O que uma empresa de varejo veio fazer no jornalismo? A história do Canaltech e Magazine Luiza

Enquanto a tecnologia for uma grande incógnita para a comunicação, o mercado conquista o monopólio da informação

Diego Graim
LabCon / UFMG
11 min readNov 28, 2023

--

Era a segunda metade do ano de 1995 quando a Microsoft lançou a sua nova versão do seu sistema operacional: Windows 95. Naquele período, poucos tinham acesso à internet, mas os grandes veículos de comunicação já interpretaram aquilo como o maior avanço tecnológico que a humanidade iria ver, só não poderiam enxergar o quão rápido foi para essa tecnologia chegar na mão de todos e se tornar essencial na vivência moderna.

Em menos de 30 anos, os assuntos relacionados à tecnologia foram de computadores de mesa e laptops para metaverso e inteligência artificial, a sociedade mal teve tempo para se adaptar à inserção do imediatismo que internet traz no dia a dia, e agora já começaram as discussões relacionadas a quantidade de empregos que serão perdidos por conta da substituição da força de trabalho humana por robôs, como os criados pela OpenAI.

Em meio a tantas dúvidas relacionadas a esse assunto complicado, era papel do jornalismo tentar explicar para a população como funcionava e como fazer bom uso da tecnologia e internet, e que forma melhor de fazer isso se não usando a própria internet?

Criando seu site em poucos segundos, qualquer pessoa ao redor do mundo pode acessar o seu conteúdo de forma imediata, removendo qualquer burocracia que poderia existir dentro dos jornais de televisão ou rádio, e reduzindo gastos existentes em revistas ou jornais impressos. O mundo entrava em uma era que um simples entusiasta de determinado conteúdo poderia competir em escala global com empresas tradicionais de comunicação.

Em 2006, a revista Time elegeu “Você” como a Pessoa do Ano, representando como o cidadão comum agora tem controle sobre a informação gerada.

Em um Brasil recém-conectado, nasce o Canaltech

Em julho de 2012, Felipe Szatkowski, especialista em sistemas de informação, juntamente com o empresário Domingos Hypolito Neto, fundou o portal de notícias Canaltech, trazendo informações sobre o que estava acontecendo no mundo da tecnologia e formas de se integrar ao mundo digital e tecnológico. Com alguns cliques, duas pessoas que nunca tiveram um diploma em jornalismo criaram um grande portal de notícias, mas por quê?

Algo que com o passar do tempo ficou cada vez mais evidente é a relação que o jornalismo tem com o mercado, deixando de lado qualquer concepção utópica de apenas informar pelo bem comum. A informação é um produto essencial para a sobrevivência humana, com registros de periódicos estatais existindo desde os primórdios da civilização, até chegar no que conhecemos atualmente como jornal.

Um dos maiores problemas que o jornalismo passou foi estar restrito a poucas palavras em uma grade pequena de tempo. A empresa tinha a função de descobrir o que era comumente importante a uma sociedade diversa, em que notícias as quais fugiam do cotidiano nacional não agradavam a todos. O monopólio da informação machucava muito o consumidor entusiasta de assuntos específicos como: tecnologia, moda, e automobilismo, que esperava semanas ou meses para saber o que acontecia dentro desses universos.

Com a chegada da internet, temas que apenas apareceriam em uma página de jornal se tornaram sites completos com colunas e notícias sendo atualizadas a todo instante. Pela primeira vez na história o consumidor poderia controlar o tipo de informação que chegava a ele, e com uma crescente demanda por informação surgindo, portais como o Canaltech eram fadados a acontecer.

Enquanto jornalistas ainda procuravam se adaptar às tecnologias novas, simples pessoas que já tinham conhecimento da internet decidiram brincar de jornalismo, comentando sobre assuntos que aconteciam no mundo da tecnologia com outros entusiastas, eventualmente chegando ao ponto que um simples hobby poderia ser monetizado e tornar-se um trabalho remunerado.

