Religião, ciência e multiculturalismo

Padma Dorje
Lúcida Letra — Textos
8 min readJun 27, 2016

Sua Santidade o Dalai Lama, em seu entendimento de que o budismo muitas vezes pode não ser o ensinamento mais adequado para todos, tem se dedicado a promover valores humanos comuns numa perspectiva secular. O que isto implica?

Para Albert Einstein, por exemplo, a ciência estaria separada dos valores — esse seria o papel próprio da religião. A revolução na física que começa com ele foi um momento de ruptura importante no pensamento moderno.

Esse ponto foi a culminância de um processo milenar em que a ciência, enquanto ganhava proeminência como discurso secular por excelência, efetuou uma separação da espiritualidade e de valores. Verdade, boa vida e sentido da existência — na forma de lógica, ética e teologia –, não eram separáveis no pensamento antigo e medieval. Com o passar do tempo, o primeiro campo se uniu com as evidências empíricas e ficou primariamente associado com a ciência. Na idade moderna, a ética e o sentido para a existência acabaram como especulações sonhadoras –, na visão mais lisonjeira (de Einstein), estritamente de foro pessoal, e na visão menos lisonjeira, simplesmente associadas com superstições (como para alguém como Stephen Hawking).

Então, saímos de uma perspectiva pré-moderna da ciência, que usava o mundo natural e a matemática como ferramentas para entender a mente de Deus — num espectro gradual que vai de Galileu a Einstein, onde ainda havia uma perspectiva que visava conhecer verdades espirituais através do exame da matéria –, para uma enfim total desconsideração desses dois polos nas versões mais exageradas do materialismo. Após Einstein, com a exceção de alguns cientistas mais velha-guarda, tudo que importa são as relações entre entidades materiais e o resto é especulação desnecessária. (E essa ainda é a visão educada predominante, seja nas ciências, seja nas humanidades.)

O Dalai Lama discorda dessa visão fragmentada, mas com uma diferença importante. Há alguns que persistem nessa visão intermediária, de Einstein a Galileu, em que o melhor seria uma separação respeitosa; outros ainda fomentam a união irrestrita de conhecimento e fé em algo como a escolástica cristã medieval — mas não são essas posições, e nem o materialismo, que Sua Santidade sustenta. Ele não acata a separação ao mesmo tempo em que entende que a diversidade de disposições, tradições e culturas tanto permite quanto possibilita uma secularização da ética — isto é, valores independentes de religião. Não é uma posição usual seja para os cientistas, para os materialistas ou filósofos, e muito menos para os religiosos. E o mais curioso é que, em meio a isso, muita gente ainda ache que o Dalai Lama praticamente só fala platitudes — uma vez que a docilidade de suas colocações frequentemente encobre seu sentido radical e desafiador. O que o Dalai Lama promove, sem usar o termo, é interdependência: nem uma separação estanque (seja ela respeitosa ou não), nem uma união perdida no tempo.

E a ponte para esse diálogo é um pano de fundo verdadeiramente multicultural e secular, onde posições diversas podem efetivamente coexistir e ouvir umas as outras.

Essa visão radical e desafiadora, e que magicamente não surge como uma afronta, se deve, em grande parte, a peculiaridade do próprio budismo, que é uma tradição religiosa sem Deus criador, e que desde o princípio, conviveu com a multiculturalidade. Isto é, embora a tradição tenha muitos aspectos que possamos chamar de religiosos, na Ásia nem mesmo chega a existir esse nosso conceito de religião atual, que foi desapropriado pelo sucesso da ciência e outras prerrogativas da modernidade. O que o Dalai Lama propõe é: vamos chamar esses aspectos culturais e religiosos de budismo, vamos dizer que isso continua tendo valor, mas vamos nos ocupar principalmente de fomentar valores humanos independentes disso. Em certo sentido o maior líder budista se apropria dos valores humanistas do iluminismo, como um pano de fundo básico em que o respeito mútuo, possibilitado pela confiança numa humanidade compartilhada, permite que a gama do discurso e conhecimento humano venha a se encontrar sem manipulação ou cinismo.

Na idade média europeia a multiculturalidade era exceção — havia algum diálogo com a alteridade em Nalanda, bem como árabes estudavam cultura grega antiga, mas na Europa, de forma geral, o que se fez com os outros povos foi principalmente escravizar e explorar. Ou algo como uma mistura de escravizar e explorar com um imperialismo cultural mais brando (como no Império Romano), ou com simples miscigenação cultural (uma mistura sem preservação de identidade própria, com a criação de uma nova, como nas sucessivas invasões da Grã Bretanha). Podemos dizer que a separação entre valores e o estudo da natureza não ocorreu por simples capricho de cientistas, mas se tratou também de uma pressão cultural geral para objetificar o mundo e os outros como objeto de exploração.

Você só consegue escravizar o outro quando você o desumaniza, e você só o desumaniza porque é capaz de separar os valores das praticalidades — “o melhor seria fazer assim, mas a gente precisa ganhar a vida de algum jeito, é assim que as coisas funcionam…” E essa é a visão estrita do “realismo materialista”, nos dois sentidos de cada palavra: filosófico e popular. Isto é, materialismo tanto como hedonismo ganancioso, como postulando que tudo que existe é o que pode ser objeto de estudo dos físicos; e realismo tanto como “não ser idealista” (não se ater valores que soam pouco práticos) quanto como separação estrita entre um mundo externo e um observador. Estas quatro ideias convergem umas sobre as outras, e se o exemplo de resultado num ponto da história foi a exploração de escravos, ela segue hoje como aumento de desigualdade e crise ambiental.

