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Senhor Jones

Priss Guerrero
L.E.I. & A.
Published in
8 min readNov 23, 2015

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Chegou finalmente às suas novas terras. Há algumas semanas havia se reunido com os advogados num luxuoso hotel e conseguiu fechar o negócio. Gente complicada de dobrar, mas com muito empenho, ele conseguiu abocanhar aqueles lotes e agora estava com poeira vermelha em suas botas, desfrutando aquela paisagem torrada de sol, aquele nada contínuo e acidentado.

Uma loucura gastar tanto dinheiro assim, justo agora que o presidente Nixon renunciou. Ninguém sabe como a economia vai ficar, como o país vai ficar, mas para o Senhor Jones, isso pouco importa. “Dinheiro chama dinheiro.” Dizia a si mesmo sempre que alguém tocava nesse lastimável assunto.
Caminhava entre as velhas casas de madeira, destruídas pelo tempo. Seu secretário, Norman, caminhava ao seu lado e tomava notas de tudo que seu patrão lhe falava e apontava. Jones parecia não sentir o sol calcinante, nem o ar seco. Chegou finalmente aos escombros do que antes era a igreja do local.

Olhava a cruz pendurada, quase caindo, as tábuas podres fechando as janelas e portas, mato seco por todos os lados. Virou-se para Norman e disse: “Quero isto no chão até o final da semana.” Continuando seu passeio, chegou à fonte no centro da cidade. Ainda havia alguma água brotando ali, pelos encanamentos entupidos e carcomidos pelo tempo. “Quero isto limpo, funcionando e restaurado, Senhor Norman.

Chegou a um velho armazém, limpo, com madeiras boas, destoando de toda aquela velharia e pilha de escombros que se tornara o local. Potes de conservas nas prateleiras, todas as latarias reluzentes e em ordem. O chão limpo, as sacas de feijões do lado de fora, tomando sol.

– O que é isto, Senhor Norman??

– O velho armazém, senhor Jones. — respondeu o secretário, consultando suas anotações e enxugando o suor da testa com um lenço. Sabia que depois dessa resposta viria outra pergunta e isso o desanimava um pouco, a região era quente e o sol os castigava. Queria sair logo daquela vistoria.

– Não parece velho, Senhor Norman. Como explica isso?

Norman não tinha explicação. Para seus olhos, o armazém estava como os demais prédios, com madeiras rachadas, faltando telhas, cheio de poeira e buracos por todos os lados, com mato crescendo. Norman não entendia seu patrão e conhecendo seu gênio explosivo, tentou contornar a situação:

– Senhor Jones, está muito quente hoje e estamos caminhando desde que chegamos. Não seria prudente irmos até o rancho dos trabalhadores e procurar algo gelado para beber?

– Vejo um prédio novo aqui, Senhor Norman!

– Está anotado, senhor, iremos restaurar este edifício, ao seu gosto.

– Mas… como é… Senhor Norman… eu… o que…

– Venha, Senhor Jones, vamos beber algo bem gelado e sair desse sol. O deserto não foi feito para homens do Norte. Venha, venha…

Saíram de lá e foram até o rancho. Jones olhou pelos ombros e viu o prédio em ruínas.
Talvez ele tenha razão, aquele deserto era famoso por causar alucinações, muitos morreram tentando chegar ao pequeno vilarejo, especialmente após os incidentes estranhos ocorridos entre 1890 e 1900. Não quero ser mais um na conta deste lugar.

Em quinze minutos de caminhada, chegaram ao rancho dos trabalhadores, onde alguns deles tomavam limonada gelada e se protegiam do sol. Um jarro lhes foi servido pela copeira em uma mesa, onde se sentaram. Serviram hambúrgueres, pão, ovos, bacon e batatas cozidas, almoço padrão do lugar.

– Quero uma nova caixa d’água, no mesmo estilo da antiga. E quero que derrubem as lojas da esquerda, aqueles prédios estão muito estragados. Aproveitem as fundações, se for possível e construam novos.

– Sim, Senhor.

– Também quero o hotel, como uma estalagem antiga. Contrate especialistas, quero o mais fiel possível. Faça a casa do ferreiro no local onde era a original. Esse prédio ainda está bom, não está?

– É um dos poucos mais inteiros, senhor.

