O Abismo (Flying High) — Parte 3
Aquela não seria a primeira vez que Erick usaria o capacete ultrassônico. Na semana anterior, treinou diligentemente todos os dias no túnel de vento, buscando se acostumar com os feedbacks vibratórios e sonoros emitidos pelo dispositivo. Utilizando-se de microfones auriculares e micromotores, o usuário do capacete era capaz de perceber o momento em que se aproximava de qualquer pequeno obstáculo. Isto era obtido pelo acionamento de sinais sonoros, quando a distância era maior que dez metros, e em conjunto com os micromotores, a distâncias menores.
Mensurar a distância entre o usuário e os obstáculos era relativamente simples, e a tecnologia era a mesma empregada nos sonares. Sensores dispostos em múltiplas posições emitiam sinais sonoros em alta frequência, que eram refletidos nos objetos ao redor do capacete, e mediam o tempo decorrido para determinar as distâncias entre o equipamento e os obstáculos. No entanto, o grande diferencial deste equipamento eram os micromotores, em número de quatro, sendo um localizado próximo de cada orelha, um na nuca, e o último na parte frontal do capacete. Dependendo de onde — e a qual distância — estejam os objetos ao redor do capacete, um determinado conjunto de motores é acionado, aumentando a vibração à medida que o usuário vai se aproximando dos obstáculos. Essa função conferia ao portador do capacete a habilidade de se deslocar em qualquer ambiente de olhos fechados, sem esbarrar em nada próximo a si. Era uma tecnologia desenvolvida inicialmente para os deficientes visuais, mas com potencial de auxiliar até quem não as possuía.
Subitamente, o vento começou a soprar com mais intensidade no topo do Monte Agulhão, ao ponto de desequilibrar Erick, que ainda apoiava o capacete ultrassônico em suas mãos, pronto a vesti-lo. Seguida do vento, veio uma forte vibração que o tirou do estado de torpor em que se encontrava. Ao se voltar para trás, percebeu que tratava-se do helicóptero da equipe de segurança se aproximando cuidadosamente do monte. Neste instante, veio à sua mente o pensamento de que algo estava errado, e que aquele salto não aconteceria como o planejado.
A reação de Erick ao que estava observando não poderia ser outra exceto a de puro espanto pois, de dentro da aeronave, seu amigo Miguel gesticulava descontroladamente e gritava com todas as forças: — Não salte! Seu maluco, não salte!! Vou descer aí, agora.
Miguel começou então a descer pelo cabo-guia do helicóptero, balançando fortemente de um lado para o outro devido à força do vento e trazendo consigo uma pesada mochila nas costas. Assim que tocou o solo, sentiu a mão de Erick segurando-o pelo ombro, ainda atônito pela situação, dando-lhe apoio para que não caísse. Nesse momento, o ajudante que estava na aeronave recolheu o cabo e amarrou nele uma maleta de alumínio, descendo-a em seguida. Dessa vez, prendeu um pequeno peso metálico em sua extremidade, a fim de estabilizar a descida da mala, o qual foi agarrado por Miguel e Erick praticamente ao mesmo tempo. Em segundos, o equipamento alcançava o solo, liberando o piloto para retornar à base. As correntes de ar aumentaram de intensidade e não era mais seguro manter o helicóptero naquele cume.
— Vamos para a tenda, preciso lhe mostrar uma coisa — disse Miguel para o amigo, puxando-o pelo braço.
— O que houve? Por que está aqui? E sua perna…
— Ainda dói um pouco, mas não me impedirá de saltar. — respondeu displicentemente Miguel, arfando devido ao esforço repentino.
— Você o quê?! Não pode, não deixarei que faça isso nas suas condições. — replicou Erick, parando de frente para o recém-chegado.
— Vamos para a tenda, e lá te explicarei tudo. — disse Miguel, retornando a andar, sendo seguido logo atrás pelo incrédulo amigo.
Ao entrarem na cabana, Miguel foi logo abrindo a mochila e sentando no banco em frente à uma grande tábua que servia de mesa, onde depositou alguns documentos e uma pequena placa de circuito eletrônico.
— Veja! — disse ele olhando para Erick e apontando para os documentos sobre a mesa improvisada — é por isso que você não deve saltar ainda. A Techson detectou um bug no módulo do sonar, exatamente quando objetos em alta velocidade se aproximam do capacete!!
— Era justamente o que eu ia testar hoje, mas naquela descida mais livre, a da direita. — respondeu Erick, com um leve tom de ansiedade na fala. — Mas como você soube disso? Eu nunca te mencionei sobre o capacete, pois tinha certeza que não me deixaria saltar sozinho, sem a sua companhia.
— E de fato não deixaria, essa é uma ideia insana, esse equipamento é um protótipo ainda e você não é piloto de testes! Acabei descobrindo porque eles tentaram te avisar e, óbvio, não conseguiram porque você estava aqui bancando o Demolidor!! Daí me acharam entre alguns e-mails que trocamos com um dos nossos patrocinadores em comum. E, depois disso, cá estou eu tentando salvar sua vida. A propósito, de nada.
— Eu não sei o que dizer, meu amigo, só posso realmente te agradecer. Só você mesmo despenderia todo esse esforço pra vir aqui me avisar. — Erick tentava esconder a emoção, já estava ansioso e não queria agitar ainda mais Miguel.
— Tudo bem, agora deixemos de sentimentalismos bestas, e vamos trabalhar! Precisamos substituir o módulo do sonar por essa placa, e depois aplicar um update no software do capacete. Quando pretendia saltar?
— Amanhã logo ao amanhecer, é quando a previsão do tempo está mais favorável.
— Perfeito, dará tempo. Que venha o amanhecer! — disse Miguel, com um imenso sorriso nos lábios.
No fundo, ele estava adorando toda aquela adrenalina, somada à alegria de estar livrando Erick de um grande perigo. Ainda por cima, participaria desse momento único na história do paraquedismo. Agora que sabia desse projeto, não perderia por nada essa oportunidade. Saltaria junto com o amigo no dia seguinte.