Desvendando o jornalismo investigativo: os processos de produção da Agência Pública.

Yago Christian
LabCon / UFMG
Published in
8 min readJul 5, 2022

Por Beatriz Abrahão, Isabella Caroline, Izabella Oliveira e Yago Fargnoli

Entenda, na perspectiva de três jornalistas, como funciona a produção de reportagens na primeira agência de jornalismo investigativo do Brasil

Durante nove meses, Joana Suarez acompanhou a gestação e os primeiros sete meses da vida de Gabriel, um bebê nascido de uma mulher em situação de rua. Em todo seu tempo no hospital, a repórter foi a única visita que essa mãe recebeu.

Bruno Fonseca investigou os abusos sofridos por mulheres indígenas da etnia Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. O estado é o que apresenta os maiores índices de violência contra mulheres indígenas do país.

A exploração de petróleo na foz do rio São Francisco, sem licença ambiental, foi denunciada por Mariama Correia. A empresa que fazia a extração chegou a treinar os pescadores locais em caso de vazamento do combustível fóssil.

O fazer jornalístico é desafiador, mas, quando se trata do jornalismo investigativo, o processo torna-se ainda mais intrigante. A escassez de recursos, as tentativas de censura e a duração da produção de reportagens, como as citadas, caracterizam algumas das adversidades enfrentadas por esses três jornalistas, que são (ou já foram) repórteres para a Agência Pública.

“Tem que ser direitos humanos e tem que ser investigativo”

- Bruno Fonseca, repórter e editor na Pública.

Em 2011, o jornalismo investigativo do Wikileaks liberava centenas de novos documentos sobre crimes militares, políticos e diplomáticos realizados pelos Estados Unidos. Entre os países violados estava o Brasil.

Natália Viana, repórter brasileira, foi chamada pela organização, no ano anterior, para trabalhar nos documentos que tratavam do país e integravam uma série de telegramas diplomáticos do governo norte-americano, intitulada Cablegate. Quando ela voltou, tinha a missão de publicar essas revelações, então, começou a escrever reportagens e distribuí-las gratuitamente para quem quisesse publicar. Pouco tempo depois, essa lógica de produção jornalística idealizou a Agência Pública.

Criada em 15 de março de 2011, por três repórteres brasileiras, a agência rompe com os padrões midiáticos estabelecidos no país, tanto pelo modo como produz conteúdo, quanto pelo seu financiamento. Como afirma Marina Dias, atual diretora de comunicação, “a inspiração foi a necessidade de criar uma organização de jornalismo independente que fizesse uma cobertura investigativa a partir do ponto de vista da população.”

Segundo Mariama, repórter e editora na Agência, nas reuniões semanais e quinzenais que a equipe da Pública se reúne e pensa nas pautas prioritárias e nas estratégias de comunicação. Bruno Fonseca acrescenta ainda que o público pode influenciar nessas decisões, tanto por meio de votação, que acontecem todos os meses, como também com sugestões pelas redes sociais. A exigência é que todos os temas sejam investigativos e tenham relação com os direitos humanos.

Reunião da equipe da Agência Pública | apublica.org

Uma lógica de financiamento diferente

O jornalismo investigativo leva mais tempo para ser feito. Esse tipo de produção foge do modelo de negócio da mídia de massas, uma vez que não visa o lucro. Nessa perspectiva, a Agência Pública tem como objetivo fazer jornalismo com um viés público, investigativo e não partidário.

Para tanto, a Agência se financia por meio das doações de fundações privadas nacionais e internacionais; do patrocínio a projetos e eventos; dos editais; e da contribuição donativa dos leitores. É assim que a Pública consegue cobrir os custos de suas reportagens e os salários mensais da equipe, como nos casos de Bruno e Mariama. Ou ainda, remunerar freelancers, com o valor integral referente ao conteúdo produzido.

