[memória] Nunca te falei do meu pai?

M. Vicente
La Distopista
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4 min readDec 10, 2018

Ainda lembro da primeira vez que entrei em um cemitério; lembro-me mais deste dia que de ontem. Era o final da tarde, e eu estava com meu pai (o qual sinto a necessidade de ressaltar que é falecido, mas na época, estava vivo. Vindo de mim, talvez não seja tão óbvio) voltando de Santos rumo a São Paulo.

Ele nasceu lá em um ano que não me recordo, porque assim são as memórias em uma família pobre: não existem muitas fotos, não há documentos, não se fala muito da infância, provavelmente porque ninguém quer lembrar do tanto de coisa ruim que aconteceu.

O fato é que, pelo menos uma vez por ano, dos meus 5 até os 11 anos, íamos passear na casa de uma tia em São Vicente. Eu gostava muito daquele momento com meu pai, mas sempre havia um resto de frio na barriga quando pensava na rotina de volta dele. Marcão não era religioso, mas tinha fé; fez uma promessa para a mulher do crime da mala. Não, ela não tinha uma mala famosa; ela foi posta dentro da mala depois de ser esquartejada pelo marido.

Ele não era gótico nem vampiro, nada do tipo. Era um ex-metalúrgico sem muita ideologia, e não me perguntem, por favor, por que ela. Eu não sei, e provavelmente não terei essa resposta. Espera… Deixa eu perguntar para minha mãe:

Pelo que sei, ele fez a promessa antes de casarmos, mas não tenho certeza. Acho que era para ter um filho; ele queria colocar o nome de Maria Féa, mas eu não deixei. Quem escolheu o nome foi seu irmão… Acho que era por isso. Mas conversando com a Cristina, pensamos que ele se comoveu com o caso; para eles, que moravam lá, foi tudo muito chocante, e ele prometeu levar flores para ela sempre que fosse lá. Por quê quer saber?

Atualmente carrego o nome de duas santas.

A versão do meu irmão mais velho esclarece melhor as coisas.

Eu lembro de ser por causa do meu problema de coração. Nos anos 80, uma criança passar por cirurgia cardíaca era muito arriscado. Antes de você nascer, quando íamos para Santos, ele desaparecia por algumas horas; de certo modo, acho que ele gostava de ir sozinho.

Mas então… Todo ano, na volta para São Paulo, ele fazia o mesmo ritual: “Vamo embora, não esqueceu nada?” Entrávamos na Brasília Branca; ele dava a partida, e eu me borrava. Parava em frente à floricultura do cemitério de Santos e comprava um buquê de rosas vermelhas. “Rosas vermelhas” nunca fez sentido. Entrávamos no cemitério, e minha memória apagou o caminho que fazíamos até chegar no mausoléu de Maria.

Eu só lembro do mausóleo de Maria.

Ele chegava perto do mural onde as pessoas depositavam as velas — braços, cabeças, carteira de trabalho, órgãos de cera; mais bizarro se pensarmos que tudo isso estava ao lado do túmulo de uma mulher esquartejada — e ficava um tempo ali parado. Não devia ser por muito tempo, mas era tempo suficiente para eu reparar em cada detalhe. Dentro do mausoléu, havia uma mala, roupas, acessórios, fotos, livros, um banquinho e um caixão simbólico. Eu tinha medo de chegar perto dela, mas isso foi só nas primeiras vezes…

Depois de um tempo, eu colava o rosto no portão para tentar ver como era um corpo que sofrera tal crime. De repente, ele me chamava, e, assustada, sentia aquele frio maldito na espinha novamente — como sempre — saía do transe e começava a ficar ansiosa e um tanto decepcionada por não ter visto nenhum pedacinho do corpo.

Seguiam noites sem dormir, suportadas pelo Homem do Sapato Branco do “Aqui Agora” e pela criatividade sádica do meu irmão que, ao acabar a energia elétrica — muito comum na periferia de São Paulo — encostou uma linguiça fininha em meu braço, dizendo ser o dedo esfolado da mulher da mala.

Eu não dormia no escuro; entrava em pânico e era capaz de gritar por socorro se apagassem a luz enquanto eu dormia.

Anos se passaram, e eu decidi confrontar Féa. Abri uma página do Google e digitei seu nome. Li absolutamente tudo sobre o caso. Li tudo sobre outros casos. Assisti a filmes sobre crimes. Contei histórias sobre o que aprendi. Planejei sustos durante exibições de filmes de terror. Apaguei a luz ao dormir.

E então percebi detalhes importantes na composição de minha própria personalidade; entendi meu gosto pelo bizarro, minha atração pelo macabro, meu humor estranho e minha visão da morte. Ainda tremo se vejo sangue, mas é o que falta num corpo morto, não? Eu sou “bizarra” porque sou mulher; se fosse homem, seria só excêntrico.

Nunca mais fui ao túmulo de Maria Féa, mas pensar nisso ainda me sufoca — eu não poderia deixar de dizer — grávida, foi morta pelo marido num crime que muito mais tarde chamou-se feminicídio.

Não sei se este texto fala mais sobre meu pai ou sobre mim.

Colagem Autoral

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M. Vicente
La Distopista

UX/ Service Designer na PagSeguro e pesquisadora mestranda do Programa de Integração Latino Americana da Universidade de São Paulo. www.marianavicente.com.br