Debatendo a moda para além do estilo: a representatividade em pauta

Com empreendimento que vai além de cliques e anúncios publicitários, o jornalista Arthur Bugre usa blog de moda para falar sobre autoestima e representatividade da população trans e negra

Luíza Lisboa
LabCon / UFMG
18 min readNov 25, 2019

--

Por Bianca Gomes, Breno Benevides, Luana Lima, Luíza Lisboa e Nathália Ribeiro.

O universo da moda, que antes era produzido por poucos e disseminado midiaticamente para a população em veículos tradicionais, como revistas e jornais, foi consideravelmente ampliado com o surgimento e expansão da internet. Em parte, esse movimento de ampliação e democratização do setor partiu dos novos “criadores de conteúdo” ou “influenciadores digitais”, muitos trabalhando no aumento da diversidade, visibilidade e representatividade. Pessoas que não pertencem ao padrão estético imposto socialmente e que historicamente não ocupam lugares de destaque dentro do campo da moda encontram agora, nos blogs e redes sociais, um espaço para falar sobre a própria expressão de beleza.

Editoriais de revista, programas de TV, passarelas e atrizes famosas geralmente fazem parte das memórias acionadas quando pensamos em moda. A medida que ela norteia o referencial de beleza de cada época, também está em constante mutação. Mais do que exaltar o célebre, a moda é uma expressão das preferências, das lutas, do que — e como — cada indivíduo quer se apresentar ao mundo.

Em meio a essas discussões, está a história do jornalista mineiro Arthur Bugre, de 33 anos, que encontrou tempo em sua profissão para desenvolver um projeto pessoal: a construção da marca “Bugre Moda”, que tematiza assuntos do ramo da moda em diferentes formatos — podcast, imagens, textos, vídeos… — e constitui também um próprio espaço de expressão pessoal de seu autor, sendo um homem negro transgênero.

Foto: Reprodução/Acervo pessoal.

O blog surgiu com o intuito de preencher lacunas na moda observadas por Bugre que inclusive fazem parte de sua vivência pessoal, e ajudar a pessoas que também sofriam com a ausência de representatividade.

Para Bugre, a transição de gênero é um processo que lida diretamente com a própria imagem, o que mostra a importância de um lugar para apresentar uma moda representativa e que acolhe pessoas com essa experiência em comum.

A dedicação de tempo na rotina do jornalista mostra que o blog vai além de apenas produzir conteúdo, mas também envolve se conectar e atender as necessidade de um público específico. Bugre diz se preocupar bastante com esse aspecto, enxergando seus leitores com empatia e oferecendo conteúdos que estão em falta no mundo virtual.

“[Ao] atender esse pessoal trans, é péssimo você deixar essa pessoa esperando resposta, porque eu já estive nesse lugar — e estou nesse lugar, porque eu ainda estou nessa transição. Então surgem um milhões de dúvidas. E por que não parar pra ajudar também quem está precisando?”.

Formado em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especializado em Coach de Moda e Autoestima também pela PUC Minas, ele concilia o projeto Bugre Moda com outros trabalhos: sua atividade principal, como jornalista na Rádio UFMG Educativa, e ainda com o trabalho no Nossa BH, um coletivo formado em 2008 em Belo Horizonte com o objetivo criar uma cidade mais “justa, democrática e sustentável”.

Um panorama dos blogs de moda

As novidades sobre o mundo da moda, antes da expansão da internet, eram limitadas ao espaço jornalístico tradicional: em editoriais próprios ou nas colunas de publicidade dos jornais diários. A popularização dos blogs possibilitou um novo jeito de noticiar e falar sobre os mais variados assuntos, incluindo a moda.

Esse espaço, inicialmente pessoal, passou a ser mais temático e personalizado, conseguindo atingir com mais facilidade gostos diversos, já que a multiplicidade de temas foi sendo apropriada por uma variedade de blogs. Uma plataforma que não só trouxe mais personalização, mas também instantaneidade e interatividade para os leitores.

Em uma busca rápida pelas palavras-chave “Blog de moda”, o Google oferece, nos primeiros resultados, blogs em que o público-alvo são principalmente mulheres cis, pois em seus posts segue-se um padrão estético de feminilidade e esse aspecto torna-se visível pelos exemplos e referências de beleza dos quais eles apresentam. Na busca, o primeiro resultado é o blog ModaIt, que traz outros temas como culinária, dicas de como se vestir, assim como acessórios, produtos de beleza e tendências. Os sites seguintes apresentam uma linha parecida, alguns incorporando assuntos como gastronomia, viagens, família, lifestyle e celebridades. Dois deles dão um foco mais claro para notícias do mundo das passarelas. Apenas um dos blogs, a partir dessa busca, apresenta uma categoria específica para moda masculina, o blog da Alice Ferraz, porém é um tópico pouco desenvolvido se comparado com os outros temas, sendo em grande maioria análises de roupas de celebridades.

