sessenta e seis aforismos de velejador

rodrigo uriartt
L á u d a n o
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6 min readMay 31, 2019

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o veleiro Kea Uno batendo com tudo em mar grosso

nem todo mundo sabe (mas conto pra todo mundo que posso), que passei tipo uns três anos velejando sem parar, quando morei na Marina da Glória, no Rio… e saía com o veleirinho do meu irmão e depois no grande veleiro de 82 pés de milionários, onde trabalhei como cozinheiro de bordo e marinheiro (muitas milhas náuticas).

foi como se uma memória kármica retornasse com tudo. aquele era um ar que muito me agradava!

desde lá sempre retorno, se não às águas ligeiras sobre o casco, às memórias e sensações marinheiras.

vocês podem perceber como me tornei de alguma forma, mas irremediávelmente, um tanto religioso depois dessa experiência. é porque, no meio do mar, se vc não tem fé, morre de medo. tem que acreditar no barco casca-de-noz no meio do velho oceano, tem que confiar na capacidade de seus colegas de tripulação, tem que acreditar que uma onda gigante não vai surgir do nada e te engolir, tem que acreditar que depois de toda aquela água tem um porto… tem que acreditar.

(coloquei algumas notas explicativas em algumas palavras e situações. daria pra por num monte, pois muitos desses aforismas foram calcados em experiências vividas… mas poupei-vos desse tormento).

-x-x-x-

1. destro é o safo(1), que mesmo usando a mão esquerda, desata o nó. ou vise e versa.

2. numa calmaria nunca assovie pra chamar o vento… pode vir uma tempestade.

3. dá muito azar transportar padres, coelhos, mulheres casadas e guarda-chuvas numa embarcação.

4. pássaros são sinal de ilhas.

5. percebe-se a direção do vento pela nuca.

6. todo mundo tem o seu turno no leme.

7. o cozinheiro de bordo é tão importante quanto o capitão.

8. os motins começam à sota-vento(2).

9. há muitos mais monstros no interior dos tripulantes do que nas profundezas do oceano.

10. em alto mar todo homem crê em Deus.

11. é mais potente (e mais perigoso) beber e fumar em alto-mar.

12. o vento é o comandante.

13. no mar o horizonte é sempre igual e sempre diferente.

14. pequenas mudanças causam grandes transformações.

15. não existe delivery no meio do oceano.

16. as necessidades da vida são mais simples do que parecem.

17. nossos problemas comezinhos tomam a dimensão de uma casca de nóz ao se estar na imensidão.

18. é mais fácil virar o Cabo Horn(3) do que conviver com as pessoas à bordo sem ao menos uma briga.

19. existe um rumo à que todos tem que se conformar.

20. tudo é ritmo.

21. em tudo seja safo.

cozinheiro Balan fazendo festa na vela balão do Kea Uno

22. pode-se dar a volta no mundo, em solitário num veleiro de madeira, sem se saber nadar. o primeiro homem que fez isso não sabia.(4)

23. os sons saem abafados no tombadilho.

24. é difícil se distrair com dias e paisagem sempre iguais. o bicho homem volta-se pra dentro. nem sempre gosta do que vê.

25. tempestades são lindas.

26. se o barco subir uma onda ele vai descer.

27. o mar é vivo.

28. siga sempre o rumo, mesmo que precise mudá-lo para chegar a ele.

29. bom humor é tudo.

30. golfinhos andam em pares.

31. se um pássaro pousar no seu barco, no meio do mar, é porque ele vai morrer.

32. dormir e sonhar no balanço das águas é como voltar para o calor do útero.

33. quando se toca o solo do porto, depois de dias em alto-mar, suas pernas ficam bambas. você fica bêbado da firmeza do chão.

34. a Terra gira e é, claramente, curva.

35. você navega é com a sua cabeça.

36. Deus existe. dá pra ver e senti-Lo no mar.

37. se o homem fosse um bicho satisfeito não atravessava a imensidão dos mares.

38. Humor é Deus.

39. o pôr-do-sol e a aurora é a tv à cabo do marinheiro.

40. a fé é importante à bordo.

o Dane, o barquinho de 18 pés do Daniel, chegando ao fim do dia na Marina da Glória, Rio de Janeiro

41. aprenda e faça bem tudo aquilo que é necessário para sua sobrevivência.

42. é no meio do perrengue que se mede a real força das pessoas.

43. o maior medo do homem-do-mar não é afundar o barco. é cair na água, enquanto a nave segue em frente, sem que ninguém veja.(5)

44. o safo se adianta aos medos.

45. os dias podem ser sempre iguais… contanto que a comida seja diferente.

46. é mais duro vencer a monotonia do que as exigências de uma tempestade.

47. o ritmo é Deus.

48. o Mar é maior que o Mundo.

49. golfinhos sorriem.

50. gaivotas são chatas.

51. não tem poeira no oceano.(6)

52. objetos azuis resistem a luz solar muito melhor do que os vermelhos.

53. cuidado… tudo pode desbotar, corroer e criar craca… principalmente quando parado.

54. o vento.

55. tudo parece parar quando se está com o vento de popa. mas o barco move-se muito celeremente.

56. tudo parece vibrar e se mover quando se está com o vento à proa. mas o barco não se move mais rápido por isso.

57. não zoe o velho lobo-do-mar à bordo. se ele diz que ali é uma área onde costuma haver tempestades… acredite nele!

58. um capitão imbecil te leva à um rumo estúpido.

59. as medalhas numa regata não fazem um homem… e sim sua coragem cotidiana.

60. você pode enxergar no escuro, se não tiver luzes na cara te ofuscando.

61. quem sabe ser só… sabe navegar.

62. os maiores perigos estão na baía, não no mar aberto.

63. você precisa de ao menos três peças estepes pra tudo num barco.

64. Deus é safo.

65. velejar é Filosofia.

66. o próximo porto é sempre uma esperança.

x-x-x-

(1) Safo é o homem do mar que sabe se virar em qualquer situação. Cheio de habilidades, sempre encontra a gambiarra certa.
(2) Sotavento é pra onde vai o vento, depois de passar pela embarcação. Direção para onde sopra o vento ou lado contrário de onde vem o vento. Também pode ser um lugar protegido do vento. Quando se está a sotavento, conversando com alguém, quem está à frente não escuta o que se está tramando.
(3) O Cabo Horn, na ponta sul do continente americano (assim como o Cabo da Boa Esperança, no sul da África) é um dos grandes desafios físicos para os navegadores.
(4) Joshua Slocum era esse intrépido homem. Que nos antigamente de 1895 partiu num sloop de 37 pés. Demorou 3 anos pra dar um giro no mundão. Aqui tem um ótimo texto sobre ele e sua aventura: http://exploradordeitadonarede.blogspot.co.il/…/joshua-sloc…
(5) Tem aquela história do Almir Klink, em que ele estava no meio do mar e caiu do barco. Como isso é absolutamente terrível para um navegador solitário, ele já havia deixado um grande cabo, que ficava semi-afundado na esteira da embarcação… e pôde agarrá-lo para se pôr de novo a bordo.
(6) É incrível… tudo é tão limpo! (a não ser que esteja velejando nas águas que recebem o vento do Saara).

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