Ascensorista

Lucas Balaminut
L.E.I. & A.
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5 min readSep 30, 2015

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Em uma daquelas insuportáveis tardes de verão do interior paulista, a senhora minha mãe me encarregou de levar alguns documentos para um escritório no centro da cidade. Como meu melhor amigo morava por perto, combinamos de irmos juntos e depois parar em um bar da região, para nos refrescarmos com aquela merecida cervejinha. As imagens dos prédios tremiam com as ondas de calor que subiam das ruas e o pó de terra roxa, típico da região, borrava o horizonte.

Era por volta das quatro da tarde e os transeuntes pareciam cansados, abatidos, depois de um longo dia de trabalho. Porém, descemos as ruas do centro animados, conversando e rindo alto, como qualquer outro adolescente com poucas preocupações.

Paramos na frente de um prédio muito antigo. O azulejo faltoso e a tinta descascada revelavam a decadência do lugar. Contudo, estes sinais eram sutis comparados ao cheiro de carpete mofado e o denso ar empoeirado com que os visitantes eram agraciados ao adentrar o edifício. Na apertada e vazia recepção, procuramos pelo escritório: “terceiro andar” — indicava a placa na embolorada parede.

“É aqui.” — concluí com cara de desgosto.

No centro da sala residia um peculiar e vetusto elevador de madeira, um monolítico e restrito caixote envelopado por estruturas de ferro que aparentavam uma jaula. Após brevemente observar vários mecanismos expostos, procurei com os olhos ardidos de alergia por algum botão que chamasse o elevador. Apertei, mas nada aconteceu; sem êxito, percebi que ali encontrava-se o mesmo, mas que a porta de ferro externa deveria ser aberta manualmente primeiro, de maneira que suas estruturas poligonais se contraíssem lateralmente: empurrei-as pro lado revelando o interior do elevador. No canto esquerdo, do lado do painel de botões, um senhor de aparência idosa estava sentado em um banquinho.

Ele era negro, de pele bem escura. Apesar de ser careca, alguns fios de cabelo grisalhos contornavam a lateral de sua cabeça. Vestia um colete de veludo vermelho, com botões de pintura dourada descascada, por cima de uma camisa que provavelmente já foi branca, mas agora era levemente amarelada. Meus olhos se fixaram na chamativa gravata borboleta, também vermelha, com pequenos pontinhos dourados, amarrada de forma levemente oblíqua.

Eu olhava fixamente pra gravata, de forma prolongada e silenciosa. Ao perceber que eu poderia estar sendo grosseiro, me dirigi ao auxiliar:
“Boa tarde. Terceiro andar, por favor.” — tentei ser o mais educado possível pra reparar o breve embaraço.

Entramos no elevador. Como de praxe, me virei de frente pra porta enquanto meu amigo a fechava manualmente.
Este se virou também, mas nada aconteceu. Confuso, olhei pro lado e me deparei com meu amigo encarando o canto.

Aonde deveria estar um velho sentado em um banquinho, um ascensorista que apertaria o botão do terceiro andar, não havia nada. Nada!
Nadica de nada! Meu amigo, chocado, olhou pra mim, olhou pro canto vazio, olhou pra mim novamente e disse “cara… tinha um velho aqui!”

“Tinha! Tinha um velho aí!” — concordei, sem acreditar no que não estava vendo.

“Tinha! Você falou com ele… não falou?”

Paralisado, olhei pro meu amigo e lentamente sussurrei um palavrão.
Ali estávamos: eu, meu amigo, e um velho, ou melhor, a falta de um velho! Um velho que outrora existia, mas agora faltava!

“Cara, você viu um homem careca né? Um velhinho careca! Você viu… né? Careca… ” — indaguei desesperado.
“É! De gravata! DE GRAVATA…”
“BORBOLETA, COM PONTINHOS DOURADOS!” — completei a frase do meu amigo.

Demoramos pra entender o que estava acontecendo, ou o que deveria estar acontecendo mas não estava! Depois de um certo tempo em silêncio, apertei o botão marcado com um três repetidamente, desesperado, frenético. O elevador deu um tranco. Nos assustamos. Este subiu pro terceiro andar, de forma devagar e barulhenta, mas tranquilamente, como se fosse mais uma tarefa rotineira.

Calados, saímos pro terceiro andar e entramos na única sala, marcada com um desajeitado “301” sobre a porta que repousava semiaberta.
Dizendo apenas as palavras “documento” e “obrigado”, deixei um envelope com a secretária que tentava esconder sua feiura atrás de uma quantia excessiva de maquiagem.

Saímos da sala e encaramos o elevador novamente. Estávamos claramente abalados. Normalmente, éramos adolescentes excessivamente tagarelas, sempre proferindo escandalosas risadas. Mas seguíamos quietos, como nunca antes.

Encarei o elevador. Engoli seco e coloquei a mão na maçaneta que mais parecia uma alavanca; hesitei. Encarei meu amigo: “Ok. Vou abrir a porta, se você vir ele de novo… se você vir… se…” — repeti, mas fui incapaz de concluir.

Voltei a encarar a maçaneta.
Fechei os olhos.
Respirei fundo.
Contei até três:

“Um.”
“Dois.”
“Três!” — reuni toda minha coragem e, em um rápido movimento, arregalei os olhos, encarei a porta, e a abri de forma escandalosa!

Nada. Espantosamente nada. Silencioso. Empoeirado. Velho. Porém, ainda vazio. Nada residia naquele elevador. Olhei inconformado para as três paredes encardidas, então para o painel de botões antiquados, e adentrei calado.

Depois de alguns segundos, meu amigo entrou também. Apertei o botão marcado com um “T”. Durante toda a lenta e barulhenta descida do elevador, encaramos o canto estranhamente vazio. Chegamos no térreo. Com um estrondoso barulho de ferro rangendo, alguém abriu a porta, nos encontrando de olhos arregalados, encarando o canto vago.

“Anda. Sai do caminho.” — disse o homem, com muita pressa e pouca educação.

Saímos do elevador e andamos quietos em direção ao bar. Passamos a noite inteira bebendo e discutindo o assunto. Cada detalhe lembrado valia ouro!
De forma cautelosa, eu sempre pedia pra que ele completasse os detalhes, pra confirmar se realmente vimos a mesma coisa.
Depois de debater, rebater e repetir exaustivamente cada pequeno pormenor, concluímos que era empírico, inegável: havia acontecido.

Mas exatamente o que havia acontecido? Deu-se início às especulações. Fantasmas? Aparições? Poltergeist? Materialização do imaginado? Histeria coletiva?

Depois de exaurir todo nosso conhecimento limitado de mitos da cultura popular, concluímos que estávamos expostos às mesmas referências pois sempre compartilhávamos livros, jogos, filmes, e séries de TV; seja o que for, se um foi exposto, o outro também foi. Afinal, éramos melhores amigos e adorávamos compartilhar conteúdo. Por isso, era esperado que imaginássemos algo muito parecido ao receber os mesmos estímulos, inconscientemente baseado nas mesmas referências. Como uma fórmula matemática: mesma base cultural exposta aos mesmos estímulos resultaria na mesma resposta imaginativa.

Imaginamos algo muito parecido. Tinha que ser isso! Tinha que ser!
Era a única explicação.

Imaginamos algo parecido. Tinha que ser! Era a única explicação.

Imaginamos parecido… única explicação.

Imaginamos… mas… e se?

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Lucas Balaminut
L.E.I. & A.

Pesquisador, professor e doutorando na Universidade de Illinois. Analista Financeiro. Contador. Podcaster no Pod Isso e no Mundo Freak.