Quando as palavras-chave são mais específicas para “Blog moda masculina”, os resultados se voltam para a estética da masculinidade “viril”, com palavras que deixam claro qual é o seu público em nomes como “Macho Moda”, “Moda para homens”, “Moda para macho”, “Canal masculino” e “O cara fashion”. As temáticas são bastantes variadas, indo de dicas de acessórios, estilos de barba, cortes de cabelo, tendências, novos estilos, comportamento e afins. O “Macho Moda”, por exemplo, apresenta um brechó para os leitores e dicas de lojas nacionais. Já “O cara fashion” é o que mais se diferencia dos demais, trazendo além das tendências de moda masculina, a moda de passarela e estilos mais alternativos.

As pesquisas citadas foram feitas em uma aba anônima no navegador para minimizar a interferência da personalização dos algoritmos por usuário.

O que o Bugre produz?

A partir das plataformas digitais é que o trabalho de Arthur Bugre ganha força. Isso porque os recursos oferecidos pela internet são essenciais para que ele possa explorar os temas que considera relevantes em seu trabalho e também para praticar o empreendedorismo de uma forma mais mercadológica, isto é, a fim de gerar renda por meio do seu negócio e visibilidade para o trabalho desenvolvido.

Além do blog, Bugre produz uma diversidade de conteúdos que se distribuem entre as diferentes plataformas em que ele atua — Instagram, Facebook, podcasts, e também já produziu vídeos para o Youtube. Para além desse conteúdo que é produzido e compartilhado publicamente, Bugre ainda presta serviços de consultoria de estilo e autoestima.

Capturas de tela da página inicial do blog Bugre Moda.

Atualmente, o conteúdo do blog inclui textos com dicas de moda, estilo, decoração e outros assuntos. Além disso — e principalmente -, é um espaço de reunião dos conteúdos de outras plataformas e de divulgação dos serviços de consultoria. O blog é como a casa de todo o projeto Bugre Moda.

Quando conversou conosco, ele revelou que seu projeto inicial foi o Facebook, onde ele falava sobre moda tomboy — um estilo de se vestir em que mulheres usam peças tipicamente associadas ao guarda-roupa masculino. Bugre alcançou mais de 12 mil curtidas com a página e nunca mudou a matriz do conteúdo — ou seja, por lá ele continua abordando a moda tomboy.

Já o Instagram veio mais tarde, já durante a transição de gênero do próprio Bugre, e seu conteúdo é voltado para a moda masculina, incorporando um pouco da tomboy. No perfil do Instagram, Bugre alcançou resultados ainda mais impressionantes: são 50 mil seguidores.

Instagram @bugremoda.
Facebook Bugre: Moda Tomboy — Style.

Para se ter uma ideia do quão amplo é o trabalho do jornalista, ele possui até mesmo um brechó online em seu site, onde ele anuncia e vende roupas que não usa mais, ou que ganhou de parceiros da marca Bugre Moda.

Outro meio utilizado é o canal no Youtube, também chamado Bugre Moda. Lá, ele explora basicamente o mesmo conteúdo que o Instagram, a moda masculina, mas sem mostrar o seu rosto, o que esbarra em questões relacionadas a seu processo de transição de gênero. Ele investe em um estilo de vídeo parecido com slides, apenas com imagens gerais, e com uma locução ao fundo.

“Eu tentei alimentar vídeo, mas vídeo para mim ainda é muito custoso. A imagem é muito custosa e eu tenho plena consciência que é questão da transição [de gênero]. Ela ainda é doida, ela é complicada. Você tem que ter muita paciência com você para saber que tudo tem sua hora, que daqui a pouco vou ficar mais à vontade comigo […]. Mas o áudio pra mim, depois de 10 anos trabalhando com rádio, é muito mais fácil.”