O Canaltech cresceu de forma rápida junto com seus concorrentes (TechTudo e Olhar Digital), surfando na crescente onda de demanda por conteúdo imediato sobre assuntos considerados “nichados”. Esse crescimento foi reconhecido com a expansão do portal em redes sociais e criação de conteúdo para plataformas de streaming, chegando a criar uma premiação para feitos relacionados à tecnologia e jornalismo com o Prêmio Canaltech.

(Imagem: Ivo Meneghel Jr/Canaltech)

Não é só o cidadão comum que quer ser jornalista: Magazine Luiza

Era dia 6 de agosto de 2020, quando foi publicada uma nota à imprensa afirmando a compra do portal de notícias Canaltech pela empresa brasileira Magazine Luiza, uma corporação especializada no setor de varejo. Esse era o tipo de junção que a área de jornalismo apenas imaginaria acontecer com publicidades no jornal em propagandas ou matérias pagas, isso foi até o estabelecimento da internet, quando o domínio da informação virou produto de luxo.

A Magalu tem uma história longa comparada aos seus concorrentes atuais, que começa quando um casal em 1957 decidiu adquirir uma lojinha no interior de São Paulo e a rebatizou de Magazine Luiza. O pequeno negócio lentamente começou a bater de frente com os titãs do setor varejista, consagrando-se um nome de peso no mercado brasileiro, com mais de mil e quatrocentas lojas espalhadas pelo país.

Esses estabelecimentos presenciais da empresa eventualmente iriam conhecer o destino trágico que a onda digital trazia com força, relatando prejuízos a cada semestre, que se tornaram maiores durante o período da pandemia.

A Magazine Luiza fez uma grande aposta em alternar os focos entre o setor físico e digital, principalmente com a chegada da Amazon e a popularização em massa do e-commerce, chegando ao ponto que a Magalu foi forçada a se render a um modelo mais digital de forma tardia. Felizmente, seus proprietários tiveram uma visão progressista de mercado, investindo em presença nas redes sociais e em marketing digital, recursos necessários para a sobrevivência nas plataformas online.

Para a corporação varejista, não bastava somente criar bonecos 3D para conversarem com seus usuários nas redes sociais, essa é a era da informação, em que a presença positiva na mídia é um fator crucial em cima de seus concorrentes, e desta vez, para atingir as capas dos jornais, agora só bastavam alguns cliques e alguns milhões de reais. O Canaltech é comprado pela Magazine Luiza.

Lu da Magalu, a personalidade virtual criada pela empresa para conseguir notoriedade nas redes sociais

O varejo em pele de jornal — Compras

Para entender o porquê do jornal comprado ser o Canaltech, primeiro é necessário entender o tipo de jornalismo feito pelo site.

A proposta do Canaltech é realizar conteúdo jornalístico sobre tudo relacionado à tecnologia, um assunto que é extremamente difícil desvincular a participação privada no produto, principalmente quando os maiores artigos de interesse no site são comparações de produtos para comprar. Samsung vs Motorola, Playstation vs Xbox, Intel vs AMD, todos esses são temas frequentes para os usuários do portal.

Com a entrada definitiva da Magazine Luiza no mercado digital, eletrônicos se tornaram prioridade para a Magalu, principalmente após a chegada da pandemia, em que o mundo percebeu o quanto a tecnologia foi uma aliada para combater esses tempos difíceis. Ainda sim foi difícil para a empresa achar seu espaço, principalmente com outras lojas de varejo e e-commerces carregando um histórico forte de conhecimento digital.

A Magazine Luiza quer achar seu espaço na internet, e sua melhor resposta foi fazer um movimento, em menor escala, mas parecido com a Amazon em 2013 na compra do Washington Post, a diferença é que aqui vemos um projeto muito mais voltado para investimento na área de tecnologia, principalmente quando a Kabum, empresa voltada para a venda de peças e acessórios eletrônicos, foi comprada pela Magalu um ano após a compra do Canaltech.

