Composição by @prissguerrero1

O Voo de Caburé

Priss Guerrero
L.E.I. & A.
Published in
3 min readFeb 20, 2016

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Aí o Caburé estava doido, correndo feliz pela mata, pulando pedras com seus grandes pés descalços, penachos nos tornozelos farfalhando a mata, puxando e esticando galhos, braçadeira de couro de paca trançada e apertada, pintura de festa pelo corpo, pendurava-se num cipó, equilibrava-se no tronco de buriti, fingia voar como uma arara entre as folhas.

Subiu o grande morro, dependurou da pedra e saltou no infinito azul, desaguando-se junto à grande piscina natural, que vinha do rio maior ainda, que do alto daquela colina produzia um chuveiro cristalino que engrossava aos poucos.

No mergulho fundo, cutucou uns peixes com sua lança e saiu do espelho d´água, nadando, correndo, com os espetos do almoço, sacudindo a cabeleira, arrumando a tiara trançada de conchas, penas molhadas e pedrinhas coloridas que havia ganhado pelo seu panguatá, o ‘dia de virar homem’, no idioma de sua tribo.

Chegou à oca, sentou na pedra, puxou a faquinha e limpou os carás-brancos, tirando escama, cortando cabeça, pegando folha para embrulhar, atiçando fogo e já largando os comes lá, indo pegar os bebes no pote, hoje era festa, o Panguatá de Caburé!

Os demais viam-no e sorriam, sabiam que o pequeno almejava aquela ocasião fazia muito tempo. Era sempre bom ter uma festa na aldeia, ainda mais quando era de alguém tão querido como Caburé: isso fazia o mel ficar mais doce ainda.

A noite veio depressa, a fogueira estava enorme e os ritos começaram, feliz e cantarolante, o futuro guerreiro ou pajé, não se sabia ainda, dançava, sacudia os chocalhos, pintura de festa pelo corpo, coroa de penas de araras azuis, vermelhas e amarelas, que da cabeça desciam pelas costas, culminando numa cauda de pequenas penas de coruja branca; virava, contorcia, clamava pelos deuses por força, coragem e outras boas qualidades.

Jaci, a grande lua, presenciava tudo, quando a coruja passou, piou, todos gritaram: “uhuuuu uhuuuu ubuuuu uhuuuu uhuuu”, uma estrela se desprendeu do céu, seguida por outras menores, que giravam ao seu redor e passou, ali, durante o panguatá de Caburé, no instante que o mesmo olhou para o alto e seus olhos se cruzaram com os de uma emplumada ave rapineira e num raio de Tupã, que cortou árvores e veio ziguezagueando como uma cobra doida, fez os dois corpos desaparecerem.

E a tribo dispersou, assustada e apavorada, não era assim que deveria ter seguido a noite, iam comer, beber, fazer as preces, as lutas e os desafios e Caburé seria determinado como guerreiro ou pajé. Não, nada disso ocorreu, ele desaparecera, Tupã o levara? Uns diziam que sim, outros que isso era obra de Jaci, pois Caburé era moço formoso que a Lua se apaixonara.

Caburé via tudo isso, do alto de uma árvore, assustado, nada podia dizer, não podia falar e explicar que era magia, magia da estrela, que o fez se fundir com aquela corujinha, que estava triste pela vida que levava e naquele instante, desejou ser humana e deu tudo errado. Se misturaram, pessoa e pássaro, formando um ser apenas, ora espírito, ora ave.

Era claro: se o Panguatá tivesse acontecido até o fim, Caburé seria o novo pajé da tribo.

Experimentou o voo desajeitado a princípio; depois certeiro e preciso de uma coruja deveria fazer, indo em direção à Jaci, pedindo que esta intercedesse por ele. Mas foi em vão, pois quem apareceu foi Tupã, que o pegou suavemente, como quem pega uma fruta madura e delicada, o acolheu e o confortou:

“Meu menino Caburé, serás meu vigia agora.”

E assim foi, desde 1652.

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Priss Guerrero
L.E.I. & A.

Ilustradora-viking-nerd-exploradora-aventureira-bizarra.