Mesmo assim, há uma política que determina que nenhum financiador pode interferir nas apurações, a fim de manter a independência editorial. “A gente não tem censura, até porque a gente não tem anunciante, então não tem como ninguém derrubar a matéria” — conclui Bruno.

Essa política é fundamental, principalmente por causa de projetos que desafiam grandes organizações privadas ou, até mesmo, entidades governamentais. É o caso da série especial “Amazônia sem lei”, de 2021, da qual Bruno faz parte. O especial investiga a violência relacionada à regularização fundiária, demarcação de terras e reforma agrária na Amazônia Legal e no cerrado.

Além de permitir a realização desses projetos e reportagens, esse tipo de financiamento jornalístico consegue oferecer alguns suportes aos seus colaboradores. Mariama aponta a consultoria jurídica, que ela sempre faz uso em reportagens com temas mais sensíveis, como de assédio ou violência sexual.

“No Jornalismo investigativo tem que ter muita persistência”

- Joana Suarez, jornalista independente e ex-colaboradora da Pública.

A apuração é o maior artifício do jornalismo investigativo, mas, infelizmente, a falta de transparência das instituições costuma atrasar o trabalho dos repórteres da Agência. “Muitas vezes a gente não tem nenhum retorno, nenhuma resposta, nada… e muitas vezes, quando tem, é uma resposta seca, completamente enviesada. A gente pergunta mil coisas e a pessoa responde só uma”, diz Mariama.

Bruno relata uma percepção parecida com a de Mariama, e acrescenta que muitas assessorias de comunicação de instituições públicas agem como propagandistas. “Eles não entendem que não só estão sendo pagos pelo nosso dinheiro como o trabalho deles é dar publicidade para o que o governo está fazendo com ele”, afirma.

Para tentar driblar esse problema, esses profissionais precisam recorrer, por exemplo, à Lei de Acesso à Informação (LAI), ao Portal da Transparência e às publicações oficiais dessas instituições. Em contrapartida, a própria LAI não abrange entidades privadas com fins lucrativos, ou seja, quando a apuração dos repórteres se volta a elas, as alternativas são ainda mais limitadas.

Os órgãos públicos são os maiores fornecedores de dados, mas Joana Suarez nos lembra que a apuração de uma reportagem não é só feita por meio das instituições. Os personagens também são parte fundamental de uma reportagem investigativa, principalmente quando se trata de direitos humanos. E o jornalista deve ter cuidado com esses personagens, uma vez que a apuração e a publicação do material podem impactar suas vidas.

“A forma como eu absorvo o que a pessoa falou e traduzo aquilo pra narrativa é completamente influenciada por como aquela história me atravessa”

- Joana Suarez

Na reportagem em que ela acompanhou a gestação e o início da vida de Gabriel, Joana contou que se encontrava com Iriana [a mãe] semanalmente. Por mais que o lado profissional estivesse presente, foi inevitável não criar uma relação de amizade. “Ela me via como um ponto de conexão com a realidade”, relata.

Iriana Elísio do Nascimento, de 31 anos, no nono mês de gestação | Flávio Tavares, Agência Pública.

Segurança digital e no campo

“Investigamos a administração pública, incluindo todos os níveis de governo e as casas legislativas; os impactos sociais e ambientais de empresas, suas práticas de corrupção e de anti transparência; o Poder Judiciário, sua eficácia, transparência e equidade; e a violência contra populações vulneráveis na cidade e no campo”, é o que diz o site da Agência Pública.

A denúncia não é, necessariamente, parte do jornalismo investigativo, no entanto, ela costuma estar muito presente. Por isso, as mídias que fazem esse tipo de matéria precisam estabelecer protocolos de segurança e orientar seus colaboradores em caso de ataque, censura ou até mesmo invasão digital. A Cartilha de Segurança Digital e Atuação no Campo é um dos materiais que orientam os jornalistas da Pública.

Trecho da Cartilha de Segurança que a Agência Pública.

