Amazônia Real: um novo recorte territorial e geográfico para o jornalismo

Letícia de Oliveira Pereira
LabCon / UFMG
Published in
11 min readNov 28, 2023

Por Cesar Ferreira Alves, Gabriela Caroline Alves Claudino, Letícia Oliveira, Maria Eduarda Mendonça, Mariana Lage e Rúbia Bragança

Foto: Adriano Gambarini/ Fonte: Governo Federal

O veículo “Amazônia Real” se mostra como uma alternativa ao cenário do jornalismo brasileiro, no qual a região Sudeste desempenha um papel preponderante na pauta midiática nacional. Estando a maior parte dos veículos de comunicação concentrados nessa área geográfica, isso torna-se fator condicionante para as diretrizes jornalísticas seguidas no país. Apesar dos esforços de alguns veículos em descentralizar as pautas, a predominância do enfoque no Sudeste permanece como uma característica marcante do jornalismo no Brasil. Aqui, entra o que a Amazônia Real trabalha como missão, romper regras do jornalismo “ocidental, latinocentrico, colonizador, sudestino, preconceituoso e distanciado”; segundo Elaíze Farias, cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo.

Além da pauta do Amazônia Real não ser exclusivamente ambiental, sua estrutura é composta por 6 colunistas e inúmeros outros repórteres, resultando em sete editorias: Meio Ambiente, Povos Indígenas, Questão Agrária, Política, Economia e Negócios, Cultura e Especiais. Tais editorias recebem publicações diárias de segunda a sexta e cada uma delas percorre temas específicos voltados para a região Amazônica, realizando reportagens, entrevistas, coberturas e também materiais educacionais. O portal busca como fonte, principalmente, a ciência e os moradores locais, independente do eixo da editoria. O site também é composto de outras áreas que recebem menos atualizações, como os Vídeos Realidade, os Webstories e o Blog Jovens Cidadãos da Amazônia, com apoio do Pulitzer Center.

A concentração de recursos, empresas e eventos de grande relevância no Sudeste acaba por centralizar as atenções da mídia. A cobertura de assuntos políticos, econômicos e culturais reflete essa dinâmica, uma vez que as decisões governamentais, os desdobramentos econômicos e as manifestações culturais dessa região recebem uma cobertura mais ampla e constante. O predomínio do eixo Sudeste no jornalismo nacional muitas vezes relega outras áreas do país a uma cobertura secundária, diminuindo a visibilidade de importantes acontecimentos em outras regiões.

Nesse contexto, a proposta da Amazônia Real transcende os limites convencionais do jornalismo, buscando oferecer uma abordagem abrangente que foge dos padrões usualmente associados ao Sudeste do Brasil. Seu compromisso editorial é se distanciar de uma visão estereotipada do jornalismo ambiental e não se restringir exclusivamente a esse enfoque.

Compreendendo a importância de ir além do escopo tradicional do jornalismo ambiental, a Amazônia Real se destaca por sua cobertura diversificada e aprofundada. O veículo se propõe a explorar questões que vão além das problemáticas ambientais, abarcando uma gama de temas que abordam não apenas a natureza, mas também os aspectos sociais, políticos e culturais intrínsecos à região amazônica.

Página inicial do site Amazônia Real no dia 09/11/2023

Essa abordagem não convencional é refletida na ampla variedade de assuntos cobertos pelo veículo. Desde o monitoramento das questões ambientais, como desmatamento, queimadas e questões climáticas, até a exposição de casos de violência contra grupos minoritários e a análise dos movimentos sociais e políticas governamentais, a Amazônia Real se empenha em oferecer uma narrativa que abrange a complexidade e a diversidade da região.

A amplitude dos temas abordados pela Amazônia Real se demonstra pelo trabalho de reportar casos de violência direcionados a grupos minoritários, como indígenas, mulheres, crianças, pessoas negras e membros da comunidade LGBTQIA +. As produções jornalísticas destacam as lutas e desafios enfrentados por esses grupos, contribuindo para a conscientização e o apoio a essas comunidades.

Além disso, há a divulgação de eventos em que o projeto participa ou nos quais algum membro representa a Amazônia Real, assim como a promoção de premiações relevantes. Essas ações visam evidenciar o engajamento e reconhecimento do veículo em questões fundamentais, além de destacar o mérito e a importância das iniciativas apoiadas.

