Foto by Danilo Arouca – editada por Priss Guerrero

A Carta

Priss Guerrero
L.E.I. & A.
Published in
4 min readDec 16, 2015

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Como começar esta carta? Eu me lembro bem de nossos passeios e sei que você também tem essa memória, afinal, me contou várias vezes enquanto jantávamos outra noite.

Aquela noite em que perdemos totalmente a noção do tempo, mais uma vez, distraídos, conversando e divagando sobre assuntos infinitos. Você é bom de papo. Eu também.

O tema de nossos assuntos girava em torno daquela vida que tivemos juntos e isso foi bem interessante. Não sabia que você se lembrava de tantas coisas assim, tantos passeios, com uma riqueza de detalhes tão profunda, que seria possível até que me descrevesse a temperatura daquela chuva que tomamos juntos. Sua memória é fantástica e isso ainda me surpreende. Sempre me impressionou, aliás. Assim como sua inteligência.

Uau! Como é difícil encontrar alguém inteligente assim para conversar, com tantos assuntos, capaz de falar sobre a Guerra do Vietnã, passando por receita de bolinhos e culminando em filmes antigos! De tirar o fôlego. As pessoas próximas da gente, nos observam e não compreendem como duas pessoas possuem tantos assuntos assim.

Devem pensar que somos dois seres que não se veem faz anos. De repente imaginam que eu morei fora da cidade por muito tempo e que, finalmente, o reencontrei. Ou o inverso também pode ser verdadeiro; devem pensar que não nos vemos há décadas! Eu mesma tenho essa impressão às vezes, mas é apenas uma sensação, pois de fato, conseguimos nos encontrar em intervalos regulares de aproximadamente 25 a 30 dias. Moramos na mesma cidade, mas nossas agendas… ah, essas malditas raramente se alinham.

E talvez por isso mesmo, quando se ajustam, nós ficamos vagando em conversas sem fim. Estacionados em locais que não nos expulsem, nos atualizando e nos conhecendo novamente. É, às vezes eu tenho a impressão que nada sei sobre você, ao mesmo tempo que acho que conheço cada parte sua. Mas não é verdade. O fato é que hoje, a cada novo encontro eu aprendo mais alguma coisa sobre você, sua família, seu passado, seu trabalho e isso é fantástico.

Sinto-me uma arqueóloga. Estudando vestígios de uma civilização antiga, juntando pedacinhos de cerâmica, instrumentos, cada pecinha para descobrir um pouquinho mais dessa história, desse personagem. Cada pequeno caco de personalidade, juntando até formar uma ideia e dela compor uma pessoa.

E me pergunto o que descobrirei, juntando essas pecinhas tão delicadas, que podem se esfarelar ao mínimo toque, raras e únicas. Impossível saber exatamente. Posso traçar uma ideia e tentar percorrê-la, passar os olhos em cada parte, ligar os pontos, mas nunca, tal qual um arqueólogo, poderei afirmar ter certeza de algo.

A cada novo encontro eu quero saber o que descobrirei. Tento me policiar para não passarmos do horário, mas o tempo insiste em desaparecer quando estamos juntos. Bem como todo o resto da humanidade. Todos desaparecem. Entramos nessa espécie de cápsula e nos perdemos, lutando contra o sono e o cansaço de nossos dias.

E a cada um desses encontros eu aprendo mais sobre você, descubro mais e me dou conta que, naquele passado lembrado por ambos, eu nada sabia de sua pessoa.

E isso é estranho. Não sei o que dizer a você nesta carta, por favor, me perdoe. Dei voltas e mais voltas e praticamente não disse nada. Ou talvez tenha dito tudo o que precisava.

Bom, nem tudo. Estou partindo, saindo do país. Desculpe falar assim de repente, sem preparo. Mas já te conheço o suficiente para saber que você detesta rodeios e enrolação. Então o senso de urgência me pede que te informe assim. Partirei nesta sexta-feira. E quando você estiver lendo estas linhas, estarei bem longe. Do outro lado do Atlântico.

Não se preocupe, não te odeio. Nem poderia, é impossível. Você é agradável, disse-lhe isso várias vezes e você disse-me o mesmo. É, somos parecidos mesmo. ‘O casal perfeito’ segundo alguns. Ouvi isso diversas vezes e imagino que você também.

Bobagem, se nem nós sabemos, como os demais podem querer adivinhar algo sobre a gente?

Preciso ir. Essas coisas acontecem.

Mas se quiser me encontrar, estarei em Helsinque. O endereço completo está no cartão e deixarei uma luz acesa para você, como sempre deixei. Seria impossível apagá-la. Já tentei e falhei.

O táxi chegou. Meu avião parte hoje. Mas deixarei a carta na agência postal no aeroporto. Peço apenas que não me odeie por eu ter partido assim, sem um último abraço.

Sinceramente, sua.

Este texto faz parte do LAB do LEI&A, um de nossos projetos para exercitar a escrita. Conheça os outros projetos e leia mais textos em https://medium.com/l-e-i-a

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, lugares, situações ou pessoas, poderá ter sido mera coincidência.

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Priss Guerrero
L.E.I. & A.

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