– Ótimo! A destilaria também! Esse último negócio foi complicado e quero fazer valer todo o dinheiro investido. Avise aos funcionários que não serão demitidos, receberão férias remuneradas enquanto reformamos o local. É o único prédio que fica próximo da outra cidade, não é? Isso facilita as coisas. Vamos reformar a estrada que vem de lá. É mais curta e segura.

– Como quiser, senhor. Mas e o cemitério?

– Ah, o cemitério…

Norman sabia que seu patrão não gostava de tocar nesse assunto. A destilaria fora difícil de comprar por causa dos herdeiros, mas o cemitério, parecia impossível e a loucura não estaria completa sem o mórbido local. Ricos são extravagantes e Jones não era diferente. Quando ouviu as histórias dessa vila no deserto, pensou que era apenas conto para crianças travessas. Fora seduzido e agora não havia volta. Empenhou parte de sua fortuna comprando o lugar. Mas a pasta do cemitério custou caro: precisou cobrar muitos favores de políticos, que deviam suas eleições à sua família, conseguiu alterar leis e se desviar de impostos, encontrando brechas graças aos melhores advogados do país. Para as poucas famílias remanescentes, daqueles alí enterrados, Jones pagou boas quantias em indenizações. Foi um negócio caro. Não conseguia trabalhadores para arrumar o campo santo.

As lendas e histórias eram conhecidas por todos os moradores da região e o cemitério era considerado maldito. Ninguém queria trabalhar lá, tinham medo do fantasma da tumba de pedras. O homem que desapareceu num daqueles eventos estranhos de 1890, um tal de Robert Evans.

– Traremos gente de longe para fazer esse serviço. Monte um acampamento se for preciso, traga essas pessoas e não as deixe saber das lendas. Cuide disso, Senhor Norman.

– Com certeza, senhor. Vamos até o cemitério? É a última parada de nosso roteiro para hoje.

Antes que pudesse responder, um grupo de trabalhadores dispara até o rancho, sujos de terra, farpas de madeira e um pouco de lama. Gritam:

– Achamos outro! Achamos outro!!!! Mais uma daquelas coisas!

– Não acredito! De novo? Vocês só trazem esses lixos, trabalhar que é bom, nada!

– Rosana, não deboche! É sério! Estávamos escavando perto dos estábulos e achamos outra coisa daquelas! Essa é das grandes!

A cena se desenrolava diante de Jones e Norman, que eram ignorados pelos trabalhadores. Rosana, a engenheira contratada estava almoçando quando seus subordinados chegaram. Largou a comida no prato e correu com eles. Sequer notou que seu contratante estava lá, observando tudo. Seguiram-na a passos largos, tentando não perdê-la em meio aos montes de madeira e materiais de construção. Quase vinte minutos de uma corrida louca, chegaram ao local das escavações.

O grupo de trabalhadores no chão, acocorados, discutindo nervosos, Rosana em meio a eles, medindo com uma trena, anotando em seu caderno, fazendo alguns cálculos, manda trazerem o guincho. precisavam tirar aquela lage de pedra dali e colocar junto às outras 3 que haviam encontrado em outros pontos.

– O que tem nesse?

– Não sei, não dá para ver.

– Acho que é aquela marca de novo!

– Não, deve ser uma estrela dessa vez! Tem bolas demais!

– Não seja tolo! Só uma e pequenininha que achamos com uma bolinha, homem!

– Calem-se! Estou tentando pensar! Onde está a droga do guincho?

– Já está chegando, Rosana! Calma!

O guincho estava mesmo perto e os trabalhadores ajustavam as correias e faziam os calços, para que ele entrasse e puxasse a pedra.

Laçaram o objeto, prenderam-no e começaram a puxar, conforme os cálculos de Rosana. A máquina se esforçava, rangia, gania, soltava fumaça. Aquilo era pesado. Uma pedra plana, com 55 cm de altura por 1,80 m de comprimento e 80cm de largura. Era uma tampa de pedra, mas abaixo dela, nada havia, apenas mais terra, como em todas as outras. Colocaram a lage num caminhão para levarem dali.

– Ei! O que é isso?

– Uma pedra grande e estúpida, que só atrapalha meu serviço. Quem quer saber?

– Mais respeito, moça! Este aqui é seu patrão! O dono de tudo isto!

– Ah, Senhor Jones! O famoso e misterioso senhor Jones! Bem-vindo ao sítio das coisas malucas enterradas. Sou Rosana Lars e o senhor deveria ler meus relatórios.