A partir dessa dificuldade em lidar com sua própria imagem, combinada com a sua experiência com o áudio na Rádio UFMG Educativa, Bugre lançou o “Podcasts do Bugre” em setembro de 2019. Esse formato tem ganhado bastante visibilidade no mundo dos influenciadores digitais nos dias de hoje. Segundo uma pesquisa divulgada em junho de 2019 pelo Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística), 40% dos internautas brasileiros já ouviram podcasts, o que corresponde a cerca de 50 milhões de pessoas. Destes, 19% ouvem podcast três vezes ou mais na semana, enquanto 13% ouvem uma vez por semana, 11% duas vezes por semana e cerca de quatro em cada dez não tem uma frequência definida.

Devido a esse crescimento no número de ouvintes de podcasts, ele resolveu também não ficar de fora, afinal já possuía conhecimento e muito interesse na área. Ele ressalta que é algo realmente prazeroso de fazer e que está gostando bastante de se aventurar nesse tipo de conteúdo.

Apesar da moda ser um dos temas mais recorrentes abordados por ele, os podcasts abordam um conteúdo mais voltado às experiências da transição de gênero e da negritude, com assuntos como autoestima, identidade, preconceitos e outros. Os três últimos podcasts, para exemplificar, foram: “População negra: de que maneira você trata seu semelhante?”, “Como saber se você é um homem trans?” e “Acolhimento é o primeiro passo para resgatar sua autoestima”.

É possível perceber que Arthur Bugre produz uma diversidade ampla de conteúdo. Porém ele nos conta que, no final, os temas acabam se encaixando e ele consegue ajudar seu público de várias formas, seja falando sobre moda tomboy, sobre moda masculina, ou sobre representatividade negra e trans.

Mas afinal, o que é moda tomboy?

Um dos pontos principais do empreendimento de Bugre e que inclusive deu início ao Bugre Moda, é a moda tomboy: um estilo de se vestir em que mulheres usam algumas peças tipicamente associadas ao guarda-roupa masculino ou, até mesmo, envolvendo adaptações aos traços físicos e de comportamento. O tomboy surgiu no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando as mulheres passaram a exercer as atividades dos homens e maridos que estavam na guerra, e começaram assim a usar calças (peças vistas como masculinas) para trabalhar, pois eram roupas confortáveis e que facilitavam a mobilidade.

Mulheres na Segunda Guerra . Fonte: Delirium Nerd (2018).

A precursora do estilo tomboy nas passarelas foi a estilista Coco Chanel, responsável por inserir roupas e acessórios masculinos na moda feminina, como a alfaiataria e as calças, mas agora modeladas e produzidas especialmente para as mulheres.

O movimento foi impulsionado pelas feministas e se difundiu com a ajuda de personalidades famosas que aderiram ao uso de ternos, chapéus e demais peças do guarda roupa masculino. Isso causou uma grande inquietação social por queixas de que a moda abalaria os limites estabelecidos entre as construções de gêneros estritamente demarcadas da época.

Coco Chanel usando calças feitas por ela. Fonte: Esquerda Diário (2015).

Com o passar dos anos, mais espaço foi conquistado e aos poucos a moda tomboy tomou forma. Audrey Hepburn fez parte das celebridades referência de beleza que ajudaram a popularizar o uso das calças entre as mulheres na década de 1950. Logo depois, na década de 1960, a irreverência, extravagância e jovialidade deram contornos à moda unissex, com participação marcada pelo movimento hippie. Traços do movimento punk ajudaram a moldar personalidades femininas com traços ainda mais masculinizados, com roupas pretas, de couro e com detalhes metalizados. Até mesmo a queda do muro de Berlim teve influência sobre a moda, com a difusão dos ideais de liberdade — inclusive de como se vestir. Tudo isso caminhou para as mais variadas formas de expressão do século XXI, onde ainda é mais perceptível a apropriação de peças ditas como masculinas pelas mulheres e vice-versa.

Para além de apenas uma forma de se vestir, a moda tomboy carrega consigo potencialidades políticas, como a possibilidade de que mulheres e homens possam usar mesmas peças de roupas e aumentar o leque de escolhas. Mas, além disso, ainda levanta questões de gênero mais amplas, envolvendo feminismo e transsexualidade.

Ao nos contar sua trajetória pessoal e de seu empreendimento, Arthur Bugre revela que foi ao se identificar como tomboy que ele viu uma possibilidade de se vestir de maneira diferente, cortar o cabelo e assumir traços tipicamente masculinos.