Outra vertente de material produzido pelo veículo é o balanço da atuação do governo atual, acompanhado de perto, identificando ganhos, perdas ou estagnações de direitos, principalmente no que tange às questões indígenas. Assim, as decisões políticas relacionadas a esses grupos são analisadas criticamente para compreender seu impacto no cenário social e ambiental da Amazônia. A relação entre a pandemia, mortes e a exclusão social é outra frente crucial desenvolvida, evidenciando como os desafios de saúde pública se entrelaçam com questões estruturais e de marginalização, afetando de maneira desproporcional as comunidades locais.

Desentendendo o Jornalismo: para além da cobertura ambiental

A proposta do jornalismo produzido pela Amazônia Real é, além de informar, representar populações excluídas e estigmatizadas, baseada nas diretrizes dos direitos humanos. São tema das matérias da agência os povos indígenas e populações tradicionais, comunidades quilombolas, ribeirinhas, mulheres, refugiados, entre outros grupos sociais que, em geral, são pouco representados na mídia tradicional, e quando o são, é de forma preconceituosa e estereotipada.

A partir desses objetivos, a Amazônia Real não pode ser reduzida ao jornalismo ambiental. Ela produz jornalismo. Sendo assim, os trabalhos da agência dão voz aos povos amazônicos, trazendo questões ambientais, mas, também políticas, culturais, sociais e que atendem as demandas das populações locais. Segundo Elaíze Farias, nos dez anos de atuação da Amazônia Real, foram rompidas muitas regras do jornalismo ocidental.

O propósito primordial do projeto é o de quebrar preconceitos e aproximar o jornalismo das populações e questões dos povos amazônicos. Por isso, a agência tem forte compromisso com a transparência e é parte de um projeto de credibilidade jornalística. Além disso, investe na produção e publicação de reportagens próprias, sem replicação de releases.

Para além do desafio da produção de informações que dê visibilidade aos povos amazônicos, outra questão que Elaíze Farias destacou é a desigualdade tecnológica e de comunicação da Amazônia, o que impõe um desafio na hora de produzir matérias. Com isso, a equipe da Amazônia Real é sensibilizada e preparada para lidar com diferentes circunstâncias nas entrevistas e abordagens dos temas das reportagens. A quebra de preconceitos e estereótipos começa desde o princípio das produções, pois a intenção é trazer um olhar humanizador e realista sobre as populações locais.

A Amazônia Real se compromete em propor matérias que tenham relevância e que possam, de alguma forma, gerar impacto social positivo. Dessa forma, a busca por informações e fontes é cuidadosa. Algumas matérias levam meses para serem produzidas, e inclusive, há casos em que as produções, devido ao tema, geram riscos para os repórteres e para as fontes. Nessas situações, o protocolo é priorizar a integridade das partes, mas na medida do possível, dar voz aos que mais precisam e que são silenciados ou ignorados pela mídia dominante. Com isso, não há distanciamento ou imparcialidade, pois o objetivo é a representação de questões importantes.

Print da matéria “A gigante da mineração não é empresa de varejo” — 23/08/2023

Perfil do jornalista da Amazônia Real

Os repórteres da Amazônia Real são, majoritariamente, nativos da Amazônia ou moradores da região. Além disso, todos os repórteres são remunerados, desde o surgimento da agência, nunca houve trabalho jornalístico voluntário. O projeto também prioriza o trabalho de repórteres que sejam mulheres, pessoas LGBTQIA+, indígenas e negras.

Na linha do “desaprender” o jornalismo sudestino, no modelo ocidental, eles quebram com os conceitos de distanciamento e imparcialidade.

“Na prática, é impossível ser imparcial no jornalismo, você tem que ter um lado. O da Amazônia Real é o lado dos povos que são violados e tem seus direitos violados e que numa grande mídia, por exemplo, que naqueles roteiros de reportagem eles vão sempre pro final. Sempre com aquela cobertura desigual, com interesses econômicos lá em cima e os afetados no final”, afirmou Elaíze.

