Pandemia e pesquisas remotas: 7 pontos que irão te ajudar a desmistificar a etnografia virtual

M. Vicente
La Distopista
Published in
8 min readApr 12, 2021

Agradeço ao meu irmão antropólogo, Mateus Vicente, por responder à tantas perguntas.

Get out of the building eles disseram. Até que chega 2020 e tudo muda para o Stay safe, stay home. Nesse imbróglio há pesquisadores que continuaram suas rotinas normalmente executando pesquisas sem parar! Pesquisa, pesquisa, pesquisa. Dados, dados, dados! Mas tem uma turma que decidiu olhar pra esse cenário trágico e rever seus conceitos. ​​​​​​​

​​​​​​​Hoje nós vamos apresentar um grande resumo de textos que foram produzidos a respeito do fazer pesquisa em tempos de isolamento.

Unidas pesquisaremos!

A etnografia virtual nos cai como uma luva, mesmo ainda que gere certo incômodo. Neste contexto tão novo para todos e todas, pessoalmente, pude perceber uma grande contribuição vinda das trocas entre universidade e corporações.

A primeira traz os métodos que nos permitem repensar o contato face-a-face sem perder o rumo, a segunda contribui com a experiência tecnológica e praticidade.

Tem preocupações sobre dilemas éticos e morais, não sendo possível viradas metodológicas bruscas.

Há necessidade de especialização e por isso demanda mais tempo. O movimento mais comum é consumir as teorias (aprender o que já é sabido), vai a campo (verifica na realidade), e retorna a teoria (leitura crítica e validação de hipóteses).

Podem experimentar com maior velocidade e mudar conforme o contexto, em contrapartida, é necessário entrega de resultados rápidos, ainda que menores.

Não há necessidade de especialização, assim o hábito comum é gerar dados e conclusões de maneira prática, muitas vezes sem beber do capital cultural (1) da própria empresa ou da sociedade em si.

Dito isso, essa troca entre instituições nos permite olhar pela perspectiva do “meio copo cheio”, não temos então um problema, temos aqui a chance de rever nossas crenças e paradigmas a respeito da pesquisa por meio de ferramentas virtuais. Então vamos refletir sobre isso retomando alguns fundamentos básicos.

Etnografia virtual

A Etnografia Virtual busca usar ferramentas online para entender os mundos virtuais e certos aspectos de comunidades na “vida real”, considerando a virtualidade como um fator a mais a ser analisado. Sobre ela listamos os principais pontos positivos e negativos:

*É importante questionar a nossa própria capacidade de perceber esses sinais, mais a frente falaremos disso.

Netnografia​​​​​​​

Assim como a Etnografia Virtual, a Netnografia é um ramo da Etnografia. Se preocupa com as interações naturais que ocorrem especificamente em grupos online, ou seja, a comunicação mediada por computador é sua principal fonte de dados. Estuda-se: redes sociais, fóruns, blogs etc.

[A Netnografia] é uma etnografia do que a gente quer mostrar na internet.
(
Carlos Vladimir Zambrano | Universidade de Cádiz — LASA FORUM)

Etnografia Virtual + Netnografia

Em seu livro Netnografia: Realizando Pesquisa Etnográfica Online, Robert V. Kozinets foi pioneiro em desenvolver uma abordagem metodológica considerando as relações construídas nos ambientes virtuais.

Para isso, discute um pouco sobre as metodologias tradicionais e evolui pra uma abordagem mais moderna. Na construção desse caminho teórico, o autor sugere três pontos fundamentais a serem considerados ao fazer uma pesquisa por meios virtuais.

Integração vs. Separação de mundos sociais.
Quão parecidos são os comportamentos virtuais e face-a-face?

Observação vs. Verbalização de dados relevantes.
Quão importante é a observação repetida de comportamentos fisicamente manifestos em vez de comportamentos articulados verbalmente?

Identificação vs. Desempenho dos Membros.
Quão importante é relacionar esses membros com sua individualidade demográfica (idade, gênero etc)? Sua ação e comportamento não são suficientes?

