Prólogo de “A arte de ronronar”

Lúcida Letra
Lúcida Letra — Textos
6 min readApr 29, 2016

Ah, que bom! Até que enfim você voltou! Se me permite dizer, você demorou! Sabe, caro leitor, tenho um recado para você. Não um recado corriqueiro, e, certamente, não de uma pessoa comum. E, além disso, diz respeito à sua felicidade mais profunda e pessoal. Não adianta olhar para trás e nem para os lados… Este recado é realmente para você.

Não é todo mundo que pode ler estas palavras — somente uma pequeníssima minoria de humanos tem esse privilégio. Você também não deve pensar que esta é alguma espécie de obra do acaso, que fez com que você lesse essas linhas neste exato momento da sua vida. Somente aqueles entre vocês com um carma bem específico irão um dia descobrir o que estou prestes a dizer — leitores que possuem uma conexão especial comigo.

Ou devo dizer conosco.

Sabe, eu sou a Gata do Dalai Lama, e o recado que tenho para você vem de ninguém mais, ninguém menos, que Sua Santidade. Como eu posso fazer uma alegação tão estapafúrdia? Será que estou fora do meu juízo perfeito? Se me permite enroscar-me em seu colo metafórico, eu posso explicar.

Em algum momento da vida, quase todos os apaixonados por gatos se deparam com um dilema: como dizer ao seu felino que você vai deixá-lo? E não se trata apenas de um fim de semana prolongado.

A maneira exata de como os humanos dão a notícia de sua ausência iminente é um assunto de grande preocupação para os gatos. Alguns de nós gostamos de ser advertidos com antecedência e inúmeras vezes, para que possamos nos preparar mentalmente para as mudanças em nossas rotinas. Outros preferem que a notícia caia dos céus sem prévia proclamação dos arautos, como um melro zangado em época de nidificação: quando você se der conta do que está por acontecer, já aconteceu.

Curiosamente, os membros da nossa equipe parecem ter um sexto sentido para esse tipo de coisa e agem de acordo com a situação, alguns bajulam seus bichanos por semanas antes da partida, outros exibem a temida gaiola de gatos saída de dentro do armário sem aviso prévio.

Quanto a mim, estou entre os mais afortunados dos gatos, pois quando o Dalai Lama viaja, a rotina doméstica em Namgyal é praticamente a mesma. Continuo passando parte do dia no peitoril da janela do primeiro andar, um ponto de observação estratégico, de onde posso manter a máxima vigilância com o mínimo de esforço, assim como na maioria dos dias passo algum tempo no escritório dos assistentes de Sua Santidade. Há também minha caminhada habitual pelos agradáveis arredores até as deliciosas tentações do Café & Livraria do Himalaia.

Mesmo assim, quando Sua Santidade não está aqui, a vida não é a mesma. Como poderia descrever o que é estar na presença do Dalai Lama? É simplesmente extraordinário. A partir do momento em que ele entra em um ambiente, todos os seres ali presentes são tocados por sua energia de felicidade sincera. Qualquer outra coisa que porventura estiver acontecendo em sua vida, seja qual for a tragédia ou perda que você possa estar enfrentando, durante o tempo em que estiver com Sua Santidade, terá a sensação de que, no fundo, está tudo bem.

Se nunca teve esta experiência, é como ser despertado para uma dimensão de você mesmo que sempre esteve ali, fluindo como um rio subterrâneo, mas que até agora passava despercebida. Uma vez reconectado a esta fonte, você não só vivencia uma paz profunda e uma nascente no centro do seu ser, como pode também, por um momento, vislumbrar sua própria consciência radiante, sem limites e imbuída de amor.

O Dalai Lama nos vê como realmente somos e reflete a nossa verdadeira natureza. É por isso que tantas pessoas simplesmente derretem em sua presença. Já vi homens importantes de ternos escuros chorarem só porque foram tocados por ele. Os líderes religiosos mais importantes do mundo fazem fila para conhecê-lo, e depois voltam para a fila para serem apresentados a ele uma segunda vez. Já vi cadeirantes chorarem de felicidade quando ele se embrenhou pela multidão para segurar-lhes a mão. Sua Santidade nos faz lembrar do melhor que podemos ser. Há dom maior que esse?

