRA, Cilene. Entrevista com Aubrey de Grey. Em: http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/ 11876_O+PROFETA+DA+IMORTALIDADE).

A telomerase

A quatro anos atrás, pesquisadores do Instituto de Câncer Dana-Farber e da Universidade de Harvard, em Massachusetts, publicaram um artigo na revista Nature, revelando o sucesso de suas pesquisas de rejuvenescimento em ratos de laboratório.

O experimento usava ratos geneticamente modificados para não produzirem uma enzima chamada telomerase.

Presente em apenas alguns grupos de células, a telomerase é uma enzima capaz de estabilizar o comprimento completo dos telômeros. Portanto, ao programarem o estado latente da enzima nos animais, esses, envelheceram muito mais rápido do que qualquer rato normalmente — a fertilidade deles era muito baixa; eles sofriam por doenças relacionadas a idade avançada, como a osteoporose, diabetes e neurodegeneração. Além de morrerem jovens.

A equipe de engenharia também programou os genes dos ratos para despertarem a telomerase assim que eles ingerissem uma substância química chamada 4-OHT. O propósito era saber se esses efeitos causados pelo “envelhecimento”eram reversíveis ao ativarem a enzima.

A pesquisa acompanhou o crescimento dos ratos até a maturidade, quando foram alimentados por um mês com 4-OHT e um mês depois foram avaliados.

“O que realmente nos pegou de surpresa foi a dramática reversão dos efeitos que vimos nesses animais”

- Ronald A. DePinho, geneticista líder do estudo

O resultado segundo a expressão dele foi como “um quase efeito Ponce de Léon”. Os testículos dos ratos cresceram novamente e eles recuperaram a fertilidade. Outros órgãos, como o baço, fígado e intestino, recuperaram-se do estado degenerativo. Até mesmo o cérebro deles teve um resultado visivelmente melhor. As células progenitoras neurais, que produzem novos neurônios e células cerebrais de apoio, começaram a trabalhar novamente.

“Isso nos dá a sensação de que há um ponto de retorno não só para o envelhecimento, mas para as desordens associadas à idade”

- DePinho.

Apesar dos resultados favoráveis, há um certo receio quanto as implicações dadas ao uso da enzima, já que sua ativação em células cancerosas inativa o relógio telomérico, que limita a capacidade proliferativa de células somáticas normais, logo sugere-se que o alongamento do telômero pode ser uma etapa importante na formação de tumores.

DePinho defende que a telomerase deve evitar que as células saudáveis se tornem cancerosas através da prevenção de danos causados no DNA. No que se refere ao envelhecimento, ele reconhece que o uso da telomerase seria apenas uma parte entre outras, que têm como foco os caminhos bioquímicos do envelhecimento.

“Isso poderá ser uma das várias opções que você precisará fazer a fim de estender o tempo saudável de vida”

- DePinho.

Uma dessas opções, é a presente engenharia de tecidos.

Engenharia de tecido

Esse campo de estudo é uma especialização da engenharia biomédica que permite recriar, industrialmente, tecidos e órgãos sintéticos ou semissintéticos funcionais a partir do cultivo organizado de células. Na prática, ela atua como um instrumento da medicina, fornecendo alternativas mais eficazes no tratamento de doenças graves, cujo transplante ou enxerto sejam as únicas saídas (3).

Uma das tecnologias-chave é a chamada célula-tronco pluripotente induzida.

As pluripotentes são células capazes de se diferenciar em qualquer um dos três tipos de folheto embrionário humano (endoderme, mesoderme e ectoderme), com exceção da placenta e outros tecidos de apoio ao feto. As células-tronco pluripotentes induzidas é um tipo de célula-tronco artificialmente derivada de células não-pluripotentes.

Nós induzimos células, digamos, células da pele adicionando alguns genes à elas, cultivando-as, e depois as colhendo. Portanto elas são células da pele que podem ser enganadas, parecido com amnésia celular, em um estado embrionário. Então sem a controvérsia, essa é a coisa legal número um. A segunda coisa legal, você pode fazer crescer qualquer tipo de tecido através delas: cérebro, coração, fígado, imaginem, mas de suas células. Então nós podemos fazer um modelo do seu coração, de seu cérebro em um chip.

Explica a engenheira de tecido Nina Tandon no TEDGlobal 2012 e acrescenta:

…outra coisa sobre estas células-tronco pluripotentes induzidas é que se pegarmos algumas células da pele, digamos, de pessoas com doenças genéticas e construirmos os tecidos delas, nós podemos, na verdade, usar técnicas da engenharia de tecidos para gerar modelos dessas doenças no laboratório. Aqui está um exemplo do laboratório Kevin Eggan em Harvard. Ele gerou neurônios a partir dessas células-tronco pluripotentes induzidas de pacientes que têm a doença de Lou Gehrig, e ele as diferenciou em neurônios, e o que é incrível é que esses neurônios também apresentam sintomas da doença. Então, com modelos de doenças como esses, nós podemos lutar contra mais rápido do que nunca e compreender melhor a doença mais do que nunca antes, e talvez descobrir remédios ainda mais rápido.

