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M. Vicente
La Distopista
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3 min readDec 27, 2022

“(Emí­lia) — A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. […] Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”
~ Monteiro Lobato, em “Memórias de Emí­lia” (1936)

Quando perguntaram sobre a minha idade, eu falei: foram quatro primaveras… Que?! Não, foram mais…. Como assim uma primavera a cada dez anos? Quatro, estou louca! Mas o cérebro aproveita momentos de baixa da guarda pra passar uma mensagem confusa.

Talvez ele tenha me lembrado que, diferente do Renato Russo que morria todo ano, eu morri e nasci quatro vezes em quase quatro décadas. O que me faz pensar que a Emília não soubesse da existência de muitas mais mortes entre abrir e fechar os olhos do que uma boneca criança poderia imaginar.

A cada morte assentaram muitos aprendizados, e que coincidência maluca serem exatos quatro renascimentos. Não pense que foram experiências de quase morte ou mudanças extremamente bruscas. Me respeite! Foi tudo o mais suave possível, uma queda controlada nos mínimos detalhes, claro que com um tom de drama que meu espírito insiste em imprimir e faz minha ansiedade aliviar. O drama é meu grito.

Dessa vez renasço um tanto infeliz e desapontado por ter passado todo esse tempo procurando uma profundidade que nesse mundo não existe.

A Terra é plana sim. Rasa. Chata. Habita nela uma sociedade que dá ao raso destaque solene.

Mas como tudo que existe se contradiz, há nela coisas boas, bem pequeninas e isoladas. Pessoas boas, ocupadas e sofrendo com suas próprias narrativas. É por isso que a gente não precisa de muito, apesar de eventualmente acreditarmos que o sucesso está sempre relacionado à quantidade e acumulação primitiva.

Logo eu que cantarolava sem parar que “quando não se tem mais nada, não se perde nada […],” chafurdo e emboto no tambor dos novos tempos.

A gente se perde no caminho, mas a vida obriga a se encontrar.

Na verdade, talvez, esse sentimento estranho seja pela descoberta de ter vivido mais que minhas avós, que não pude conhecer.

Pode ser que venha do fato de a gente ter visto o mundo e a história correr tão rápido que seguramos a juventude nos dentes, e agora estamos nos dando conta de que o tempo é implacável e que o avanço tecnológico ainda não controla o Sol.

Ou ainda pelo fato de termos aprendido nos anos escolares que a vida é uma progressão continuada anual.

Mas essa mensagem não fala exatamente sobre mim, mas sobre a minha geração, sem casa, sem raiz, sem perspectiva de perpetuar. Somos um tanto de gente desesperada por zerar o cronômetro. Por esquecer os anos de barbárie que acabamos de passar, por parar de contar para além dos dedos tudo o que perdemos.

Mas o que é muito doido é pensar que não é a primeira vez no mundo que a gente anda para trás; entendi de vez que a vida é pendular, pisca-piscar é trazer aos olhos luz e sombra, toda a dialética. Esse movimento está posto, e eu nada tenho o que fazer se não aproveitar cada segundo.

Mas sem nunca me conformar. Essa vida exige que a gente lute por liberdade com a força de uma mãe que perdeu um filho.

Tenha certeza de que nesse pisca-pisca, Senhor Visconde, as coisas estão melhorando! A única coisa que permanece é que “quem pára de piscar chegou ao fim, morreu”.

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M. Vicente
La Distopista

UX/ Service Designer na PagSeguro e pesquisadora mestranda do Programa de Integração Latino Americana da Universidade de São Paulo. www.marianavicente.com.br