Por que as pandemias são debates ambientais?
“A separação das políticas de saúde das ambientais é uma ilusão perigosa. Nossa saúde depende inteiramente do clima e de outros organismos com os quais compartilhamos o planeta” — Aaron Bernstein.
É caracterizada enquanto pandemia uma epidemia de doença infecciosa que se espalha em dimensões continentais ou mundiais. O coronavírus, nesse sentido, qualifica-se enquanto uma.
Ao traçar a origem da doença sob um prisma estritamente biológico, é possível evidenciar o morcego enquanto hospedeiro inicial. Estes mamíferos, de acordo com Diogo Sponchiato, são um dos principais reservatórios para vírus potencialmente terríveis ao ser humano. Ou seja, o coronavírus não é uma exclusividade. A solução, contudo, diferente do que devem pensar, não é promover uma exterminação desse animal e, sim, respeitar seu habitat.
“A perda contínua dos espaços naturais nos aproximou demasiadamente de animais e plantas que abrigam doenças que podem ser transmitidas para os seres humanos” — Inger Andersen, diretora executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)
David Quammen, escritor estadunidense especialista em ciência e natureza, pandemias originárias de zoonoses — vírus inicialmente de origem animal, mas que se tornam doenças humanas — são, em sua essência, reflexo das intervenções antropológicas no meio ambiente.
A atividade humana modificou praticamente toda a superfície terrestre, do solo ao oceano. E, à medida que continuamos a prejudicar a natureza e degradar os ecossistemas, colocamos nosso bem-estar em risco — Inger Andersen
A Organização das Nações Unidas (ONU), listou seis pontos importantes sobre a ligação entre o coronavírus e o meio ambiente:
- A interação de seres humanos ou rebanhos com animais selvagens pode expor-nos à disseminação de possíveis patógenos. Para muitas zoonoses, os rebanhos servem de ponte epidemiológica entre a vida selvagem e as doenças humanas.
- Os fatores determinantes do surgimento de zoonoses são as transformações do meio ambiente — geralmente resultado das atividades humanas, que vão desde a alteração no uso da terra até a mudança climática; das mudanças nos hospedeiros animais e humanos aos patógenos em constante evolução para explorar novos hospedeiros.
- As doenças associadas aos morcegos surgiram devido à perda de habitat por conta do desmatamento e da expansão agrícola. Esses mamíferos desempenham papéis importantes nos ecossistemas, sendo polinizadores noturnos e predadores de insetos.
- A integridade do ecossistema evidencia a saúde e o desenvolvimento humano. As mudanças ambientais induzidas pelo homem modificam a estrutura populacional da vida selvagem e reduzem a biodiversidade, resultando em condições ambientais que favorecem determinados hospedeiros, vetores e/ou patógenos.
- A integridade do ecossistema também ajuda a controlar as doenças, apoiando a diversidade biológica e dificultando a disseminação, a ampliação e a dominação dos patógenos.
- É impossível prever de onde ou quando virá o próximo surto. Temos cada vez mais evidências sugerindo que esses surtos ou epidemias podem se tornar mais frequentes à medida que o clima continua a mudar.
Diante desse contexto, o Relatório Fronteiras (PNUMA, 2016) afirma que fatores como o desmatamento e mudanças no uso do solo, comércio ilegal ou irregular de animais silvestres, resistência antimicrobiana, intensa produção agrícola e pecuária, mineração e as mudanças climáticas são as principais causas que favorecem o surgimento de doenças zoonóticas. O fato do “comércio ilegal ou irregular de animais silvestres” ser enquadrado enquanto um dos principais problemas despertou minha atenção. Afinal, como o tráfico de animais e as pandemias estão interligados?