Agora que relembramos todas os fundamentos…

Vamos aos 7 pontos que irão te ajudar a desmistificar a etnografia virtual!

​​​​​​​Depois de ter conquistado a garota, ele contou aos amigos que havia se dado bem pois estava “no terreno dele”, falando sobre sua facilidade em se comunicar pela internet.

​​​​​​​Você também conhece alguém que se dá melhor na paquera digital? Ou que prefere tratar de temas difíceis pela internet?
Pois bem, a etnografia virtual pode se aproveitar dessa peculiaridade humana para criar intimidade entre interlocutores.

Pode ser mais fácil a construção da relação por meios virtuais, uma vez que a barreira entre ambos é o próprio meio de comunicação.

É como um furinho no muro onde os olhares só se cruzam se ambos quiserem.

O meio digital é um dos lugares onde a pessoa vive.
Elisabetta Costa — Remote Ethnography: Doing Anthropology Digitally | ABv & LaSSA Webinar

A pessoa é um documento, é uma fonte secundária.

A história oral é uma metodologia de pesquisa que consiste em realizar entrevistas gravadas com pessoas que podem testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea.

Abordagens online exigem maior observação do que as face-a-face; por você não estar presente em loco a cotidianeidade segue seu fluxo quase normal.

Porém o impacto da virtualidade será um elemento a mais a ser considerado no momento de convergir ou sintetizar.

Cresce a importância do planejamento. Teremos de dar mais consistência aos instrumentos metodológicos, marcos e hipóteses, assim será mais fácil trabalhar com todas as variantes, possibilidades e estímulos da pesquisa virtual.

Dica do Robert Kozinets:
Métodos deveriam sempre ser guiados pelo foco da pesquisa e as perguntas a serem respondidas.
Faça a combinação entre o tipo de dado que você precisa e as questões que estão tentando responder.
Quer descobrir, mergulhe, quer confirmar algo, pergunte?

Capital cultural é um conceito criado pelo sociólogo Pierre Bourdieu; representa o conhecimento produzido e repassado entre gerações. Aqui adaptamos para o meio corporativo no sentido de aproveitar o que já aprendemos antes de ir até o cliente.

Breve Relato:
Em uma grande empresa de educação, foi desenvolvido um programa onde o time comercial, no caso, agentes pedagógicos*, a partir do que já haviam aprendido sobre o funcionamento das escolas e preferências dos clientes, co-criavam documentos e soluções para que fosse um pontapé inicial na construção de novos produtos e/ou melhoria contínua.

*é um time comercial especializado em educação, são todos licenciados e com experiência em sala de aula.

O informante é um sujeito que vive na comunidade, ou seja, faz parte do cotidiano e da construção da comunidade, grupo ou fenômeno o qual se pesquisa.

Breve Relato:

Trabalhar com logística exige uma imersão muito intensa e uma visão bastante ampla de tudo o que envolve o processo. Para uma pesquisadora que não conhece nada a respeito, imagine, a curva de aprendizagem é alta o que demandaria uma grande quantidade de idas a campo e tempo.

Nesse sentido o papel do informante é de facilitar a imersão nesse cenário e, mesmo a pesquisadora estando fora do campo, continuar em contato com o dia a dia e ajudar a confirmar hipóteses e aprendizados.

A etnografia relacional tem como base a configurações de relações. Assim o objetivo do campo seria descrever um sistema de relações, definindo pontos como: rede de influência mútua, suporte ou interdependência.

Quer maior case que o BBB?
No reality show é possível conhecer os indivíduos também a partir das alianças que fazem, ou seja, das redes relacionais que estabelecem.

Até aqui tudo lindo… Mas ainda temos mais 4 pontos para se refletir!

A condição dos países empobrecidos
O fazer etnográfico virtual nos países ao sul do globo se torna oneroso uma vez que o acesso a tecnologia conectada é menor, devido a fatores como renda e escolaridade.

