[memória] Osvaldão

M. Vicente
La Distopista
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5 min readApr 1, 2019

Trinta e nove anos depois do nascimento de minha tia mais nova, 2003, eu estava no segundo ano do Ensino Médio. Estudando na centenária Escola Estadual de São Paulo, fundada em 1894, da qual o grêmio estudantil foi fechado em 1968 pelo AI-5, fruto da ditadura militar de 1964, mesmo ano de nascimento de minha tia.

Trinta e cinco anos depois nós reativávamos o grêmio estudantil; eu era parte da comissão pró-grêmio que depois se dissolveu no “grupo de oposição absoluta” cujo nome era GPR — Grupo Político Revolucionário.

Aqui preciso me conter pra não desviar do assunto. Ninguém imagina quantos golpes sofre o secundarista. História essa que fica pra outro post. O jovem sofre gritando, mas poucos entendem.

Quarenta anos depois eu ingressava no último ano escolar — sempre achei um absurdo ser chamado de terceiro, é o último, não mintam pra mim, o Estado vai me abandonar. — desesperada com nunca ter transado ou tido um relacionamento… Quem me dera fosse. Na verdade, estava preocupada com a política mundial e nacional. Dela dependia minha vida.

Nesse ano, tendo decidido cursar Geografia, já havia lido alguns clássicos como Milton Santos e alguns autores marxistas. Comecei a me aproximar muito dos professores de humanas, e me dedicava com afinco. Dava meu sangue pelos trabalhos e provas.

Como trabalho de finalização de curso, o professor de História nos pedia para passar o ano estudando algum tema e, por afinidade, escolhi tratar da Ditadura Militar de 64; atividade esta que me preparou para o que mais tarde enfrentaria na graduação. O ano passou voando e logo chegou o dia da apresentação.

Meu grupo começou a fala desenhando na lousa detalhes de como era a tortura de pau de arara e a pimentinha; isso tudo pra prender a atenção dos alunos. Depois traçamos o panorama político da época com fotos e jornais, então exibimos uma linha do tempo com os acontecimentos. Por fim, contamos algumas histórias dos desaparecidos. Escolhi contar a história de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão.

Osvaldão foi campeão de boxe pelo Botafogo de Futebol e Regatas, estudou na Faculdade de Engenharia Mecânica, da Universidade de Praga, foi também membro do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva) do Exército Brasileiro. Em 64 foi obrigado a viver na clandestinidade onde treinou guerrilha na China; em 72 foi um dos primeiros a compor a guerrilha do Araguaia, tornando se comandante do Destacamento B.

Foi responsável pela primeiro abatimento militar, e há quem diga que ele metia medo quando se botava no meio do mato: um homem grande e forte urrando feito bicho! Foi morto em 74 enquanto descansava, de costas, por um mateiro covarde — que não merece que se cite o nome — , foi içado por um helicóptero pra ser exibido como prêmio de caça. Seu corpo foi decapitado por um sargento do exército e deixado no mato pra nunca mais ser encontrado.

O ano acabou, assinamos as camisetas, fizemos guerra de bexiga. Eu não rasguei meu caderno, eu respeitava meu conhecimento. Disse adeus aos mestres, prometi voltar como professora. Não esqueci Osvaldo, e nem os alunos que me encheram de perguntas e agradeceram no final.

Em 2006 ingressei na Universidade de São Paulo, no curso de Geografia. Fiz parte do centro acadêmico logo nos primeiros anos, por que, não bastasse a precariedade da escola pública fundamental, o curso superior público também guardava suas surpresas. Em meu primeiro ano faltavam alguns professores. O que fizemos? Greve, o curso não andaria se não tivéssemos aulas completas.

Segue uma militância mais consciente e organizada, com iguais ou nem tanto. A agonia agora era militar, estudar e trabalhar. Para aguentar todo esse movimento de vestir e despir máscaras sociais, precisávamos beber e usar drogas. Beber mais que usar drogas, uns mais que outros!

Numa destas noites de agonia, fomos ao Portão 1 onde havia uma banca de jornal que vendia bebida — não é tão fácil comprar bebida e cigarro na USP — sentamos nas mesas de plástico velhas e pegajosas, pedimos uma cerveja e ascendemos um cigarro. Eu e Letícia estávamos cansadas e sem assunto, neste momento se encontra alguma conversa na mesa ao lado.

Um homem da Polícia Civil fala sobre a greve com seus amigos. Acredito que até aquele dia eu nunca havia visto polícia fazendo greve. Fiquei muito atenta. Tão logo, eu e Letícia, começamos a trocar opiniões em voz baixa. Não lembro exatamente como as conversas se cruzaram, eu era brava, a Lê tinha uma famosa “cara de cú”, mas acho que eu sempre tinha um sorriso emergencial em caso de necessidade.

Em poucos minutos estávamos conversando sobre a precarização do trabalhador da polícia, e também falamos um pouco sobre a relação da polícia com os estudantes. Um daqueles homens parecia muito respeitável e de confiança, nos tratava bem e sem maldade. Nós éramos bastante hostis a qualquer lapso de maldade. O ponto é que quando confio em alguém começo a entrar num fluxo de memórias e contar histórias e eu fico ansiosa e fico animada e…

Contei sobre Osvaldão!

O homem confiável que conversava comigo pediu que eu desse detalhes sobre sobre meu relato em sala de aula; no meio de minha fala ele começou a chorar muito. Aquele choro que o rosto não mexe e a lágrima escorre sem que se queira:

— O Oswaldo é meu tio!

Eu fiquei literalmente boquiaberta e gritei pela Letícia. Todos os meus amigos sabiam daquela história. O homem, cujo nome, com pesar não me lembro ( a Lê tem uma memória incrível, ela lembra de tudo, sim, de tudo! O nome dele: Tininho, de Caraguatatuba.), chorava e agradecia por ter feito aquilo, que para ele e para a família era um ato muito grandioso. E eu me emocionei também. Eu me emociono agora escrevendo.

— O meu filho tem o nome dele, é o Osvaldinho! Vocês precisam conhecer, ele tem a idade de vocês! Pega o telefone dele!

O destino é muito louco. Eu não acredito em deus e em nada místico que tenha sido nomeado pelos homens. Mas acredito na força da mente, que se chama e se conecta. Esse homem apareceu num momento merda na minha vida e daquele dia em diante, entendi que deveria continuar contando as minhas histórias sempre e, também, a história de Osvaldão.

Meus textos e contações são também uma forma de militância.

No mais perdemos contato. Nós chegamos a conhecer o Osvaldinho e a Letícia, suavizando sua famosa “cara de cu”, namorou brevemente com ele!

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M. Vicente
La Distopista

UX/ Service Designer na PagSeguro e pesquisadora mestranda do Programa de Integração Latino Americana da Universidade de São Paulo. www.marianavicente.com.br