Ele relata que a criação da página no Facebook, o primeiro projeto realizado no Bugre Moda, foi idealizada com o conteúdo sobre a moda tomboy pois era a carência representativa que ele percebia na internet naquele momento. No entanto, ele conta que esse tema está se deslocando das suas preferências para produções atuais, sendo o Facebook sua rede com menor movimento atualmente. Ele considera que errou muito ao direcionar os públicos no início das suas redes, e por isso ele encontra, hoje, mais dificuldade em encaixar esse tipo de moda nos seus conteúdos em geral.

Bugre nos explica que a presença feminina em suas redes pode acionar uma certa resistência que homens trans têm com os aspectos ligados à feminilidade. Acima de tudo, ele diz que procura construir um ambiente de conforto para aqueles que dividem vivências parecidas com a dele — por isso o recente direcionamento de abordagem para além da moda tomboy.

Por que a consultoria é importante? Outro empreendimento entra em jogo

Arthur Bugre, ao perceber a falta de representatividade e conteúdos que contemplam suas necessidades como homem trans negro, viu na especialização de coaching a oportunidade de expandir seu projeto. Dessa forma, em 2018 surgiu o empreendimento como coach de autoestima e carreira, movimento pelo qual Arthur busca sanar afetos de pessoas no mesmo contexto que ele, através do compartilhamento das experiências que o ajudaram a entender seu processo de transição e questões relacionadas à negritude.

A especialização de “Gestão de Pessoas: Carreiras, Liderança e Coaching” é oferecida pela PUC, podendo ser presencial ou online. Uma das vertentes do curso, segundo a página oficial da universidade, diz respeito a um método de aperfeiçoamento da “Inteligência emocional: como desenvolver competências sociais e de relacionamento?”, ponto de enfoque dos serviços oferecidos por Bugre.

Bugre explica que seu público, composto em sua maioria por pessoas negras, mesmo possuindo talentos incríveis, desacreditam em seu potencial e simplesmente enterram suas expectativas de carreira. Essas pessoas não acreditam que conseguem ir além, que vão conseguir uma promoção ou que serão capazes de se impor. É em cima dessas dificuldades que Bugre muitas vezes desenvolve as consultorias. Atualmente, ele atende muitas pessoas fora de Minas Gerais, através da internet.

No curso de coaching, também é apresentada uma vertente voltada para ajudar pessoas que buscam perder peso, mas ele decidiu focar especificamente nos eixos de autoestima e carreira. Enxergando as dificuldades enfrentadas na sua própria experiência como homem trans negro, Bugre reconhece a importância de ter alguém para auxiliar nesse processo, que pode por muitas vezes ser conflituoso. Decidiu cobrar preços baixos, para conseguir alcançar e ajudar mais pessoas. Ele diz gostar muito do que faz e pretende investir nas consultorias.

“Então eu fui naquilo que eu queria — aquilo que eu passei [se refere ao eixo escolhido dentro da especialização de coach]. Esse empoderamento ou início foi muito dolorido, foi muito mais complicado. Eu tento passar num preço muito mais acessível, e vem pessoas de vários lugares. O valor não chega a ser muito alto, mas é uma coisa que eu gosto.”

Todo seu envolvimento com o projeto e com o público é via internet, desde das consultorias, até o blog de moda. São poucos os encontros presenciais, que ocorrem especificamente em alguns atendimentos de consultoria, já que não é muito viável devido aos custos. Uma sala para aluguel custa, em média, R$60,00 a hora, o que não é interessante para ele ou para o cliente, então o âmbito online se torna mais proveitoso.

Quando questionado sobre a vulgarização do coaching, Bugre nos disse que há uma quantidade considerável de profissionais que realmente não atua com seriedade ou com responsabilidade. De acordo com o jornalista, um coach sério trabalha com perguntas para a partir delas criar um plano de ação juntamente com o cliente. É através do plano de ação, com perguntas que vão identificar e trabalhar o problema, que a consultoria funciona. Ao longo do processo a própria pessoa vai achando seu caminho — não é um processo de dependência no consultor.

“Por exemplo, talvez a autoestima está tão lixo, que não adianta alguém falar para você: Acorda! Tenha força! Tenha disciplina! E vença! Você escuta isso todo dia. Quem é [coach] sério mesmo tem que entender o que está acontecendo. Tentar identificar o que realmente está te amarrando, e a partir daí a gente vai fazer algumas perguntas: Por quê disso? Por quê daquilo?”