“Os animais são transportados por grandes distâncias, amontoados em gaiolas. Eles ficam estressados, imunossuprimidos, e excretam quaisquer patógenos que existam dentro deles. Com o grande número de pessoas nesses mercados entrando em contato com esses fluidos corporais, temos uma combinação perfeita para o surgimento de doenças. Se você queria um cenário para maximizar as chances de transmissão, não existe um melhor do que esse” — Andrew Cunningham, professor da Sociedade Zoológica de Londres
O que se sucede é, pois, que um ecossistema saudável auxilia na proteção de doenças. Isto ocorre porque a diversidade de espécies dificulta a propagação rápida de patógenos — organismos capazes de causar doença em um hospedeiro. Aaron Bernstein, da Faculdade de Saúde Pública de Harvard, nos Estados Unidos, disse que a destruição dos ambientes naturais e a mudança climática forçam esses animais a se movimentarem ou, até mesmo, migrarem, aproximando-os das pessoas: “Isso cria uma oportunidade para os patógenos entrarem em contato com novos hospedeiros”.
Especialistas, atualmente, estão retratando outros impactos ambientes. Em evidência, os incêndios florestais, os recordes de temperatura no mundo e a pior invasão de gafanhotos no Quênia nos últimos 70 anos, são tidos como “um recado da natureza”.
David Harvey, teórico e professor de Geografia, acredita que o capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz num contexto de consequências não intencionais — como as mudanças climáticas — e contra as forças evolutivas autônomas e independentes que estão perpetuamente remodelando as condições ambientais. Sob tal perspectiva, as variáveis favorecem a transmissão rápida através dos corpos hospedeiros. Por exemplo, populações humanas de alta densidade são alvos fáceis para o hospedeiro.
“O surgimento e a disseminação do Covid-19 não era apenas previsível, mas também esperado [no sentido de que] outra doença derivada de animais silvestres se tornaria uma ameaça à saúde pública”
O debate econômico e social está fortemente presente nas plataformas digitais e redes sociais. Diversas medidas socioeconômicas estão sendo elaboradas ao redor do globo, até mesmo pelas organizações internacionais, para reduzir o máximo de impactos e danos. O coronavírus nos relembra, mais do que ensina, pandemias anteriores que foram negligenciadas por aqueles que deveriam ter agido em combate à uma possível nova doença de proporções globais: quem nos governa.
Alain Bihr, sociólogo francês, pontuou que funcionários de hospitais na França têm dito repetidamente, ao longo do ano passado: o hospital público é vítima de políticas de estrangulamento financeiro, tornando-o cada vez menos capaz de cumprir as suas tarefas de acolhimento e cuidado dos pacientes; mas que também é vítima de uma medicina liberal da cidade que, em grande parte, vira as costas à sua missão, enviando pacientes para o hospital público que inicialmente estavam sob seus cuidados; enquanto as clínicas privadas prosperam com os excessos de taxas que selecionam uma “clientela” que evita a dupla armadilha anterior. Tanto que, quando o choque de uma pandemia atinge, é todo este sistema, deliberadamente dilapidado, que se revela incapaz de lidar com a situação, forçando os prestadores de cuidados a separar os pacientes de acordo com a sua expectativa de sobrevivência e idade.
Urge-se, por fim, políticas afirmativas que visam abarcar um novo sistema ecologicamente sustentável o que, de nenhum modo, se observa no capitalismo. O desgaste ambiental em excesso causado pelo sistema de produção mundial vigente nos guia para um só caminho: a extinção. A preservação de espécies e de habitats naturais são extremamente necessários para um ecossistema balanceado e, assim, equilibrado.
“Eu pensei que as coisas mudariam depois do Sars, que também foi um grande alerta — o maior impacto econômico causado por doenças emergentes até aquela época. Todo mundo estava de mãos atadas. Mas o vírus foi superado, graças às nossas medidas de controle. Depois, houve um grande alívio e voltamos a viver como era de costume. Não podemos repetir isso dessa vez” — Andrew Cunningham.
REFERÊNCIAS
BIHR, Alain. Pour une socialisation de l’appareil sanitaire (le cas de la France).
HARVEY, David. Política anticapitalista en la época de COVID-19.