“Muitas vezes a gente começa com uma pista no jornalismo de dados e complementa com a ida à campo”, explica Bruno, sobre o processo de apuração. Ele comenta que, em determinadas situações, os dados podem atuar como guias, ao indicarem para onde os repórteres devem ir e em quais localidades as situações sobre determinado tema estão mais alarmantes.

Quando isso acontece, como na reportagem que fez, sobre a violência contra mulheres indígenas no Mato Grosso do Sul, a Agência presta suporte. A direção e a edição da Pública avaliam quais são os riscos aos quais o repórter estará submetido e, quando necessário, envia mais de um jornalista, já que o trabalho coletivo é — um pouco — mais seguro. “Muitas vezes acaba sendo a dupla repórter e fotógrafo, ou repórter e cinegrafista”, diz Bruno Fonseca.

O jornalista também aponta que essa outra pessoa pode ser alguém da própria região, disposto a colaborar com a reportagem, alguém que chamam de “ponto de apoio”. Foi o que Dom Phillips, jornalista britânico, e o indigenista Bruno Araújo Pereira fizeram no dia 5 de junho, quando desapareceram na Amazônia. Infelizmente esse método não foi capaz de garantir a segurança deles e no dia 18 de junho a polícia confirmou a morte dos dois. Os motivos? A polícia ainda investiga, no entanto, acredita-se que tenha sido a pesca ilegal e o tráfico de drogas. De fato, o jornalismo investigativo incomoda.

Por fim, “O mais desafiador é o momento da escrita”

- Joana Suarez

Para Joana, o processo de selecionar o que será ou não escrito na matéria é particularmente difícil, especialmente em apurações mais longas, como as que duram meses. “A matéria da morte da Ângela e do parto de Iriana, foi no momento da escrita que eu mais me acabei, sabe? Porque eu estava na adrenalina, entrevistando, vivendo… E a escrita é um processo ‘terapêutico’ extremamente intenso e profundo que você precisa racionalizar e colocar em palavras tudo aquilo…”

Em “Vivendo a morte”, reportagem que Joana fez para o jornal O Tempo, durante sete meses ela acompanhou Ângela, uma mulher em estágio terminal de câncer, até sua morte. Joana se tornou amiga da família e, independentemente de atuar como uma repórter naquele contexto, a morte de Ângela marcou sua história. E quantas marcas não se guarda um jornalista?

“No final, após 7 meses juntas, a gente se comunicava pelo olhar…até a despedida”, relato de Joana nas redes sociais. Na foto, a repórter sentada ao lado de Ângela.

Como Joana ressaltou, não se trata só de investigar e contar histórias, mas ser atravessado por elas. É nesse ponto de convergência que nasce o repórter. E é na linha tênue entre a imparcialidade e as afetações que ele se constrói, na separação entre um jantar com o governador e a visita a uma pessoa que passa fome, como nos desenhou Mariama. Ou, ao acompanhar a dualidade do fim e do início da vida, como fez Joana. O jornalismo é um serviço prestado ao público, mas os impactos em quem o presta são singulares.

Por isso a saúde mental desses profissionais é um tema a se debater, “a gente precisa estar inteiro para contar essas histórias”, ressalta Mariama. Ela completa que deixar se afetar é parte do trabalho e que se o fazem é por se deixarem afetar, porque se revoltam diante de injustiças.

As denúncias feitas pela Pública foram republicadas em 2019 por mais de mil veículos de comunicação brasileiros e estrangeiros e, em 2020, estiveram em mais de mil e cem canais. Já renderam 52 prêmios, dentre o mais importante da América Latina, Gabriel Garcia Márquez. Sempre afetando uns e incomodando outros.

Esta reportagem foi produzida na disciplina Projetos B2 do curso de Jornalismo da UFMG (primeiro semestre de 2022 — prof. Vanessa Cardozo Brandão).

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