Os Sinos de Aparecida
Sentada na janela do ônibus, Raquel contemplava a meia-lua no céu noturno estrelado e com poucas nuvens, enquanto se dirigiam ao local do próximo show. Neste mês, completaria seis anos de trabalho na Stratus Casting, dos quais os dois mais recentes como instrumentista na função de guitarra base. Devido a um golpe do acaso, acabou por ocupar o posto do Leishman, que foi convidado para trabalhar na produção da trilha sonora de um filme e gostou tanto da experiência, que decidiu se dedicar exclusivamente a esta tarefa. O sucessor natural seria a Aninha que inclusive já tocou na banda em situações esporádicas, e conhecia a maioria das músicas e letras do grupo. Porém, Aninha engravidou e preferiu continuar ajudando a Stratus como compositora, trabalhando de casa e se dedicando mais à educação dos filhos. O chacoalhar descompassado do ônibus causava em Raquel uma leve sonolência, mas ainda assim permitia-lhe refletir acerca da passagem do tempo, tão acelerada nos últimos anos devido ao ritmo de trabalhos e viagens constantes. Sentia como se fora ontem que começou a acompanhar aquela banda de metal melódico, ajudando como roadie do grupo. No início, o trabalho era duro, tratavam-na basicamente como uma estivadeira de instrumentos musicais e amplificadores, carregando maletas e cabos de um canto para o outro. Nem sequer deixavam-na ligar os aparelhos à energia, temendo que fossem danificados. Somente após vários meses nesta tarefa é que ganharam confiança na nova integrante da equipe e enfim ela recebeu autorização para realizar a conexão e configuração dos equipamentos, ajudando até na passagem de som. E foi justamente nesta época como assistente técnica que Raquel mais aprimorou seus conhecimentos, pois acabava por ajustar praticamente todos os instrumentos, desde as guitarras, passando pelo baixo, até por fim os teclados. Ela aproveitava intensamente estes momentos para sugar todos os conhecimentos dos técnicos mais experientes, pois mal tinha contato com os membros da banda; eles só apareciam poucas horas antes das apresentações e em geral viajavam de avião ou em outros ônibus, em companhia de apenas alguns técnicos mais chegados e ocasionalmente do produtor comercial. Com o Maycon, Raquel aprendeu como eliminar ruídos brancos e a trabalhar com distorções nos equipamentos; Zeca ajudou-lhe na montagem e calibração das mesas de som; Lúcio lhe transmitiu dicas preciosas sobre segurança e prevenção de acidentes, tanto elétricos quanto físicos durante a montagem do palco; mas foi com a Aninha que recebeu os mais valiosos ensinamentos, aperfeiçoando-se bastante nos princípios da teoria musical, os quais lhe permitiram enfim conquistar um lugar dentre os artistas da Stratus Casting. Por coincidência, este mês também constituiria um marco para a banda, que completaria dez anos de existência. O local escolhido para a comemoração foi Aparecida do Norte, onde ocorreu a primeira apresentação do grupo e que também é a cidade de nascimento dos líderes da Stratus. Era pra lá que estavam todos se dirigindo, sendo que dessa vez Raquel viajava junto daqueles que por muito tempo ela admirava como fã e hoje atuava de igual para iguais, como companheira de palco. Um sonho realizado, pelo qual ela arduamente batalhou e agora colhia os benefícios de todos os sacrifícios feitos em prol da carreira. Sua vocação era a música, seu prazer era sentir a vibração do público cantando e pulando ao som das guitarras e da bateria furiosa do Pedro Picket. A proximidade com os integrantes da banda trouxe também uma maior intimidade à Raquel, ao ponto em que lhe foi dada a alcunha de Red Rapunzel, devido ao seu longo cabelo ruivo e ondulado. Todos na Stratus possuíam um nome artístico e com ela não seria diferente. O autor do codinome foi o próprio Alex, vocalista e líder da banda, vulgo Alex Aleph. Além do curioso hábito de batizar os colegas com nomes começando por letras repetidas, Alex também carregava algumas idiossincrasias: sempre estava vestido dos pés à cabeça, raramente tirava a barba ou cortava os cabelos acima do ombro, e nunca viajava ou se apresentava durante a lua cheia. Além disso, retirava-se cedo para sua cabine exclusiva no ônibus, separada e com tranca na porta. Corriam rumores que ele