Então você entenderá, caro leitor, que embora eu continue a aproveitar uma vida de privilégio e conforto quando o Dalai Lama viaja, ainda prefiro quando ele está em casa. Sua Santidade sabe disso, assim como sabe que eu sou uma gata que gosta de ser avisada quando ele vai viajar. Se qualquer um de seus assistentes — o jovem Chogyal, o monge rechonchudo que o ajuda com as questões do monastério, ou Tenzin, o diplomata experiente que o ajuda com assuntos laicos — lhe apresenta um pedido que envolve viagem, ele levanta os olhos e diz algo como “Dois dias em Nova Deli no final da próxima semana”.

Eles podem pensar que o Dalai Lama está apenas confirmando a visita. Na realidade, ele está dizendo isso visando especificamente ao meu benefício.

Nos dias que antecedem uma estada mais longa, ele me lembra da viagem visualizando o número de dormidas — isto é, noites — que passará fora. E, na última noite antes de sua partida, sempre arruma tempo de qualidade para ficar comigo, só nós dois. Nestes poucos minutos, comungamos da maneira mais profunda possível entre gatos e seus humanos.

Isso me traz de volta ao recado que Sua Santidade pediu que eu desse a você. Ele o mencionou na noite anterior à sua partida para uma viagem de ensinamento de sete semanas aos Estados Unidos e à Europa — o período mais longo que já passamos separados. Enquanto o crepúsculo caía sobre o Vale de Kangra, ele se levantou de sua escrivaninha, caminhou até o parapeito onde eu descansava e ajoelhou-se ao meu lado:

— Tenho que partir amanhã, minha pequena Leoa da Neve — disse, olhando bem dentro dos meus olhos azuis, enquanto me chamava pelo meu apelido carinhoso favorito. É o que mais me encanta, uma vez que os tibetanos consideram que os leões da neve são seres celestiais, símbolos de beleza, coragem e alegria. — Sete semanas é mais tempo do que costumo me ausentar. Sei que gosta de me ter por perto, mas há outros seres que precisam de mim também.

Levantei-me de onde descansava, esticando minhas patas dianteiras, e dei uma boa espreguiçada antes de bocejar com vontade.

— Que boquinha rosa mais linda — disse Sua Santidade, sorrindo. — Estou feliz em ver que seus dentes e gengivas estão saudáveis.

Aproximei-me e dei-lhe uma cabeçada carinhosa.

— Ah, você me faz rir! — disse.

Permanecemos assim, testa com testa, enquanto ele passava os dedos pelo meu pescoço.

— Ficarei fora por um tempo, mas a sua felicidade não deve depender da minha presença. Mesmo sozinha você pode ser muito feliz.

Com a ponta dos dedos, ele massageou a parte de trás das minhas orelhas, do jeito que eu gosto.

— Talvez você ache que a felicidade vem do fato de estar comigo ou da comida que te oferecem no Café.

Sua Santidade não tinha ilusões quanto aos motivos que me levavam a ser uma frequentadora tão assídua do Café & Livraria do Himalaia.

— Mas, durante as próximas sete semanas, tente descobrir por si mesma a verdadeira causa da felicidade. Quando eu voltar, você pode me contar o que encontrou.

Com profundo amor, o Dalai Lama me pegou no colo gentilmente e se levantou, observando a vista do Vale de Kangra pela janela. Era uma visão magnífica: o vale verdejante e sinuoso, as ondulações verdes das florestas. Ao longe, as montanhas nevadas do Himalaia brilhavam com o sol da tarde. A brisa suave que soprava pela janela inundava a sala com o aroma fresco de pinho, rododendro e carvalho; um ar cheio de encantamento.

— Vou lhe contar as verdadeiras causas da felicidade — sussurrou em meu ouvido. — Um recado especial somente para você — e para aqueles com quem você possui uma conexão cármica.

Comecei a ronronar, o que logo se transformou em um som profundo e constante, como o motor de um barco em miniatura.

— Sim, minha pequena Leoa da Neve — disse o Dalai Lama — , gostaria que investigasse a arte de ronronar.

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A arte de ronronar, de David Michie

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