#bordão

M. Vicente
La Distopista
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3 min readFeb 28, 2020

Ela tem um bordão: "serião". Usa para tudo o que for realmente urgente. Minha cabeça dói demais, serião!

— Sempre que ouço alguém dizer "serião", lembro de você.

Como? Que outro ser humano teria o mesmo tique nervoso? Essa é a peculiar maneira com a qual expressa sua ansiedade.

Sério. É sério isso. Falo sério, porra. Seríssimo. De verdade, cara. Serião!

Essa é a escala precisa que antecede o exato segundo em que vocaliza: SÉ-RIÃO. Tudo isso passa feito lâmina por dentro da cabeça dela, resvalando em cada sinapse irada, até que atingindo a garganta, vibra na língua e sai boca a fora para compor — junto da veia saltada — toda sua "personalidade dura", assim denominada pelos outros.

Mas a questão crucial é saber onde ele havia escutado o termo se não de sua própria boca. Existia a possibilidade de ela ter se tornado algum tipo de voz interior? Ou então aquilo era só mas um modismo vernacular absorvido por ela própria de forma inconsciente?

— Serião… Onde você escutou isso?

Aparentemente, algum "er" especialista em nada, difundiu em uma de suas redes antissociais movidas a likes — like me please— uma #seriao para enfatizar um nível de relacionamento pré-casamento: "ta ficando serião". Uma agonia fora transformada em meme.

— Caralho, que bosta!

Via-se a hashtag brotando nas bocas abertas quase o tempo todo. Percebeu então que vive refém de um tempo onde mal se pode ter só pra si uma neurose peculiar, o que, consequentemente, poderia virar uma neurose retroalimentada pela constante vontade de se ter uma neurose só pra si, pra sempre.

— Está em todo lugar agora, viu? Mas mesmo assim lembro de você. — disse Rafael em tom de intimidade.

Qual seu ponto? A questão não é essa, nunca foi sobre o reconhecimento ou sobre ganhar um quadro em um dos programas de humor decadentes da TV.

Naquele dia escolheu o maior caminho até sua casa, por entre mil baldeações de trem poderia ouvir por mais tempo musicas relaxantes e estar relativamente se movimentando, mesmo estando reflexivamente parada. A vida poderia ser assim pra sempre. Destrinchava minunciosamente uma questão que, aparentemente, era pequeníssima.

Eu não sei porque estou tão incomodada com isso.

Chegando em casa, se enfiou em futilidades no seu smartphone. Passou por vídeos de ASMR com espremedura de cravos e cistos, envernizamento de óleo sob tela e vídeos do Dr Phill sobre adolescentes mimadas. Entre um e outro, tocou automaticamente a propaganda de uma rede de restaurantes com duas girafas conversando:

— O que achamos desse novo prato?— disse uma.

— Muito bom, é sério.

— Sé-rião! — seguido do jingle já conhecido nacionalmente.

Percebeu que seu jargão havia virado recurso publicitário. Tomou seus 3 comprimidos para a sanidade mental e foi dormir.

Não dormiu, era cedo ainda, pensou quantas vezes mais ainda cederia somente porque agora as pessoas se comunicavam mais rápido e com maior frequência. Em um mundo onde sempre tentara ser distinta, pra não correr o risco de ser miseravelmente humana, se viu fadada a ser normal.

E, assim como nas ultimas páginas de 1984 de Blair, cedeu. Tomou um banho e foi com Larissa beber Gin Tônica, sua bebida favorita, que, não por coincidência, também havia se tornado senso comum.

Colagem autoral

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M. Vicente
La Distopista

UX/ Service Designer na PagSeguro e pesquisadora mestranda do Programa de Integração Latino Americana da Universidade de São Paulo. www.marianavicente.com.br