A possibilidade de recriar as mesmas condições de uma doença em um organismo originário do paciente, permitirá uma ação muito mais incisiva com medicamentos específicos e orientados exclusivamente a ele. Aliás, uma das grandes vantagens dessas aplicações, está justamente na alternativa de criar implantes com o mesmo material genético do organismo receptor, o que diminuirá claramente as chances de rejeição por parte do corpo.

Transumanismo e a singularidade tecnológica

Os primeiros Homo Sapiens levaram milhares de anos para evoluírem seus métodos tecnológicos por razão da velocidade que essas informações eram difundidas. Com o passar dos anos, o espaço entre essas evoluções foi decrescendo abruptamente a medida que usamos a tecnologia já inventada para criar a próxima. Os primeiros computadores foram projetados no papel e agora usamos computadores para projetar outros computadores.

O futurólogo Raymond Kurzweil exemplifica que se voltarmos 500 anos atrás, veremos que pouca coisa acontecia em um século. Agora muita coisa acontece em apenas 6 meses.

“A tecnologia alimenta-se a si própria e torna-se cada vez mais rápida. Daqui a 40 anos o ritmo da mudança será tão rápido e o seus efeitos tão profundos, que todos os aspectos da vida humana serão irreversivelmente transformados”

- Raymond Kurzweil.

Essa previsão do futuro, na qual a humanidade atravessará um estágio gigantesco de avanço tecnológico em um curtíssimo espaço de tempo, é a denominada Singularidade Tecnológica.

“Quando falo sobre a singularidade quero chamar a atenção para um fenômeno que é o da ascensão exponencial da interação entre a biologia humana com a tecnologia que criamos. O paradoxo está no fato de que a inteligência biológica pode ser educada e melhor organizada, mas não pode mais passar por evoluções significativas, ao passo que a inteligência não-biológica, a dos computadores, tem sua capacidade multiplicada por mil a cada década que passa. Esse ritmo está diminuindo para menos de uma década”

- Raymond Kurzweil.

Essa ascensão exponencial a favor do progresso tecnológico, é a evidência fundamental para os estudiosos suporem que a singularidade será o futuro que transcenderá a biologia humana como conhecemos. E isso está diretamente associado a justificativa transhumanista.

O transhumanismo é um movimento cultural e intelectual idealizado na crença de que podemos alterar fundamentalmente a essência da condição humana, por meio do uso racional da tecnologia e suas áreas correspondentes. Seus princípios surgem com o intento de beneficiar a vida através de uma evolução biológica e cognitiva, transcendendo as limitações impostas pela própria natureza do corpo, como por exemplo, o envelhecimento.

“Os computadores combinarão os poderes de reconhecimento sutís da inteligência humana de formas que as máquinas já são superiores em termos de pensamento analítico, lembrando bilhões de fatos com precisão. As máquinas podem compartilhar seu conhecimento muito rapidamente. Mas não será simplesmente uma invasão de máquinas inteligentes. Nós iremos nos mesclar com nossa tecnologia”

- Raymond Kurzweil.

Essa integração se dará pelo desenvolvimento aplicado da biotecnologia na reprogramação do nosso organismo por meio de compostos químicos e da nanotecnologia orientada pela inteligência artificial. Será basicamente uma evolução da simbiose, um cenário onde o indivíduo abrirá mão da sua autonomia humana, se é que existe uma, para se conectar ao artificial de um modo que não haverá uma clara distinção entre a identidade humana e a identidade tecnológica. A partir disso, o artificial não será mais artificial e sim nossa nova natureza. Tornaríamos um. E isso, sem dúvida alguma, provoca e provocará inúmeras questões filosóficas quanto a existencialidade da espécie humana e seus possíveis caminhos.

“Não tenho dúvida que caminharemos para a imortalidade, seja por meio de processos que revertam o envelhecimento das células biológicas, ou mesmo por meio da transferência de nosso conteúdo cerebral para um meio físico além do corpo, um novo hardware. Um robô construído a nossa imagem e semelhança é um dos modelos.”

- Raymond Kurzweil.

A grande implicação da singularidade é que não se sabe quais serão as reais implicações da singularidade e isso, pode muito bem significar o seu não acontecimento. Não há um consenso entre os pesquisadores que a defina como um provável futuro, só projeções e conjecturas, embasadas é claro, mas não definitivas.

Em algumas matérias de 5, 10 anos atrás, Kurzweil e outros entusiastas, previam que a singularidade chegaria em 2029. Hoje ela é prevista até o ano de 2070. Outros futurólogos acreditam que esse evento ocorrerá, porém não tão cedo e talvez não dessa forma.

Acredito que o mais interessante desse movimento transhumanista, é a questão do homem como uma existencialidade híbrida. Quer dizer, se a singularidade vier a ocorrer e se for dessa forma, até que ponto poderemos nos considerar humanos? Será o fim da humanidade ou a evolução? Como ficará a percepção da identidade pessoal com a possibilidade de trocarmos de corpo num período indeterminado de tempo? E por fim, como seria lidar com uma inteligência infinitamente superior a mais brilhante existente?

Pelo jeito, seguiremos um caminho muito semelhante ao de Prometeu e seu irmão Epimeteu, só que ao invés de humanos, serão deuses a serem criados.

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