– Ora, essa! Que debochad…

– Cale-se, Senhor Norman. A senhorita Lars é a melhor engenheira que poderíamos contratar e não quero perdê-la por bobagens. E ela tem razão, não fiz o dever de casa.

– Desculpem.

– Bom, já que eu não li relatório algum, poderia me colocar a par do que está acontecendo?

– Muito bem, esta é a quarta peça que encontramos durante as escavações. Cada uma possui um símbolo e um número peculiar, são de tamanhos distintos, essa é a maior que encontramos.

– O que os especialistas dizem?

– Não chamamos ninguém. Não recebemos retornos dos relatórios, lembra-se?

– Enfim, Dave já limpou a peça para vermos e tem… ora, veja só! Essa é uma história em quadrinhos completa!

Observavam a peça e identificaram um sol primitivo, uma esfera, um quadrado, um homem alto, um homem mais baixo, um lobo com sorriso e um número gravado na pedra, abaixo da cena aparentemente desconexa.

– 555…

– É, chefe, todas têm esse 555. Mas só essa tem todos os outros símbolos juntos. Achamos mais 3 pedras assim, planas e gravadas: uma tem os dois homens e o lobo sorrindo, que é bem estranho. Talvez seja de estimação.

Rosana era uma pessoa de humor ácido e os trabalhadores adoravam-na por isso. Não era uma dondoca, era como eles: prática, objetiva e ria das adversidades diárias naquele campo de trabalho. Jones contudo não achou graça, olhava atentamente para ela, que engoliu a piada a seco e continuou:

– Havia uma com o sol primitivo e um homem baixo. Outra com a estrela e o homem alto e a terceira pedra, com a esfera acima do quadrado e um homem baixo. Mas todas continham um 555 gravado nelas.

– Quero especialistas nisso. Senhor Norman, mande trazerem os melhores. Senhorita Lars, acomode essas pedras em local seguro. Podemos estar diante de algo grande aqui.

Ao ouvir isso, a mente afiada de Rosana formulou: “Estamos diante de uma grande tolice, perda de tempo e mais um atraso no cronograma, isso sim! Mas se esse excêntrico quer continuar me pagando, agora para juntar pedrinhas, pois bem, dinheiro é sempre bem-vindo!” E sua boca apenas proferiu um singelo “Sim, chefe. Construiremos um galpão para guardá-las.”

– Ótimo, senhorita! Um galpão seria perfeito! — completou com muito entusiasmo e um brilho insano nos olhos, enquanto se virava para o secretário e ditava novas ordens:

– Senhor Norman, não deixe nada de fora das anotações. Vamos, ainda precisamos ir ao cemitério ver o estado daquele local. — Jones estava agitado e caminhava a passos gigantescos em direção ao estacionamento, deixando Lars para trás com suas novas tarefas.
Pegaram uma das caminhonetes e o motorista os levou até o cemitério da cidade. Norman e Jones caminhavam entre os túmulos, velhos e tomados pelo tempo. Nomes gravados em granito carcomidos pelo tempo. Velhas famílias que já haviam desaparecido ou que os descendentes não estavam mais lá.

Muito mato crescido, alguns corvos nas árvores do local. Jones caminhava um pouco à frente, a trilha se estreitava até chegar a um descampado. Nada crescia ao redor daquele túmulo. Era a tumba do fantasma famoso, a cruz de madeira trazia seu nome, nascimento e possível morte. Normal, como a maioria daquelas cruzes e lápides, se não fosse por um detalhe, gravado na madeira, arranhado e nítido. Jones, tremendo, respiração ofegante, suor escorrendo pelas têmporas, abaixou-se, com olhos arregalados e leu aquela inscrição: — 555…

O céu pesou sobre sua cabeça, o ar desapareceu, o coração disparou sem aviso, sentiu-se tonto e desmaiou ao lado daquela tumba.
Ao Senhor Norman só restou amparar seu chefe e gritar por socorro, naquele lugar ermo, obscuro e abandonado, onde nada havia, exceto uma figura pálida, que ao longe observava com seu sorriso amarelo e pontiagudo.

Este texto faz parte do desafio LEI&A mensal, um de nossos projetos para exercitar a escrita. Conheça os outros projetos e leia mais textos em https://medium.com/l-e-i-a

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Priss Guerrero
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