Durante a programação do IV Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura (EBPC), paramos para bater um papo com a professora Selda Vale da Costa, doutora em Ciências Sociais pela PUC -SP, coordena desde 2006 o Núcleo de Antropologia Visual (Navi) da Universidade Federal do Amazonas. A professora também é responsável por coordenar a Mostra Amazônica do Filme Etnográfico, que teve quatro edições até 2011. Selda realizou gravações ao longo de 20 anos sobre realidades amazônicas, que, sendo posteriormente organizadas em DVD, tornaram-se o começo do acervo do Navi. Além da coordenação do núcleo, a professora é docente do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia e PPG de Sociologia.
A conversa girou em torno do tema de especialização da pesquisadora, a antropologia visual, onde Selda defende que é um processo em construção e que, ao contrário do que possa parecer, não é mero registro da realidade, possuindo, como outros produtos audiovisuais, um senso estético. Confira mais na entrevista:
LAB F5 — A senhora poderia explicar como é captar a informação antropológica que está sendo filmada e a que não está sendo filmada? Como os dois tipos são integrados?
Professora Selda — Música, literatura, arquitetura — tudo isso são formas culturais e artísticas de expressar a tua leitura do mundo. A imagem é uma delas: você tem imagens que são reportagens visuais, momentos, registros; tem imagens que são documentos para a posteridade; e tem o que chamamos de antropologia visual. A antropologia visual [as duas palavras] está ligada à antropologia e imagem: ou seja, pode ser filme e pode ser fotografia. Isso quer dizer que quem está do lado de cá, com a maquininha [de filmar, de fotografar] tem que estar numa interação com quem está sendo visualizado. É um diálogo: a antropologia é um respeito ao outro, não é capturar, extrair, roubar a imagem do outro; é compartilhar com o outro o que está sendo visto. Por isso, muitas vezes quem está sendo filmado faz parte da produção: diz “olha, eu não quero que filme isso; eu acho melhor filmar isso aqui;”, etc.
Esse diálogo, essa cumplicidade na produção, é o que chamamos, entre outras coisas de antropologia visual: captar visualmente uma relação de diálogo entre quem é visto e quem está vendo.
LAB F5 — A antropologia visual, apesar de tratar de fatos, traça certos paralelos com a arte. A senhora poderia falar um pouco sobre isso?
A antropologia visual tem uma estética. [Ela] trabalha com a beleza, trabalha com a capacidade de não ficar ilustrando, através de certos recursos, a realidade. Mas não é uma chapa da realidade — na verdade, não existe isso: toda vez que você põe o olho numa câmera, você está recortando, captando e produzindo uma realidade. [Entretanto] para dizer que é um documentário ou um filme antropológico, a antropologia mexe com a estética. Se a gente começar a olhar desde os primeiros filmes chamados antropológicos — começou com o Jean Rouch, ou muito antes, com Margaret Mead, ou [Robert] Flaherty, com “O Homem de Aran” — que de certa forma encenavam a realidade e tinham um olhar estético, um olhar do belo: de pôr o melhor de qualidade estética dentro do filme. Então, o filme etnográfico não é uma simples reprodução da realidade seca: você pode [realizar] com ela. Temos aqui uma mostra desse primeiro filme, Ribeirinhos do Asfalto, que é uma encenação que trata de uma situação amazônica importantíssima que é feita com tal técnica, com tal estética que até ganhou o Kikito em Gramado. Então é fundamental a beleza, a estética, a qualidade da captação da imagem.
A gente diz que a imagem deve construir a narrativa.
É muito raro, em documentário, dizer que tem um roteiro prévio. O que você tem são intenções, [por exemplo]: “eu gostaria de ver como as pessoas produzem um barco aqui na Amazônia. Eu vou atrás dos mestres dos mestres do barco. O que eles vão me dizer? Como é que eles fazem?”. Conforme eles vão me falando, eu vou construindo minha narrativa numa edição posterior.
LAB F5 — Então o paralelo com a arte seria mostrar o melhor de cada cultura?
Não. Não tem esse melhor. Isso é qualitativo. É uma coisa subjetiva.
LAB F5 — Mas partindo desse ponto de vista do belo…
É procurar uma estética. O audiovisual não é pegar a câmera e ficar tirando foto jornalística: tem uma qualidade, tem uma estética, tem uma linguagem fílmica. Estética é a busca daquilo que pode realçar o mundo, dar cor ao mundo. Estética é o belo. Embora às vezes, o audiovisual se preste — mas é muito mais de reportagem — à denúncia. E às vezes, na denúncia, você tem que pegar [os fatos], como as filmagens da Raposa Serra do Sol, muitas com defeitos técnicos, que viraram o mundo mostrando a violência dos jagunços contra os povos indígenas. E isso já foi usado como material para filme etnográfico. Mas se você está trabalhando com outras condições, você tem que aprimorar a técnica, tem que ter qualidade estética: que se veja um filme que, mesmo falando da violência, ela seja capaz de que o teu olhar não se negue a ver. A estética é neste sentido, de te permitir cumplicidade. O antropólogo trabalha muito essa coisa do diálogo, do outro, da cumplicidade com o espectador.
LAB F5 — Então, não é mostrar o melhor, mas mostrar da melhor forma?
Isso. Exatamente.