É prioritário que os repórteres da agência tenham um olhar intercultural, interdisciplinar, bem como humildade, paciência e concentração. Além disso, ao contrário da mídia mainstream, que sempre coloca especialistas como voz de autoridade, para dar credibilidade à reportagem, os repórteres da Amazônia Real devem sempre preocupar-se com a presença dos indígenas e povos marginalizados como fontes principais.

Também é importante que os jornalistas não se coloquem numa posição de salvadores, pressupondo que os povos amazônicos estão sempre dispostos a darem entrevistas, simplesmente porque terão “visibilidade”. Dessa forma, é necessário obedecer às regras das comunidades que se busca, o tempo, além de regras de comportamento e também de vestimenta.

Censura e Ameaças

Ao todo, a Amazônia Real enfrenta 4 processos judiciais de empresas que se sentiram prejudicadas pelas matérias publicadas. Uma delas é a reportagem “Iate da Amazon Immersion estava sem autorização”, do jornalista Leanderson Lima. Publicada em 14 de maio de 2021, nomeava os proprietários de iates utilizados no evento “Amazon Immersion”, realizado durante as restrições sanitárias estabelecidas a nível estadual em razão do auge da pandemia da Covid-19 em abril do mesmo ano. Na expedição que durava alguns dias e contava com festas a bordo, turistas brasileiros e estrangeiros navegavam pela bacia do rio Negro e chegaram a visitar até mesmo comunidades indígenas que não tinham recebido a vacinação até aquele momento.

Em resposta, empresários citados pediram na justiça a retirada da reportagem do ar, alegando que seus nomes estavam equivocadamente associados como organizadores do evento clandestino, sem consulta prévia, e que estavam sendo vítimas de calúnia e difamação. A justiça da 10ª Vara Cível e de Acidentes de Trabalho da Comarca de Manaus acatou o pedido e, apesar da contestação de apenas alguns trechos por parte dos empresários, determinou a remoção em caráter liminar sob pena de multa. Ao cumprir, a Amazônia Real declarou que estava sendo alvo de censura, pois a decisão estava amparada em informações não comprovadas e violava a garantia constitucional do exercício da liberdade de imprensa. Na época, diversos veículos e organizações defensoras da livre atividade jornalística, como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Repórteres Sem Fronteiras (RSP), saíram em defesa da Amazônia Real.

Para Elaíze Farias, que chegou a investigar ao longo de 6 anos um caso de abuso sexual de meninas em São João da Cachoeira (MA) e recebeu ameaças de um dos réus acusados, é preciso ter coragem para fazer esse tipo de trabalho, tanto como jornalista quanto como entrevistado.

“As pessoas perguntam se temos medo ou assunto proibido. Não temos. Precisamos ter cuidado, principalmente para que as pessoas que entrevistamos não sejam ameaçadas ou corram perigo. Nós nos colocamos no lugar de quem entrevistamos. Em alguns casos, já deixamos de fazer matérias, devido a situações de extrema ameaça. De morte, inclusive”, explicou Elaíze.

Embora siga protocolos de segurança, a Amazônia Real recebe ameaças veladas que colocam em risco os jornalistas, que vivem na região. Segundo Elaíze, “não é como um jornalista da Globo que vem para cá, faz uma matéria e depois volta para a segurança da sua casa. Então, temos que ter muito cuidado com os repórteres que trabalham conosco, inclusive com relação à saúde mental”, e reforça a necessidade de ter cautela para acompanhar as histórias durante meses ou anos, estando sempre em contato com as comunidades locais.

Jornalismo multiplataforma

Além do site, que é o principal meio de comunicação da agência, a Amazônia Real também investe em outros canais, como nas redes sociais Instagram, Facebook, YouTube, Flickr e Twitter. Em 2013, as produções da Amazônia Real eram focalizadas na página web, entretanto, devido a ascensão das redes sociais como fontes de informação nos últimos anos, a agência se reorganizou em relação a essas novas demandas e passou a produzir, também, para esses canais.

No YouTube, por exemplo, é possível encontrar trabalhos exclusivos em formato de vídeo, tais quais séries documentais e mini docs. Na produção “Vozes que resistem”, somos apresentados a relatos de ativistas e moradores que lutam em prol dos povos originários e da população marginalizada. Em um dos episódios, conhecemos, brevemente, a história de Erasmo Teófilo, presidente da Cooperativa de Agricultores de Volta Grande do Xingu, que se mobiliza em defesa dos trabalhadores rurais que sofrem com invasões de grileiros, madeireiros e fazendeiros em locais destinados ao programa de reforma agrária. Em 2019, Erasmo sofreu uma tentativa de homicídio no município de Anapu, no Pará. Segundo ele, o “Gado não deve valer mais do que gente”.