Após o Canaltech e a Kabum se tornarem empresas subsidiárias da Magalu, o portal de notícias passou a adotar um método em que o leitor pudesse chegar ao produto falado de forma mais fácil. Funciona assim: o Canaltech lança uma matéria falando de determinado produto, logo no começo ou fim da reportagem, aparece um botão para procurar a melhor oferta desse aparelho, esse botão irá te levar aos sites da Magazine Luiza/Kabum ou a parceiros da empresa, facilitando a chegada do cliente ao material desejado e maximizando o lucro da empresa, restringindo a participação de concorrentes em sua mídia.

Agora fica a dúvida, isso é jornalismo ou uma propaganda muito elaborada?

O varejo em pele de jornal — As diferenças

Para resolver a dúvida existente desde que a primeira comparação de produtos para comprar foi feita em um jornal, é necessário comparar o Canaltech com outra empresa jornalística de tecnologia que seja financiada pelo setor comunicacional ao invés do setor varejista. Para isso, o segundo objeto será o TechTudo, jornal tech criado pelo grupo Globo em 2010 para acompanhar esse universo de forma mais próxima a sua linha editorial.

É importante começar pelo ponto que faz o jornalismo de tecnologia funcionar: os produtos.

Tabela de produtos no site do Canaltech

Abrindo uma matéria do Canaltech de análise do Samsung Galaxy S23, é notável a liberdade editorial que o jornal possui para criticar as falhas do produto, no qual foi fornecido pela própria empresa de celulares como uma forma de conteúdo patrocinado, mas o uso de adjetivos foi excessivo nos pontos positivos comparado aos negativos, que apresentaram um breve comentário. Agora, ao pegar uma análise do mesmo produto, mas agora seguindo a linha editorial do TechTudo, o celular aparece de forma bem balanceada, com comentários curtos que vão direto ao ponto do que o consumidor quer.

O TechTudo também possui empresas parceiras para fornecer os produtos para análise, mas quando uma instituição que tem sua base na comunicação faz o conteúdo, é perceptível a falta de linguagem que atrai o consumidor ao produto, principalmente com comparações diretas entre concorrentes. No caso do Canaltech, fica evidente que ao mesmo tempo que exista a linguagem jornalística, também é uma loja tentando te vender um celular, com palavras sedutoras e criando uma falsa necessidade de vínculo com o objeto exposto.

Falar de linha editorial é algo bem polêmico dentro do jornalismo, casos de censura dentro da redação são comuns por questões ideológicas ou de mercado, e o mesmo é aplicado para esses dois jornais.

O Canaltech não aparenta evitar críticas ou polêmicas em suas análises ou editoriais, ao invés disso, ele evita ao máximo os concorrentes de suas empresas parceiras, com uma discrepância enorme de matérias realizadas entre Samsung e Apple, nas quais a Apple mal tem produtos expostos no site comparado aos vários anúncios e análises da Samsung. O Canaltech entende que até mesmo a exposição negativa, pode funcionar como uma propaganda.

Para o jornal do Grupo Globo, é notável a forte presença de comparações de variados produtos de diferentes marcas no site, mas são matérias que evitam aprofundar comentários ou críticas, tendo em vista não prejudicar a boa relação que possuem com seus patrocinadores. Mesmo mantendo um maior vínculo com a integridade jornalística, frases complexas se tornaram breves palavras por conta da pressão mercadológica.

Uma grande característica que faz o jornalismo ser importante, é sua capacidade de afetar a opinião pública e como o indivíduo enxerga a sociedade. Ainda é difícil enxergar traços disso em um meio que conversa apenas sobre produtos para você comprar, mas o Canaltech desde que foi comprado pelo Magalu, passou a adotar em seu editorial um modelo diferente de abordar a tecnologia, retratando seus efeitos na sociedade e como ela está moldando o futuro.

