Literatura, cinema e história por elas: conheça o Querido Clássico
As obras clássicas precisavam de um agora e o Querido clássico oferece esse espaço a essas obras. O projeto revisita e analisa os clássicos literários publicados há mais de 20 anos, sendo escrito por mulheres da essas obras uma visão do feminino negligenciada em suas publicações
Por: Joyce Estefani, João Carlos Alves de Lima, Timóteo Dias, Giovana Pena
No mundo da literatura, existem obras que atravessam gerações e permanecem relevantes mesmo após décadas do seu lançamento. Pensando nisso, a escritora Mia Sodré, criou em 2020, o projeto "Querido Clássico", que reúne um grupo de mulheres apaixonadas por literatura, cinema e história que exploram obras literárias escritas ao longo do tempo.
Composto por 33 integrantes, o Querido Clássico tem como objetivo principal revisitar e analisar clássicos literários que tenham sido publicados há mais de 20 anos. Essa escolha permite que o projeto vá além da atualidade, explorando obras consagradas que marcaram épocas e continuam impactando as pessoas até os dias de hoje.
Outra proposta explorada no projeto é a construção e valorização das perspectivas femininas sobre essas obras, as quais em muitos no período de seu lançamento não havia espaço para que mulheres opinassem sobre o tema. Por ter uma equipe composta por mulheres, o Querido Clássico presenteia seus leitores com análises que abordam temas como a fúria e o desejo feminino, todos analisados de uma ótica que se distanciam ao pré estabelecido.
A ótica proposta nos textos não era muito explorada e distribuída na época do lançamento de muitos dos livros analisados pelo projeto. Os jornais, espaço para as discussões da sociedade na época incluindo também críticas e análises das artes, eram um espaço majoritariamente e com maior força masculina, as pautas destinadas às mulheres eram voltadas ao lar e temas mais profundos, violentos e ou com análises mais profundas eram vistos como do escritor homem.
Na nossa experiência atual de sociedade ainda sentimos resquícios desse modo de agir e pensar, como a exclusão e misoginia percepções para com jornalistas no meio esportivo, a menor expressividade de mulheres no campo de jornalismo policial e a desvalorização do argumento quando advindo de mulheres. O Querido Clássico é um presente espaço para que essas mulheres construam suas opiniões, experiências e análises de obras, oferecendo a nós, leitores, descobertas e redescobertas de grande qualidade e diferencial.
“Eu acho que isso, a gente pode aprender muito o clássico nos dias de hoje”
Cecília Amaral é uma das mulheres que integram a redação do projeto. Em sua visão, a proposta editorial é desafiadora. “Cada texto tem muitas referências até que quem for consultar o blog vai lá no final ver que são referências de artigos mesmo, sabe? (...) Sempre que eu vou escrever um texto é desafiador por causa disso. Se for sobre uma obra, a gente também escreve sobre eventos históricos e tudo mais, eu acho que quando parte pra literatura é muito complicado, porque tem que ter muita responsabilidade”, comenta.
A escolha dos clássicos é livre e feita individualmente por cada membro da redação. Apenas a escolha do Clube do Livro, outra iniciativa do projeto, é feita pela editora e fundadora do Querido Clássico Mia Sodré. “Ela faz o calendário dos livros do Clube do livro, mas os livros que a gente fala no blog são livres e é da escolha de cada redator. (...) É considerado clássico para o querido clássico, qualquer livro que tenha mais de 20 anos de idade”.
Quanto à relevância dos clássicos na sociedade contemporânea, Cecília acredita que eles, especialmente aqueles à frente de seu tempo, são ferramentas essenciais para a reflexão sobre a sociedade atual. A exemplo das irmãs Bronte, cujas obras abordam questões feministas ainda discutidas, os clássicos desempenham um papel crucial em moldar a compreensão do presente ao iluminar discussões que permanecem relevantes.
“Eu acho que os clássicos, principalmente aqueles que eles foram à frente do seu tempo, já na época em que eles foram escritos, são muito importantes para a gente refletir sobre a nossa sociedade atual. Eu sempre dou os exemplos das irmãs Bronte. São muito fã delas. Eram escritoras extremamente feministas que trouxeram discussões muito importantes ainda hoje. (...) E eu acho que a gente pode aprender muito com o clássico nos dias de hoje”, comenta a redatora.
Embora muitos clássicos recuperem destaque periodicamente, a entrevistada destaca a importância de evitar a superioridade literária, em razão da necessidade de valorizar igualmente obras contemporâneas. A diversidade de gêneros e autores dentro da categoria "clássicos" ressalta a importância de uma abordagem individualizada, em que cada leitor busca obras que ressoem com seus interesses e preferências.