O foco do Bugre é a autoestima da população negra, que “muitas vezes é ignorada em consultório, seja de coach ou de psicologia”, ele declara. Bugre conta que as terapias que frequentou eram feitas por profissionais brancos e cigênero que, mesmo dando conta de algumas questões, negligenciaram aspectos referentes a gênero e raça. Devido a essas experiências que ele viu ainda mais a importância de ocupar esse lugar, e de representar e acolher esse público. Hoje Bugre enxerga mais psicólogos que dão atenção a essas dificuldades e fica aliviado que isso esteja acontecendo.

Foto: Luíza Lisboa.

Negritude e transsexualidade: cenário e motivações

A representatividade, que muito tem sido falada atualmente, é a forma de representar com efetividade e qualidade um segmento historicamente invisibilizado da sociedade. Uma pessoa representativa é aquela que em patamar de destaque/influência exalta suas qualidades características da minoria social da qual faz parte.

Percebemos que a motivação de Arthur Bugre com sua marca vem justamente da necessidade de suprir as lacunas de informação sobre as questões que o afeta, principalmente quanto à falta de representatividade transgênero. Bugre revelou que ao buscar conteúdos que pudessem responder suas dúvidas e o auxiliar com orientações sobre as suas vivências como homem trans negro, percebeu que os blogs de moda não contemplavam pessoas dentro da mesma realidade que ele.

A partir disso, foi desenvolvida uma análise feita por nós, para compreender a reverberação dos debates sobre os homens trans negros no mundo digital, com ressalva aos devidos recortes explicitados por Bugre em entrevista.

“A gente não tem referência nenhuma. A gente não tem representatividade nenhuma. Os dois maiores [homens trans] aqui de Minas, os dois são brancos e ‘padrão’ [em termos estéticos].”

Explorando esse tema, realizamos uma pesquisa em plataformas de busca sobre a percepção do público em geral do que é ser uma pessoa transexual. Notamos que muito sobre essa pauta não é discutido e que uma parcela da população sequer sabe o que é transexualidade.

No Google Trends, ferramenta do Google que mostra métricas sobre os termos mais procurados na plataforma, já é possível notar que 5 dos 11 resultados, mostrados no campo de pesquisas relacionadas classificadas por grau de ascensão, são sobre dúvidas acerca do que é transexualidade ou uma pessoa trans. Especificamos mais os termos de busca na tentativa de aproximar os resultados da questão apresentada por Bugre e 3 de 8 resultados das pesquisas relacionadas são sobre perguntas acerca do que “é” ou “significa ser homem trans”. Já ao pesquisar o termo “homem trans negro” a plataforma mostrou que “Não há dados de pesquisa suficientes para exibir aqui”.

As questões apresentadas anteriormente são somente um suporte para situar, em escala quantitativa, as discussões com esses termos e assuntos em recorrentes em pesquisas no Google, o que poderia indicar uma tentativa do público de se informar — bem como poderia dizer de uma tendência de assuntos em circulação no meio digital.

Um dos pontos que Bugre ressalta na entrevista é a escassez de conteúdos que dialogassem com a realidade dele em questão de representatividade, referências e estilo de vida — o que se verifica também no contexto dos blogs de moda, estabelecido para um público limitado, geralmente constituído de uma moda padrão, sem muita diversidade diante das imagens apresentadas e textos desenvolvidos.

Ao procurarmos por pessoas influentes no meio online, seja por Instagram ou Youtube (plataformas mais usadas por Bugre) associadas a temas como moda e coach, não conseguimos encontrar nenhum resultado diretamente ligado a homens trans negros, sendo a maioria das publicações direcionadas a conteúdos políticos. Em uma matéria do Huffpost sobre “33 youtubers negros que você precisa conhecer, segundo Murilo Araújo”, surgida a partir de uma publicação do Twitter de um influencer negro, nenhum homem trans negro foi citado.

Em pesquisas feitas pelo grupo com o intuito de aferir a relação da saúde mental da população negra, percebe-se uma quantidade de estudos reduzida sobre um assunto. Os recortes com base em raça acontecem em níveis menores, quadro agravado quando a pesquisa é associada à transexualidade. Nos estudos que já se tem sobre saúde mental da população negra, os resultados são desfavoráveis.

Um estudo da UNB, Universidade de Brasília, (do período de 2012 a 2016) que aponta os principais determinantes para o suicídio (ponto 1.7) coloca, entre os determinantes de nível psicológico: rejeição, discriminação, racismo e LGBTfobia. Dentre as principais causas associadas ao suicídio em negros também está a “não aceitação da identidade racial, sexual e afetiva, de gênero e de classe social.” Dentre os jovens pesquisados, em um recorte de gênero, a maioria das ocorrências de suicídio homens e mulheres negros. Como explicitado pela pesquisa: “Em 2016, a cada 100 suicídios em adolescentes e jovens brancos do sexo masculino, ocorreram 150 suicídios em adolescentes e jovens negros, do mesmo sexo” e “Em 2016, a cada 100 suicídios em adolescentes e jovens brancas, ocorreram 120 suicídios em negras”.