Em resumo, você inventa um mundo onde há entidades discretas, coisas independentes. E então você se desvincula e se anula desse mundo como um observador incorporado, alguém que parece ser, de algum modo extremamente misterioso, apenas essa carne esponjosa e cinzenta atrás dos olhos, e meros processos eletroquímicos determinados, como uma laranja mecânica. A partir disso, o que você quer fazer determina como você pensa — e não o oposto, como a ética grega e o cristianismo chegaram a nos ensinar. Separa, anula o sujeito de um lado, anula a preocupação com o mundo do outro, nos tornamos engrenagens do mecanismo ideológico de exploração.

Este pensamento objetificador, fomentado por certas visões da neurociência e da indústria farmacêutica, transforma a própria subjetividade num subproduto mecanizado de relações físico-químicas. Neste exato momento há vários zumbis autodeclarados, perambulando pelo mundo sustentando a visão de que são sacos semissólidos de ocorrências independentes e aleatórias — como esperar valores de mecanismos determinísticos? Eles obedecem “o que se apresenta”, e a partir disso justificam sua visão de mundo. A visão atual não só objetifica o mundo e os outros, mas objetifica até quem se engaja na tarefa de objetificar.

Como pode haver valores neste mundo de seres materialistas e mecânicos? O próprio campo da “ética” nessa visão cínica se torna um resultado de tensões evolucionárias, em que não se sabe se o maior patrocínio de pesquisas voltadas a certa perspectiva de mundo exatamente justifica, ou não, justamente estas próprias perspectivas e pesquisas. Acaba como uma questão de “ovo ou galinha” — o olho mercadológico produz o olhar científico, e vice-versa. Os dois sentidos de materialismo estão profundamente interligados: você desumaniza o ser humano como um escravo porque isso rende, ou você lucra porque desumaniza o ser humano?

Em certo sentido, essa visão que não vê o outro e o mundo como totalmente independente, e que coloca as ações na ordem certa, depois das conclusões, é a mesma união “teológica” medieval entre espiritual, ético e lógico. Isso é a espiritualidade. Mas é difícil falar em “espiritualidade secular”, então falemos, seguindo o exemplo do Dalai Lama, e evitando um lastro religioso-étnico, simplesmente em valores humanos. Não é necessário, e pode ser muito contraproducente, carregar a estética religiosa para esse discurso crucial. O materialismo é uma premissa de certos cientistas, mas não há nenhuma justificativa que não lhe seja absolutamente circular. O mesmo vale para o realismo. E assim, para o discurso público, e a manutenção de valores, precisamos abandonar também a fé na matéria. Além de que, no fundo, mesmo estes supostos zumbis no fundo querem uma vida boa, e são capazes de reconhecer valores — eles apenas se negam a isso por uma crença injustificada.

É fácil entender a preocupação do Dalai Lama com uma opção puramente secular para os valores. A religião é algo mais associado justamente ao ethos que além de “ética” também vai dar origem ao termo étnico. Como ocidentais, nós, que praticamos o budismo tibetano sabemos bem disso, já que nossas práticas soam algum tipo de RPG antropológico para quem não as conhece. Uma perspectiva isenta etnicamente é necessária no caldeirão multicultural da globalização não só porque há um viés cultural implícito, mas porque simplesmente as pessoas de modo geral não têm mais raízes.

Não ter raízes implica que este processo de separação — e o crescimento populacional e a vida nas cidades –, eliminou a identidade comunitária, e assim agimos como um indivíduos ainda mais separados. Isso também nos fragiliza perante a questão da objetificação, já que sem raízes, muitas de nossas interações se dão entre desconhecidos, e são puramente comerciais ou de interesse.

Porém, não é fácil simplesmente “adotar raízes” de acordo com uma simples disposição. Precisamos de valores que cresçam nesse terreno pedregoso da modernidade, que não permite enraizamento. E como esses valores surgem? Da percepção de uma humanidade comum, ou senciência comum, já que devemos incluir os animais — ou de simples comunalidade, já que devemos também incluir o ambiente. Nada religioso.

E daí vem a ênfase de Sua Santidade em manter um diálogo secular, mas que ao mesmo tempo não se entrega às disposições do materialismo e do realismo, geralmente associados com o pensamento científico. Antes de cientistas, religiosos ou “detentores de uma posição”, somos seres humanos. E nessa comunalidade básica começa o diálogo.

Nas palavras de Sua Santidade em Além de Religião (Lúcida Letra, 2016):

… é uma questão de grande urgência encontrarmos formas de cooperar uns com os outros em espírito de aceitação e respeito mútuo. Embora para muitos seja uma fonte de alegria viver em um ambiente cosmopolita onde se possa experienciar um amplo espectro de diferentes culturas, não há dúvida de que, para outros, viver em estreita proximidade com aqueles que não partilham a sua língua ou a sua cultura pode ser uma dificuldade. Isto pode criar confusão, medo e ressentimento, resultando, na pior das hipóteses, em hostilidade e no desenvolvimento de novas ideologias de exclusão baseadas em raça, nacionalidade ou religião. Infelizmente, quando olhamos o mundo, vemos que as tensões sociais são bastante comuns. Além disso, parece provável que, com a continuidade da migração econômica, essas dificuldades aumentem ainda mais.

Em um mundo assim, é vital encontrarmos uma abordagem verdadeiramente sustentável e universal da ética, dos valores internos e da integridade pessoal. Uma abordagem que seja capaz de transcender diferenças religiosas, culturais e raciais, e pela qual as pessoas sintam-se atraídas em um nível fundamentalmente humano. Esta busca por uma abordagem sustentável e universal é o que chamo “projeto de uma ética secular”.

O livro “Além de religião” pode ser adquirido no site da Lúcida Letra.

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