“Cada literatura é importante por motivo. Livros novos e livros antigos. Eu acho que encontrar clássicos que vão pro seu gosto, sabe? Então, se você gostar de leitura comum, se você gosta dos clássicos de guerra, ou de clássicos que falam sobre a vida cotidiana, sobre casamento, sobre diferentes lugares, então eu acho que isso é importante, sabe? É não generalizar o clássico como ‘meu Deus, clássicos são um gênero’. Não, o clássico é um livro que se tornou clássico por causa de alguns critérios, mas eles têm diferentes gêneros, diferentes autores de diferentes nacionalidades”, responde.
“Acredito que tenha uma motivação política no site, por meio da arte e das vozes que são dadas por meio dos textos”
Laura Ferracine, outra colaboradora do QC - como é conhecido o Querido Clássico entre as redatoras e os fãs mais assíduos - se envolveu com o projeto em meados de 2021, quando o projeto abriu uma chamada para novas integrantes. "Eu já seguia eles antes e sempre gostei muito da proposta do site, de escrever sobre literatura clássica, arte e afins", comenta Laura.
Estudante de Letras pela USP, ela acha o papel do Querido Clássico especialmente importante para a formação dos leitores: Por comentarem diversos gêneros da literatura do passado, a redatora percebe que os seguidores da página acabam se identificando com algum livro recomendado ou conhecendo alguma "pérola" escondida no enorme baú da literatura universal.
"Eu participei da mediação de uma oficina na semana de Letras da minha faculdade esse ano, e vi que, coincidentemente, sem as pessoas saberem que eu era redatora do QC, mencionaram vários livros que aprenderam a gostar a partir das resenhas do site", analisa a integrante do projeto.
Perguntada se a produção seria diferente caso a composição do time do Querido Clássico não fosse exclusiva de mulheres, ela responde que sim. " Acho que pelo site ser composto apenas por redatoras, o foco sobre a literatura de escrita feminina e de vozes marginalizadas é bem maior. Então acredito que também tenha uma motivação política no site, por meio da arte e das vozes que são dadas por meio dos textos", responde.
"Um projeto que conecta pessoas interessadas em literatura, cinema e artes em geral. Tem um estilo bem diferente de outras contas que sigo."
Eduardo Souza, leitor do Querido Clássico, fala sobre o diferencial do projeto. Na contramão de outros projetos literários, ele não apenas fomenta a leitura e discussão de clássicos, mas também destaca a importância das vozes femininas na análise dessas obras, contribuindo assim para uma perspectiva mais inclusiva e enriquecedora do patrimônio cultural.
Para Patrícia M., como se apresenta a leitora no instagram, as publicações da página funcionam quase como um momento de meditação, ou de conexão com si mesma, em contraste ao ritmo esquizofrênico das demais páginas - cuja lógica é ditada pela imediatez da informação ou imagens que apelam para o humor.
“Sigo a conta há bastante tempo e a vejo como um respiro em meio às notícias, fotos genéricas, memes e outros conteúdos do instagram”, responde a leitora.
Dessa forma, o projeto se destaca como um espaço fundamental para a revisitação e análise de obras literárias que transcendem o tempo e continuam impactando as pessoas até os dias de hoje. O Querido Clássico ou, carinhosamente, QC, se consolida como uma fonte de descobertas e redescobertas de grande qualidade, além de proporcionar uma merecida pausa ao seu público, especialmente quando o mundo parece correr em uma velocidade insuperável.
“Falar do passado é falar sobre o presente”
Em um cenário midiático em constante atualização, e que prioriza a novidade como um fenômeno decisivo na retenção de leitores/usuários, o Querido Clássico pode ser visto como um ato de resistência. Não se posiciona como uma barreira entre o antigo e o novo, mas como uma ponte pronta para abordar as profundas questões do passado e analisá-las à luz do presente. Victória Haydée, mestranda em Antropologia e membro da equipe editorial, esclarece o propósito do Querido Clássico da seguinte maneira:
“Acredito que o blog contribui significativamente para a formação de novos leitores, ao abordar temas relacionados à literatura, especialmente aquela que muitas vezes fica à margem do mainstream (...). Se algo do passado continua a ecoar no presente, é porque ainda possui relevância, e se continua a ressoar, é porque ainda há algo a nos ensinar. Assim, discutir o passado no Querido Clássico é, essencialmente, discutir o presente. É isso que buscamos realizar no QC”, conclui Victória.