Já na plataforma Flickr, é possível encontrar projetos fotográficos que retratam os problemas ambientais e sociais da Amazônia, bem como a cobertura de eventos relacionados a essas temáticas. No álbum “Crise climática afeta ribeirinhos”, realizado em parceria com o Coletivo Caranguejo-Uçá, vemos alguns dos impactos dos eventos ambientais extremos aos povos que vivem na região ribeirinha e dependem do rio e da pesca para sobreviver.

Fonte: Valter Calheiros

Além das produções de teor jornalístico, a agência também organiza debates sobre as principais questões que afetam a Amazônia, convidando, em especial, a juventude amazônica para refletir acerca desses temas. Nesse sentido, são realizadas palestras, oficinas e exposições fotográficas para estudantes e jovens lideranças. A oficina “Jornalismo socioambiental”, por exemplo, tem a finalidade de aprofundar o conhecimento de jornalistas sobre temáticas relacionadas às mudanças climáticas, desmatamentos, preservação da floresta e comunidades tradicionais.

Oficina de Jornalismo Socioambiental em 2019. Fonte: Alberto César Araújo

Jornalismo Independente: formas de financiamento e sobrevivência da Amazônia Real

Por se tratar de uma organização sem fins lucrativos e com produção de jornalismo independente, a Amazônia Real mantém seu financiamento apenas com doações de leitores e contribuições de instituições filantrópicas. O critério para o recebimento dessas verbas é claro e consiste em “tanto os doadores individuais quanto as organizações parceiras atuam com os mesmo valores defendidos pela Amazônia Real: equidade, igualdade, diversidade e justiça social e ambiental”, diz trecho publicado no portal da instituição. Além disso, a Agência também está aberta a parcerias com empresas privadas, desde que possuam responsabilidade socioambiental. Vale destacar que não são realizados quaisquer tipos de acordo com empresas ou pessoas envolvidas com crime ambiental, violações de direitos humanos e territoriais, trabalho escravo, violência contra crianças e adolescentes e contra a mulher.

O primeiro financiador da Amazônia Real foi a Fundação Ford, que auxilia com gastos de administração, pagamento de repórteres e demais pagamentos com despesas estruturais desde 2014. A agência também conta com parcerias duradouras com a Aliança para o Clima e o Uso da Terra (CLUA), desde 2018, e com a organização independente Repórteres Sem Fronteiras, desde 2019. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), segundo entrevista com a Amazônia Real, financia despesas administrativas, honorários de advogados, entre outras taxas de regulamentação.

Entre outras contribuições financeiras destinadas à Amazônia Real, destacam-se projetos que foram financiados por empresas parceiras. A agência foi selecionada pelo Google News Iniciative para participar do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo, que garantiu verba para o desenvolvimento do projeto “#CoberturaCovid19Amazônia”, realizado em 2020. O Rainforest Journalism Fund também concedeu uma bolsa para a Amazônia Real, possibilitando a execução do projeto “Jovens Cidadãos da Amazônia”, para o período de 2020 a 2022.

Outros nomes também já passaram pela história da Amazônia Real, com contribuições que permitiram o desenvolvimento de muitas ações, projetos e reportagens, tais como Fundação Heinrich Böll, Instituto Serrapilheira, Observatório do Clima, Repórter Brasil, Open Society Foundations e muitas outras. No entanto, ao olharmos as empresas e instituições parceiras, é fato curioso que o grupo Ford seja um apoiador do jornalismo socioambiental. Desde o fim da década de 1920, com a criação da Fordlândia, o grupo explora os recursos naturais da Amazônia e expande ainda mais o desmatamento.

Ou seja, é contraditória a parceria da Amazônia Real com uma das companhias que mais explorou a biodiversidade amazônica e foi uma das pioneiras na degradação do local. Daí surge o seguinte questionamento: até que ponto o jornalismo independente consegue se manter isento de relações ditas “inaceitáveis” e não ceder a benefícios financeiros de parceiros questionáveis?

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