participava de rituais satânicos, porém disso Raquel duvidava, pois nunca o vira sequer mencionar algo a respeito. Os demais membros nunca tocavam nesse assunto, simplesmente desconversavam quando ela perguntava. De repente, um súbito solavanco fez Raquel despertar do seu torpor, dando-lhe a impressão de ter visto um vulto atravessando rapidamente o corredor e se dirigindo para o segundo andar do ônibus. Ao longe, ouvia-se o badalar dos sinos da Basílica de Aparecida, sinal que deviam estar bem próximos de chegar ao seu destino. Mas aquele vulto despertou nela uma vontade irresistível de subir a escada e saciar sua curiosidade; afinal, era o Alex um adorador do Capeta? Ela se divertia pensando nessa absurda possibilidade, se bem que o real interesse dela era outro. Aquele homem misterioso e sedutor despertava-lhe desejos, ainda mais intensificados pelos longos meses em turnê e poucos momentos de descanso. Precisavam cumprir uma pesada agenda de shows e raras eram as oportunidades de se divertirem, mais difícil ainda de confraternizarem juntos. Nesse caso específico, bastante juntos. Raquel tomou então a decisão: subiria ao encontro do Alex. E assim foi, aproveitando-se que os demais colegas de banda ainda dormiam e transpôs a escada fazendo o mínimo de barulho possível. A porta da cabine não estava trancada, apenas encostada, facilitando-lhe o trabalho já que não precisaria bater e correr o risco de acordar os outros. Empurrou-a suavemente e entrou no recinto, fechando a porta também sem fazer barulho. Sobressaltou-se quando os olhos se acostumaram com a escuridão e percebeu Alex encarando-a com um olhar intenso e amarelado. — Você não deveria ter vindo aqui me ver, Rapunzel. — sussurrou Alex, com aquela voz rouca característica. — Por que não, Alex? Eu sei que você me deseja e eu também te quero; vamos acabar logo com essa tensão entre nós. — disse Raquel, com um misto de tesão e medo, pois Alex se aproximava lentamente dela, deixando transparecer gotas de saliva escorrendo pela boca. — Você não sabe no que está se metendo, saia agora! — ordenou Alex, dessa vez num tom de voz mais alto e ríspido. — Alex, eu, eu… você está me assust… — não deu tempo de Raquel terminar a frase, apenas sentiu uma forte pontada no pescoço, seguida pela tontura e o cambalear das pernas, no que foi apoiada por Alex até finalmente se sentar no chão, com ele segurando-a por trás ao redor do tórax. — Desculpe, minha querida Rapunzel, não pude me conter… se você esperasse só mais um pouco, eu estaria caçando nos arredores de Aparecida, não precisaria fazer isso contigo. — falou Alex, olhando ternamente nos olhos de Raquel. — Você, eu… nós… eu vou morrer? — a voz saía com dificuldade, entrecortada por algumas respirações mais profundas. Raquel ouvia ao longe o sino da Basílica, e sem saber como, ainda conseguiu contar quatro badaladas. — Não sei, minha querida, eu te mordi somente por alguns segundos e bebi pouco sangue. Mas até hoje, apenas uma pessoa sobreviveu à uma mordida antes da lua cheia e você está olhando pra ele agora. Porém, se eu tivesse sugado todo o seu sangue, você já estaria morta. — disse Alex, agora já com os olhos retornando à cor normal e tentando transmitir um resquício de esperança à moça apoiada em seus braços. Ele necessitava adiar a transformação, mesmo que por alguns dias, pois o show de aniversário precisava acontecer; se eles cancelassem por causa dele, o prejuízo seria de milhões devido às perdas de patrocínios e multas contratuais. Seria o fim da Stratus para todos. -Por quê, Alex… fez isso, comigo?? Antes que Alex pudesse responder e explicar seus motivos, Raquel desfaleceu à sua frente. Entretanto, ele podia sentir sua fraca respiração e seus batimentos descompassados. Sua querida Rapunzel ainda lutava pela vida, mas havia pouco que ele pudesse fazer exceto esperar. O dia logo amanheceria e então Alex descobriria se sua sede de sangue fora responsável por tirar a vida da sua amiga, ou se ela se tornaria sua mais nova companheira de caçada.
Este texto faz parte do Desafio do Mês LEI&A (texto feito a partir de um tema dado pelo grupo este foi: música e terror), um de nossos projetos para exercitar a escrita. Conheça os outros projetos e leia mais textos em https://medium.com/l-e-i-a