Pesquisa em lugares perigosos
Lugares em conflito civil ou com alto índice de criminalidade podem representar risco ao pesquisador. As pesquisadoras mulheres enfrentam um risco a mais, por exemplo, ao visitarem lugares remotos estarão sujeitas a abordagens desagradáveis ou violentas.

Comunicação não verbal
Quando priorizamos o contato face-a-face, assumimos que será possível obter informações não verbais. Mas será que temos mesmo a habilidade de pegar esses sinais? Ou é apenas uma suposição como qualquer outra?

Sintetizando tudo isso!

Abaixo temos um comparativo com alguns exemplos pra pensarmos na hora de escolher a abordagem.

Voltando as raízes!

Diante de possibilidades e questionamentos, cabe dizer que a grande conclusão de todos os pesquisadores que contribuíram com esse resumo é que agora se faz necessário voltar as raízes da pesquisa etnográfica ou de campo.​​​​​​​

Assim como os primeiros antropólogos fizeram, nós teremos que pisar nesse terreno virtual com cuidado e atenção para que seja possível criar novos meios. Seremos os responsáveis por adequar novos métodos ou a melhoria deles.​​​​​​​

Também será nosso o papel de troca entre instituições, utilizando o rigor acadêmico e a nossa experiência tecnológica para desconstruir paradigmas que talvez já não façam sentido, sendo possível dar um passo nas metodologias de pesquisa.

Prontas ou não, vamos viver esse momento!

Fontes da pesquisa

(1) Capital cultural: termo adaptado a lógica do ambiente corporativo.

Ver original em: https://novaescola.org.br/conteudo/1826/pierre-bourdieu-o-investigador-da-desigualdade

| Digital Anthropology Daniel Miller
https://www.youtube.com/watch?v=XNus-xZ7_6Y

| Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social
https://www.youtube.com/watch?v=NSiTrYB-0so

| Virtual Turns: Doing Ethnography During and Beyond a Pandemic
https://www.youtube.com/watch?v=yL7VXBFQvHs&feature=youtu.be

| Cláudia da Silva Pereira — Avá. Revista de Antropología — Universidad Nacional de Misiones Argentina
https://www.redalyc.org/pdf/1690/169021465009.pdf

| Pierre Bourdieu — Sobre o Conceito de Capital Cultural
https://www.youtube.com/watch?v=z5qCbzHQOY8

| Fazendo diários de uso continuado pelo whatsapp
https://brasil.uxdesign.cc/escolhendo-ferramentas-um-di%C3%A1rio-de-uso-continuado-para-o-s%C3%A9culo-xxi-46511f66d23a

| Diário como ferramenta de pesquisa em tempos de isolamento
https://medium.com/cesar-update/di%C3%A1rio-como-ferramenta-de-pesquisa-em-tempos-de-isolamento-5c3f49a83d2f

| O QUE É HISTÓRIA ORAL — FGV CPDOC
https://cpdoc.fgv.br/acervo/historiaoral

Matthew Desmond — Relational ethnography
https://scholar.harvard.edu/files/mdesmond/files/desmond.relational_ethnography.pdf

| Robert Kozinets, Netnography: Doing Ethnographic Research Online

| Carlos Vladimir Zambrano | Universidade de Cádiz — LASA FORUM 2021
https://forum.lasaweb.org/

| Elisabetta Costa — Remote Ethnography: Doing Anthropology Digitally | ABv & LaSSA Webinar

Vida na Rede: uma análise antropológica da virtualidade — Jonatas DOrnelles
https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/12517/000627358.pdf?sequence=1

Desvelando a Netnografia: um guia teórico e prático
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-58442015000200339

Pesquisa originalmente publicada no site interno do time de inovação na PagSeguro PagBank.

--

--

M. Vicente
La Distopista

UX/ Service Designer na PagSeguro e pesquisadora mestranda do Programa de Integração Latino Americana da Universidade de São Paulo. www.marianavicente.com.br