Matéria do jornalista Rodrigo Folter no Canaltech explicando inteligência artificial, tema recente e controverso no mundo da tecnologia

Canaltech, de uma forma surpreendente, inova dentro do jornalismo de tecnologia ao retratar os efeitos sociais da inteligência artificial, inovações que a tecnologia está fazendo para a medicina, e uso da internet para conectar povos minoritários. Para os seus concorrentes, como no caso do TechTudo, dificilmente vemos isso, mesmo com o Grupo Globo afirmando em seu editorial o compromisso com a vida e a sociedade.

Infelizmente, como mencionado anteriormente, o jornalismo também é um negócio, e tentar mudar a linguagem que o jornal tem com o público é extremamente arriscado, um risco que a TechTudo preferiu não correr para manter sua fidelidade de ser breve e apenas apresentar análises de produtos.

É um tema controverso, principalmente quando uma loja de varejo está financiando esse projeto ao invés da tradicional emissora de comunicação, mas esse trabalho social feito pela Magazine Luiza é legítimo? Alguns podem afirmar que é tudo um grande esquema de propaganda para impulsionar a empresa nas redes, por outra perspectiva ainda é um trabalho bem feito e solidário independente de seu financiamento.

Você compraria esse novo jornal?

A popularização da internet trouxe uma liberdade editorial nunca antes vista na história da comunicação, com pessoas comuns conseguindo usufruir deste meio de maneira mais efetiva que grandes jornais tradicionais, eventualmente chegando ao ponto em que o ramo empresarial não quis ficar somente no mundo da publicidade e decidiu vender seus produtos e ideias através do jornalismo.

A junção do Canaltech com a Magazine Luiza é mais uma das aquisições que estão se tornando tendência na área da comunicação devido a forte necessidade de presença digital, e principalmente quando um dos temas relacionados ao jornal é tecnologia, uma pauta cada vez mais discutida em decorrência dos avanços da indústria, a Magalu pegou essa oportunidade para não só vender produtos, mas também para inovar em cima de seus concorrentes.

O Canaltech desde sua aquisição pela Magalu, passou a adotar pautas mais voltadas para a inclusão digital, incluindo análises e críticas sobre os efeitos da tecnologia e da digitalização no cotidiano. Diferente de seus concorrentes como TechTudo, a sua forma principal de financiamento não vem da publicação de matérias, mas sim através de parcerias e venda de produtos, possibilitando outras formas de abordagem à notícia, na qual não se preocupa com uma baixa visibilidade ao mudar o que o público de tecnologia demanda normalmente.

É evidente que a Magazine Luiza não só acredita no Canaltech como meio para auxiliar na venda de seus produtos, a loja de varejo também investe no jornal como um produto jornalístico, procurando métodos diferentes para abordar assuntos e conseguir conquistar um público fiel que entenda a tecnologia como não só um acessório no dia a dia.

A massificação dos veículos comunicacionais traz consigo dilemas que podem prejudicar a qualidade na produção de informação e conteúdo, com cada vez menos jornalistas ocupando espaços importantes nas mídias e discussões sobre a fabricação da verdade se tornando mais relevantes. Entretanto, essa permissão trouxe novos protagonistas em uma história bastante elitista, personagens que podem trazer criatividade e inovação dentro das redações, algo que na atual crise do jornalismo, é essencial para manter o mesmo vivo dentro do imaginário comum.

O que a Magazine Luiza veio fazer dentro do jornalismo, em uma visão menos utópica, é fazer com que sua empresa gere lucro, algo que todo veículo de comunicação também vai buscar. Porém, a chegada repentina dessas empresas nas redações não só assusta seus consumidores, mas também assusta os jornalistas que não estão preparados para fazer diferente em um mercado expandido e agressivo.

--

--