Os dados apurados servem como suporte para situar como as temáticas recorrentes na vida profissional de Arthur Bugre (enquanto digital influencer e coach de autoestima e carreira) são debatidas, a fim de explicitar a escassez de referências e representatividade e reverberações em níveis de saúde mental. Essas informações ajudam a entender o grande peso que a representatividade traz, principalmente para um público que se vê tão pouco representado e cercado por uma padronização de estilo.

A apropriação das plataformas digitais proporciona autonomia ao autor, na escolha do quê e como produzir seu conteúdo, algo que a editoria de um veículo tradicional não possibilita, dificultando que o mesmo grau de personalização que as plataformas de mídias sociais possuem seja desenvolvido.

É baseado nessas questões que Bugre diversifica seu conteúdo, seja no Blog com assuntos variados e uma atenção especial ao estilo tomboy, no Instagram com, especificamente, a moda masculina, ou no Podcast, chamando seu público para interagir e refletir sobre seu próprio eu e o espaço que ocupa. Um trabalho que vai além de apenas produzir um conteúdo, mas de se colocar como parte de um conjunto, de uma identificação, para trazer através da experiência um produto que enxergue e trabalhe as minúcias necessárias para abraçar um público que não é visibilizado nos grandes blogs/canais de moda.

Mais que um hobby

Arthur Bugre é um exemplo das potencialidades de expressão que são abertas com a internet. Falar de sua experiência pessoal, assuntos de interesse e temas que o afetam são as opções propostas pelas redes sociais e pelos blogs — atividades que podem ser um hobbie ou uma fonte de renda, substituindo uma carreira profissional tradicional.

O trabalho de Bugre na internet, embora seja conciliado com outras atividades, já gera renda — e a perspectiva do empreendedor é que, cada vez mais, vá se tornando a sua atividade principal.

Bugre nos explica que atualmente a moda é uma forma de trabalho rentável através das parcerias que consegue com marcas, do brechó online e também como uma forma de atrair clientes para o serviço de consultoria, com o qual também obtém renda.

Apesar de gostar de trabalhar na Rádio UFMG Educativa, seu desejo é voltar-se exclusivamente para o desenvolvimento do trabalho de consultoria, que é mais ligado à sua atual realidade como homem trans negro. O principal motivo dessa vontade é a motivação que impulsiona esse trabalho, que lhe dá a sensação de realização pessoal incomparável a qualquer das outras experiências.

Já a moda é algo de que Bugre deseja se afastar com o tempo. Ele explica que trabalhar com moda exige um envolvimento de outras questões, como um certo estilo de vida e exposição quase constante da imagem, o que ele não considera benéfico para seu bem estar e saúde mental.

Assim, como um empreendedor, Arthur Bugre se considera em um caminho inverso ao que os influencers digitais fazem. Para ele, seu trabalho está mais relacionado ao de um “influencer ativista”, que visa não somente construir uma imagem na internet, mas sim dar a mão às outras pessoas com a visibilidade que possui. O jornalista, hoje também consultor de moda e coach, pretende seguir o caminho do empreendedorismo nas áreas em que se profissionalizou, mas sempre se atentando em ajudar seus semelhantes.

A marca Bugre Moda surge como intuito de preencher lacunas de representatividade de um homem trans e perpassa por leque de outras questões que vão desde a moda ao jornalismo. O também “influenciador digital” possibilita, através dos aspectos da própria vivência, criar uma rede social de empatias com o intuito de compartilhar com àqueles cujos afetos têm pontos em comum com os dele, formas possíveis de lidar com as questões do cotidiano.

Bugre Moda é um exemplo de que os assuntos não se esgotam em si mesmo: a moda não é fútil, mas política. A intenção dos empreendimentos na moda, na consultoria, no podcasts e no blog é que mais pessoas como ele sejam vistas, percebidas e escutadas. A remuneração transcende os limites alcançados pelo dinheiro para retornos em capital social, na vida de Bugre e para o público que consome seus conteúdos.

Esta reportagem foi produzida na disciplina Projetos B2 do curso de Jornalismo da UFMG (prof. Carlos d’Andréa).

--

--