Sexo e gênero: suas principais funções na opressão feminina

Natalia
5 min readMar 27, 2020

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A mulher não nasce: ela é feita. No fazer, sua humanidade é destruída. Ela se torna símbolo disto, símbolo daquilo: mãe da terra, puta do universo; mas ela nunca se torna ela mesma porque é proibido para ela fazê-lo. — Andrea Dworkin, Pornography: Men Possessing Women.

Ao estudar as teorias que dão base para o feminismo radical, você provavelmente já deve ter se deparado com a ideia de sex-based oppression — opressão baseada em sexo. Para compreender a função do sexo como determinante de papéis sociais e de gênero como principal ferramenta de opressão feminina numa sociedade patriarcal, precisamos compreender a definição de sexo e gênero e como os dois se interligam.

Como é de conhecimento comum, seres humanos, assim como outras espécies de animais, se reproduzem de maneira sexuada — isto é, necessitamos da junção de um gameta feminino e um gameta masculino para gerar ali um novo organismo. Esse novo organismo vai — quase que inequivocamente — se apresentar como macho ou fêmea e, por sua vez, vai produzir gametas correspondentes ao seu sexo biológico a fim de gerar, futuramente, um novo organismo que vai dar continuidade a esse ciclo. Dessa forma, podemos dizer que a categorização macho e fêmea faz parte de todas as espécies que se reproduzem de maneira sexuada e a divisão dos gametas é simples: fêmeas produzirão gametas femininos, mais conhecidos como óvulos, e machos produzirão gametas masculinos, os espermatozoides.

Quando compreendemos que existe uma divisão entre macho e fêmea também devemos entender que esses seres sexuais são dimórficos, ou seja, são diferentes entre si — fisiológica e anatomicamente — e possuem características sexuais primárias e secundárias. Nesse ponto é importante ressaltar que essas características serão fator principal na hora da divisão por gênero (homem e mulher). O reconhecimento de cada um de nós acontece no momento em que nascemos e ele acontece como consequência dos órgãos sexuais desenvolvidos ainda no útero. Vale salientar também que casos extremamente raros onde o indivíduo é reconhecido como intersexual não anulam de forma alguma o fato do dimorfismo sexual existir.

Assim que uma criança nasce, ela é reconhecida como macho humano ou fêmea humana pelas suas características sexuais primárias, assim, as fêmeas são chamadas de meninas e os machos são chamados de meninos. Esse reconhecimento não tem como objetivo designar um gênero àquela criança, e sim reconhecer fatos biológicos. Não importando a linguagem usada ou a influência cultural, esses fatos biológicos continuarão sendo reais e o reconhecimento deles não deve ser considerado algo opressor. É importante também lembrarmos que a constatação desses fatos não é meramente reduzir o indivíduo às suas funções reprodutivas.

A opressão baseada em sexo começa no momento do nascimento e tem origem na biologia feminina e na exploração da capacidade reprodutiva feminina. Ela acontece através da imposição social de gênero. Esse é o rótulo utilizado pelas feministas para descrever um sistema que compreende e impõe socialmente formas de comportamento e de aparência a indivíduos de diferentes classes sexuais. É esse mesmo sistema que também atribui um valor superior de uma classe sobre a outra.

No momento em que acontece o reconhecimento dos fatos biológicos da criança nascida, sua vida já está pré-moldada. Fêmeas humanas são reconhecidas como mulheres e, desta forma, devem seguir um padrão só: a de uma filha prendada e respeitosa que, um dia, se torna uma esposa submissa e delicada e, enfim, uma mãe cuidadosa e exemplar. Na infância, a atenção dessas meninas é voltada à realização de tarefas de casa, como limpar e aprender a cozinhar. Brinquedos cor-de-rosa, que imitam panelas, fogões e conjuntos de louça reforçam o entendimento de que mulheres são cozinheiras e donas de casa por natureza, elas têm um dom totalmente inato e um instinto quase que sobrenatural para realizar essas tarefas.

Esse processo de atribuição de gênero — baseado no sexo — é chamado de socialização de gênero que ocorre de maneira eterna. Como dito anteriormente, esse processo começa muito cedo — no nascimento — e ele é imposto consciente e subconscientemente de diversas maneiras e seu principal objetivo é a imposição de formas de comportamento que servem apenas para satisfazer diferentes classes sexuais — e também para impedir a adoção de comportamentos indesejáveis. E foi pensando nessa ideia que surgiu a famosa frase “não se nasce mulher, torna-se”. O que ninguém nunca entendeu — ou quis entender — é que ela não refere-se à identificação individual de gênero e sim à construção da ideia do que é uma mulher e que no processo de construção dessa ideia as mulheres deixam de ser reconhecidas como seres humanos de uma classe sexual para serem reconhecidas como um mero símbolo. Ocupar o papel de mulher na sociedade significa ser parte de uma classe sexual inferior, é ser ensinada a ser submissa, passiva, paciente, compreensiva, obediente e a nunca desejar ser dominadora, poderosa e agressiva.

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino. — Simone de Beauvoir, O segundo sexo.

Precisamos reforçar aqui que a socialização de gênero e os papéis de gênero poderão variar culturalmente, ou seja, em lugares diferentes os comportamentos, a aparência e as características exigidas de uma mulher e de um homem serão diferentes. Mas dois valores que devem prevalecer majoritariamente são os mesmos em qualquer lugar: mulheres serão submissas e inferiores enquanto homens serão dominadores e superiores. A principal função desse sistema e desse processo é fazer com que a dependência das mulheres sobre os homens parece algo natural, inato e inevitável, o que torna a exploração do trabalho feminino emocional, sexual, doméstico e reprodutivo pelos homens muito mais fácil. A capacidade reprodutiva real perde sua importância para a capacidade reprodutiva percebida e isso determinará a classe sexual a qual você pertence. Pouco importa se, no final das contas, você é incapaz de performar esse papel imposto a você como mulher, seja por quaisquer motivos. Essa divisão sexual entendida como um fato é o que vai fazer com que você seja lida socialmente como mulher e que você será socializada como tal.

A socialização e a opressão de gênero devem acontecer independe da maneira como o indivíduo possa vir a reconhecer e sentir sobre si mesmo. A opressão feminina vai acontecer independente de pessoas que se reconhecem como mulheres, porque tal acontece justamente por mulheres habitarem corpos de fêmeas e serem lidas como seres de uma classe sexual inferior. O gênero aqui é, então, entendido como a principal ferramenta de opressão — essa que possui base material — e o fato de existir indivíduos que não se conformam com a maneira como foram lidos lá no início de suas vidas não vai mudar isso.

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Natalia

Feminista — não do tipo divertido -, lésbica, latino-americana e amadora em absolutamente tudo, até em ser eu mesma.