Lógica violenta das cores

M. Vicente
La Distopista
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5 min readJun 7, 2020

Eros e Tanatos — Blue disse — nesses tempos ficam dançando feito anjo e demônio em torno de nossas cabeças. Não se espantem se ficarem o tempo todo com vontade de sexo, é que, nesses dias, a morte está todo o tempo soprando na janela. Mas não se entreguem a nenhum dos dois pois, os deuses querem que a gente duvide do nosso próprio poder.

Eu não gosto de deus nenhum.

*

Sara estava cansada da rotina, em sua cabeça a lista de afazeres prazerosos já se esgotara e não havia mais nada que a fizesse se sentir melhor. Quem não havia tentado de tudo naquele período? O passar do relógio era a única coisa que andava devagar; ainda assim era estranho sentir que as 24 horas continuavam intocáveis, nessa normalidade ninguém havia mexido.

Mas a sensação era de que o tempo voava. Era um tipo jet lag viral, não é possível, bixo! Perdida nos pensamentos suportando sua divisão em duas ao ter de participar das tantas reuniões virtuais, ela pede licença e vai buscar a comida que não sabia se queria comer mas o entregador trouxera.

Viu o que aconteceu, dona Sara? Ela sempre fomentava todos os assuntos, por mais aleatórios que fossem era motivo pra conexão. O moço se suicidou, menina, que horror… Ela não notou que um ruído havia estremecido a rotina massacrante daquele dia, então como se botasse os óculos reparou os carros de polícia e a multidão.

Precisou subir até o seu apartamento para ver e acreditar que aquilo estava acontecendo. De cima, reuniu as amigas e então se deram conta juntas do que acontecia no prédio logo em frente. Ficaram as três em silêncio, contemplando do púlpito cotidiano o corpo caído. Enquanto isso a comida, que certamente seria intragável, esfriava. Por diversas vezes tentaram desviar o olhar e assim poder dar conta da própria vida, mas além do nosso ímpeto de envolvimento, um urro de tristeza estremeceu todo o corpo de Sara.

Voltou-se para a sacada novamente, notando que uma moça havia feito o reconhecimento do corpo e se desfez em pranto com a confirmação. Certamente era a amiga mais próxima, compartilhavam de muitas semelhanças, mas a maneira de lidar com os problemas da vida era o que os mantinha unidos; ele vivia leve, a amiga demasiadamente pesada. Lidavam todos os dias com as mazelas humanas dos hospitais públicos, mas nenhum profissionalismo abafa aquela dor massacrante do desenlace perpétuo.

Na noite anterior, Maurício havia escolhido ligar pra um de seus flertes. Aquela relação era estranha ainda, nada sério, nada tão fugaz. Vem em casa? Quer mesmo? Vem logo! Ele não queria ficar mais uma noite sozinho, queria sexo e um raio de vida. Dançou pela casa, correu nu, brincou com vontade, riu alto! Fez uma piada e de repente percebeu que não era aquilo que ele queria, botou a roupa e jogou seu corpo no sofá desconfortável. Vou ao banheiro, já volto. Está bem.

Maurício? Cadê você? Para de brincadeira… Eu vou embora!

Blue também estava em uma reunião virtual, outra reunião virtual. Não havia deixado pronto o café da tarde, então passaria a reunião com fome, coisa que para ela era insuportável; era capaz de comer, engolir rápido e falar sem ninguém perceber que estava de boca cheia. Essa irritante sensação de estômago vazio a deixou inquieta e um tanto distraída. Há três meses não saia de casa, nesse mesmo tempo tinha diminuído a bebida e deixado de fumar. Preciso fuçar no celular, se não eu desligo.

Quinze toques secos. Enviar. O Maurício se suicidou. O fato se espalhou mais rápido que o vírus. Gente, preciso sair da reunião, recebi uma notícia ruim. Mesmo com as pernas tremulas consegue fingir calma. Como você está, Ju? Que pergunta boba, mas o que é que se deve dizer nessas horas?

Agora Juliana teria que conter todo o estrago que a notícia faria na rede de amigos, a escolha de Maurício era como um hotspot de terremoto e estávamos temendo a onda que isso poderia causar. Eram dois suicídios em um dia só! No futuro aquele dia poderia ficar marcado como o “dia do adeus”, quando muitos desistiram. Eu preciso mandar mensagens para os meus amigos, eu não vou aguentar mais um.

Como você está, Thi? Eu estou mal como de costume. Com aqueles pensamentos outra vez. Não pare justo agora de me responder, cara! Eu não sei se sou capaz de ajudar tanta gente. Você não precisa ajudar todo mundo, cuida de você. Esse mundo é muito podre.

Eu não posso contar ao Thiago que justo hoje o Maurício subiu na sacada, se equilibrou e deu impulso, passou sem tocar a marquise para que fosse possível cair direto na grama. Não posso contar que ele havia acabado de se curar de Covid. Não posso contar que mais alguém havia desistido dessa merda de mundo. Eu não podia o ameaçar ou pedir que, por favor, não faça isso comigo, eu não posso aguentar mais.

O café da manhã não desceu bem, mas comer é o mínimo esperado é o menor dos cuidados e entretenimento possível. Blue, preciso checar uma amiga do trabalho, ela não apareceu em uma reunião e não foi a aula, ela nunca fez isso. Tudo bem vai lá, toma cuidado? Eu não vou pensar nisso agora, sinto que está tudo bem, não é possível. O tempo congela e a notícia chega. Ela está bem, que alívio. Que alívio o caralho, vagabunda irresponsável!

Outra reunião antes do almoço. Com que cabeça eu vou participar dessa merda? Uma cabeça que procura solução esbarra em tantos outros acontecimentos que, ao mesmo tempo, seguem sendo processados. Conexões e mais conexões se intercruzam para que possamos entender que o mundo é pequeníssimo. Sara, o seu vizinho era o Maurício! Blue, você está falando sério? Me liga agora.

*

“Morreu ao meio-dia. A presença do bailio e as providências que ele tomou evitaram uma aglomeração maior de pessoas. À noite, às onze, fê-lo enterrar no lugar que ele havia escolhido. O velho e os filhos seguiram o corpo, Alberto não teve forças. Temia-se pela vida de Carlota. Foi carregado por operários. Nenhum sacerdote o acompanhou”.

Colagem Digital com Foto de Juhasz Imre no Pexels

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M. Vicente
La Distopista

UX/ Service Designer na PagSeguro e pesquisadora mestranda do Programa de Integração Latino Americana da Universidade de São Paulo. www.marianavicente.com.br